quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A vila dos Fiéis




Naquela sexta-feira uma enorme agitação me despertou; a cidade toda estava à minha porta e no comando do espetáculo papai, o delegado do lugar. O motivo da confusão era a Vila dos Fiéis, cidade minúscula a doze quilômetros, cujos habitantes seguiam uma religião desconhecida e eram muito reservados.

Entre os poucos contatos que mantinham com o mundo exterior estavam as visitas do doutor Medonça aos enfermos. Acontece que naquela manhã, o médico encontrara todos os habitantes da vila paralisados; ninguém tinha morrido, mas nada que já fora vivo era capaz de se mover. Foi questão de instantes para que alguém dissesse que aquilo era um castigo de Deus e se qualquer um saísse da vila, a praga recairia sobre nossa própria cidade.

Discretamente apanhei minha moto e sai em disparada para a Vila dos Fiéis antes que chegassem lá para isolá-la. Ao entrar no lugar, passei a procurar pela garota que amava em segredo, tal era o sigilo que nem Julia conhecia meus sentimentos.

Quando a encontrei, meu primeiro pensamento foi levá-la para minha casa, mas tive medo do que aqueles malucos poderiam fazer com ela. Apanhei seu corpo inerte, levei-a até um sofá e resolvi esperar.

O sábado veio tomar lugar da sexta e Julia e os outros não apresentaram qualquer mudança; sua paralisia era tal não reparei sequer que alguém tenha feito suas necessidades nas roupas; toda sua fisiologia estava paralisada. Tão pouco meu pai e os seus apareceram.

No domingo pela manhã, acordei assustado com um enorme estrondo e ao abrir os olhos, Julia sorria para mim com uma expressão de surpressa. Toda sua cidade tinha voltado ao normal; pedindo desculpas a ela e seus familiares prometi que voltaria para explicar tudo e parti.

Quando cheguei, descobri que um terremoto engolira minha cidade com todos seus moradores.

Ídolo


Antes

Estimados, irmãos. Espero que quando nos encontrarem essa mensagem os ajude a entender o motivo de tão temerária atitude. Por mais que tentássemos, eu e minha parceira, não fomos capazes de viver nesse mundo. Então, nossa falha para com vocês é dupla: a partida sem aviso e a incapacidade de nos estabelecermos aqui, tal como todos vocês desejavam.

O fato, meus caros, é que neste exato momento meu tempo se exaure; no início, a degeneração celular só podia ser detectada por meios de testes laboratoriais, mas, de um mês para cá, o processo se tornou tão evidente que mal é possível realizar atividades banais em meio à dor e a dificuldade de coordenar os músculos desse corpo.

Também contribui para meu desespero o fato de minha companheira se encontrar num estágio bem mais avançado da patologia, seja por qual for a causa. Apenas eventualmente sua razão decide se manifestar e quando o faz, é para cobrar o cumprimento do pacto que fizemos quando da terrível descorberta: o de praticar o suicídio. Embora isso não fosse novidade para ela quando saudável, agora em seus momentos de lucidez, tenho de lembrar-lhe que, sem a devida preparação, sem algo para preservar nossas essências, suicidar-se significaria estar perdido por toda a eternidade. Claro, meus esforços são inúteis, finda minha explicação ela já tornou a ser sequestrada pela loucura da doença.

Ainda que não acreditemos nas coisas não científicas, meus irmãos, ao menos hoje, no último dia em que permaneceremos vivos, ela decidiu não interromper seu descanso, concedendo-me o tempo necessário aos ajustes finais. Seria o acaso? Sim, hoje deve ser o dia derradeiro pois mesmo que a doença nos permitisse mais alguns momentos, os primitivos das cavernas nos dizimariam em represária ao que fizemos a seus dois companheiros; hoje é noite sem lua.

Não preciso tê-los observado por longos períodos para saber que nessas noites algo inexplicável parece aumentar-lhes a coragem. Não estou por acaso sentido semelhante força, mesmo nesse corpo degenerado? Ao contrário dos ataques anteriores, no que está para acontecer daqui a algumas horas, não teremos condições de repelir os primitivos. Concluo aqui minha mensagem a vocês. Adeus, meus irmãos, e até breve.

- Ah, olá, como se sente? Acabei de transferir os dados da última mensagem à rocha calcária e não percebi que tinha se levantado. Você me deve obediência, portanto, é meu desejo que volte a descansar até que tudo esteja pronto.

_ Temos que fazê-lo agora, a dor...é insuportável...

_ Ouça, minha cara, falta pouco, talvez duas, quem sabe, uma hora para podermos nos desfazer dessa tortura sem riscos. Só preciso acabar de preparar a rocha.

_ Agora, por favor...

_ Paciência, a pedra já está pronta para receber energia, mas ainda não pode emitir um sinal rastreável. Além disso, tenho de tratá-la para que não seja danificada ou tudo será em vão.

_ Temos de fazê-lo, você prometeu...

_ Chega de disc...ei, por favor, largue a arma. Tente raciocinar, não...arghhhhh...

_ Não se preocupe, comandante, agora você pode descansar. Não tente estancar o sangue desse corpo, morra. Venha...ahhhh, já sinto sua essência vibrando na rocha. Estou indo lhe encontrar...

Pouco depois

Só um dos homídios foi bravo o bastante para se aproximar dos corpos deformados e ensanguentados de seus dois irmãos desaparecidos há meses. Talvez por seu papel na hierarquia da tribo, aquele bravo tenha sentido que a estranha pedra, diferente de todas que já vira, o estava chamando...

Hoje

_ Professor, muito obrigado por nos conceder essa entrevista.

_ É um prazer recebê-los em nosso museu. Pode me chamar de Abel.

_ Bem, Abel, não tenho dúvida que, em relação ao acervo do museu, a maior curiosidade de meus leitores é sobre o ídolo pré-histórico. Segundo se diz, a razão dele nunca ter sido exposto antes, apesar de ter sido descoberto há mais de duzentos anos, se deve aos estranhos fatos a ele relacionados. Coisas como liberar lágrimas de sangue, sons e vibrações estariam entre os fatos testemunhados pelos pesquisadores que tiveram acesso à peça. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

_ Minha, jovem. Crer em tais coisas, talvez fosse sensato para nossos antepassados de trinta mil anos atrás. Afinal, eles esculpiram o ídolo justamente por serem supersticiosos. Mas hoje, o máximo que posso dizer sobre tais crenças: absurdo!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Barbeiro



Roseana Pacheco estava curiosa. Em dois anos como psicológica da polícia era a primeira vez que pediam sua colaboração numa situação como aquela; invariavelmente os brucutus preferiam entrar e fuzilar os bandidos, se os reféns escapassem, tanto melhor.

Veio a seqüência de fatos inusitados . No local, já haviam lhe reservado uma vaga para o carro. Seu chefe, comandante do grupo de operações especiais, que até então nunca se dignara a cumprimentá-la, veio em sua direção como um cachorrinho abandonado em casa por todo um dia.

O superior informou-lhe ser ela a melhor opção para lidar com o caso já que se tratava de um evidente episódio de loucura: um homem exigia que seu habitual barbeiro devolvesse todo o cabelo que já lhe cortara! Roseana sabia que a natureza de um crime, fosse ela derivada de desajustes psicológicos ou qualquer outra coisa, nunca foi motivo para conter a tropa, então veio a teve a resposta. O “louco” não era outro senão Otávio Ribeiro, empresário respeitado em todo o país; seu nome e fortuna trouxeram consigo aquilo que nenhum pé-rapado conseguiria: centenas de câmeras de televisão acompanhando cada passo da polícia. Roseana conteve o riso ao descobrir o motivo de estar sendo tratada com tanta exceção.

Assim, de acordo com as gentis palavras do chefe a situação tinha tudo para colocar a polícia numa grande “merda” e isso não era nada bom especialmente porque as eleições estaduais ocorreriam em duas semanas. Natural pois que o governador e candidato à reeleição o tivesse intimado a solucionar o episódio de modo pacífico. Concluindo sua exposição o comandante disse que não estava impressionado por todos a considerarem uma menina prodígio ou por ela ter sido a primeira colocada do estado no concurso da polícia. Aquela seria a verdadeira oportunidade de provar que sua contratação tinha sido de alguma valia para o departamento.

Por meio de um megafone discutiu-se com o empresário a possibilidade de um negociador ser enviado à casa. Seria uma policial desarmada e pronta para antender à suas reivindicações. Intransigente e confuso de início, o agressor acabou respondendo aos gritos que a mulher poderia entrar, pois ele também queria acabar logo com aquilo. Não desejava ferir ninguém, apenas ter sua vida de volta.

Enquanto era preparada para entrar, a moça foi advertida por um colega para que não se deixasse enganar pelas boas intenções do empresário; para dar um toque de excentricidade ao evento, além da arma de fogo onipresente em casos como aquele, ele tinha um isqueiro com o qual ameaçava incendiar a barbearia.

Algum tempo depois a mulher foi autorizada a entrar na barbearia, e assim que o fez, o empresário que estava oculto atrás da porta, empurrou-a. Em seguida, bastante sem jeito, tentou revistá-la. O insucesso em encontrar qualquer tipo de arma, ou mesmo o ponto de rádio que a mulher trazia sob o capacete, tranqüilizou-o um pouco.

Mesmo assim, em sua mão, o isqueiro assemelhava-se a um objeto empunhado por um paciente com Parkinson avançado; a pistola tinha-a na cintura. Seu rosto pálido e sem cor apresentava várias perfurações com o diâmetro de uma queimadura de cigarro nas bochechas e entre os olhos; sem dúvida sinais de auto-flagelação, pensou a recém-chegada.

O lugar era surpreendentemente pequeno e só comportava uma cadeira de barbeiro na qual um homem já idoso estava amarrado com fita adesiva; no mais, uma porta parecia levar a outro cômodo. Acima da cabeça do prisioneiro, um recipiente tinha sido preso ao teto e furado para que seu conteúdo, gasolina, pudesse vazar aos poucos banhando o dono da barbearia.

_ Então? – gritou o empresário retirando Roseana de sua inspeção mental. Peça, convença-o logo! Não é para isso que você está aqui?

_ Convencer de quê, senhor Otávio?

_ Não tente ganhar tempo comigo, não sou idiota! – respondeu-lhe apontando o isqueiro em direção ao barbeiro. Eles já explicaram tudo!

_ Desculpe, não foi essa minha intenção. Está bem? Só me explique um pouco melhor, por favor. Lá fora eles me disseram apenas que o senhor queria seus cabelos de volta...

Então, com o olhar perdido entre as cenas de suas memórias, Otávio Ribeiro passou a recapitular os acontecimentos como se o fizesse para si mesmo. Em seu delírio, o ”monstro”, cujo nome “Augustinho″ o empresário se recusava a nomear, deveria devolver-lhe a vitalidade. Narrava que começara a freqüentar o estabelecimento por este funcionar à noite o que era perfeito para seus horários de homem ocupadíssimo.

O barbeiro gostava de contar que tinha uma clientela bastante grande composta de pessoas “muito ocupadas” assim como Otávio Ribeiro. Por coincidência, o empresário nunca encontrou outro cliente lá, supôs que fosse devido ao agendamento de horários. De qualquer modo, tornou-se frequentador assíduo retornando sem falta a cada quinze dias.

A partir daí, sem nenhuma explicação passou a sentir-se muito fraco e a envelhecer. No começo não associou as mudanças físicas às visitas periódicas ao monstro, mas aos poucos notou que nunca se lembrava de nada que ocorria enquanto cortava o cabelo; sabia que chegava ao salão vazio e recuperava a consciência apenas em casa, com eles cortados e um pouco mais brancos. Sem mencionar o cansaço e estranhas feridas no rosto e entre os olhos.

Enquanto Otávio Ribeiro desfiava suas fantasias, o nervosismo da psicóloga atingiu ápice. A boca do homem dava testemunho de que ele estava fora de si e por experiência ela sabia a inutilidade de argumentar com alguém tão dominando pelo irreal; tinha de se acalmar e aproveitar a distração dele para enganá-lo.

Um dia – continuava – sua intuição o fez perceber que tudo aquilo era devido ao barbeiro: ele estava sugando sua vida! Hoje, estava ali para tê-la de volta; felizmente ainda conseguia pensar um pouco e invadiu o lugar durante o dia, afinal, somente durante o sono, aquele monstro se encontrava vulnerável.

Pedindo que se acalmasse ela disse que iria pedir ao senhor Augustinho que lhe devolvesse os cabelos. Ao se aproximar do desventurado barbeiro, a psicóloga percebeu que o empresário parecia ainda mais nervoso e vacilante. Na realidade, ele parecia apavorado em manter-se próximo à sua vítima.

Aproximando-se lado esquerdo de Augustinho ela sussurrou-lhe ao ouvido:

_ Não se preocupe, vamos sair daqui! Aonde está o lixo com os restos de cabelo?

A resposta foram murmúrios initeligíveis, por certo os maus tratos recebidos tinham lhe confundido a mente, concluiu a moça. Enquanto Augustinho balbuciava sua novena indecifrável, ela teve a impressão que ele tentava lamber-lhe o rosto. Insistindo em sua pergunta a psicóloga teve a impressão de ouvir a palavra “não”.

“Que tipo de barbearia não tem algum resto de cabelo?” – pensou.

Pelo menos ela conseguiu subtrair um tesoura do velho sem que Otávio percebesse. Sem a ajuda do barbeiro, decidiu mudar de tática:

_ Senhor, Otávio, me ouça. Os cabelos estão no fundo da barbearia. Preciso do barbeiro para que ele me mostre o lugar onde se encontram.

_ Que tipo de idiota você pensa que eu sou? Você vai, ele fica.

Satisfeita, Roseana passou pela porta no fundo da barbearia, descobrindo que ela dava acesso a um anexo que servia de moradia para seu Augustinho.

Pouco depois ela retorna com uma sacola de plástico branca com diversos tufos de cabelo bem negro em seu interior. Tentando demonstrar sinceridade apresenta seu achado a Otávio Ribeiro.

Ainda que evidentemente satisfeito, ela foi questionada quanto ao o resto. Afinal, segundo ele, durante aqueles últimos meses seu cabelo fora cortado diversas vezes. Com uma desenvoltura que desconhecia ter, disse que o restante não importava; bastava uma pequena quantidade do cabelo perdido para restituir a energia do dono. Não era verdade que em filmes de magia negra um único fio era capaz de afetar a pessoa? No confuso cérebro de Otávio Ribeiro tal argumento pareceu dotado de uma lógica inequívoca.

Então, o seqüestrador deu à psicóloga a oportunidade de realizar o mais ousado movimento da noite. Questionada quanto ao que era preciso para que sua vitalidade fosse restituída por aqueles cabelos, a moça respondeu que apenas quem roubou-a poderia devolvê-la: Augustinho.

Otávio Ribeiro afastou-se bruscamente para o canto oposto da sala enquanto aos berros dizia que sob hipótese alguma o monstro seria solto; ele era muito perigoso. A psicóloga tentou acalmar o empresário dizendo que a vítima não passava de um senhor franzino e assustado; incapaz de fazer mal. O cada vez mais assustado empresário disse que aquela era a intenção do predador: fazer com que acreditassem que ele fosse frágil e indefeso para roubar-lhes a vida.

Indiferente às imprecações do empresário, a mulher aproximou-se das costas do barbeiro e tocou-lhe os ombros com ambas as mãos. No outro canto do cômodo o seqüestrador lhe implorava que não fizesse aquilo porque o monstro atacaria. Ousando ainda mais, ela envolveu por completo o velho encostando o próprio rosto ao dele; desesperado, Otávio Ribeiro evitava olhar para o barbeiro e gritava como se estivesse sofrendo a mais dolorosa das torturas.

Aproveitando o desespero do empresário e tentando evitar as investidas de Augustinho, que teimava em querer lamber-lhe o rosto, ela usou a tesoura pela segunda vez.

Quando baixou os olhos e viu o barbeiro com as mãos desamarradas a poucos metros de si, Otávio Ribeiro passou a amaldiçoá-lo a toda voz. Curiosamente, a pistola continuava em sua cintura, ele parecia crer que só o fogo era capaz de lidar com o monstro posto que o isqueiro estava apontando em direção ao velho que continuava avançando.

Temendo o pior, a psicóloga havia se posicionado na frente de seu Augustinho tentando barrar-lhe a caminhada. Ainda que a mulher tivesse os dois braços contra o peito do velho e as pernas estendidas para manter-se no lugar, a força do barbeiro era algo anormal já que ele não precisava inclinar-se nem mesmo um centímetro buscando uma alavanca mais favorável a fim de se opor à psicóloga, uma mulher grande de mais de setenta quilos.

A cada centímetro que Augustinho a empurrava para mais perto do empresário, Roseana imaginava sentir as chamas se espalhando pelo cômodo, mas ao invés de atear fogo ao local, Otávio Ribeiro encolhia-se mais e mais em seu canto e lamentava:

_ Eu não devia ter concordado com a sua entrada...agora não posso acabar com tudo...

Pelo parecer dela, o empresário ainda parecia ser capaz de distinguir que o assassínio de qualquer outro que não o barbeiro era algo condenável. A alternativa era arriscar a vida por seu palpite.

Em meio à crescente confusão, ela ouvia o constante questionamento do comandante se aquele era o momento para invadir o lugar; em meio a gritaria de Otávio e aos resmungos inconpreensivos de Augustinho ela respondia pelo rádio: “ainda não!”.

Por fim, quando só o corpo da psicóloga separava o empresário de sua vítima, o desespero de Otávio Ribeiro foi substituído por uma patética submissão. Às lágrimas, ele implorava para que Roseana Pacheco fosse embora e lhe deixasse dar fim ao monstro para que a criatura não pudesse mais vitimar ninguém.

Cada vez com mais dificuldade para conter o velho que fazia questão de se aproximar do empresário, Roseana Pacheco prometeu a Otávio Ribeiro que se ele lhe entregasse o isqueiro e a pistola, ela cuidaria pessoalmente para que o barbeiro não atacasse mais ninguém.

A situação já se encaminhava para o seu melhor desfecho quando Augustinho, talvez dando vazão ao medo e frustração experimentados nas últimas horas, decidiu agredir o empresário. Deixando o isqueiro cair e aparentemente esquecido de portar uma pistola, o seqüestrador lutava com selvageria para manter o barbeiro atrás da psicóloga. Já esta, era empurrada de um lado pelo empresário e de outro pelo idoso que ora tentava desferir socos no adversário, ora lamber-lhe o rosto ferido e pálido. Em meio à luta, Roseana era atingida por ambos. Prestes a perder a consciência ela conseguiu dar a ordem pelo rádio: “agora, invada agora”...

Alguns dias depois, a psicóloga foi elogiada em público por seu comandante. Segundo ele, todos do grupo deveriam admirar sua astúcia que lhe permitiu cortar o próprio cabelo para enganar o seqüestrador e concluir a operação sem baixas. Para satisfação da moça, este foi coerente ao próprio conselho e passou a cumprimentá-la todas as manhãs.

Quanto aos personagens do evento que promoveu-a em celebridade, soube que Augustinho se recuperou bem e, menos de um mês depois, fechou o salão para viver com familiares no interior. Já para Otávio Ribeiro, as coisas foram mais complicadas: não retornou ao trabalho acabando recolhido a um luxuoso sanatório.

Segundo o parecer da doutora Roseana Pacheco, o excesso de trabalho levou o homem a se desconectar da vida e das transformações físicas decorrentes do próprio envelhecimento. Ela suponha que os momentos quinzenais de relaxamento na barbearia permitiram que emergisse do torpor. Infelizmente, a retomada de consciência ocorreu numa versão concentrada e violenta de crise da meia-idade sendo o barbeiro o objeto de sua frustração.

Por tudo que havia descoberto, ela acreditava que poderia ajudar Otávio Ribeiro a experimentar um retorno ao convívio social. Assim, pediu uma autorização a seus parentes para poder visitá-lo. Organizava suas folgas na polícia para ir ao sanatório de quinze em quinze dias, ocasiões nas quais o empresário costumava ter suas crises. Mas seria um trabalho árduo. A condição mental do paciente era tão delicada que ele definhava continuamente e ainda se mutilava. O pior era que as crises quinzenais eclodiam devido às visitas à barbearia das instituição.

O parecer da doutora era de que, melhor que interromper os cortes, o empresário deveria continuar tendo a oportunidade de enfrentar seus medos; só assim melhoraria. Por isso, de costume ela chegava um pouco antes que Otávio Ribeiro cortasse o cabelo numa tentativa de tentar fazê-lo entender que ninguém lhe faria mal; muito mesmo o barbeiro da instituição psiquiátrica; sem confessar a doutora o achava um jovem profissional até bastante interessante.

Infelizmente, a visita de hoje corria o risco de perder o propósito, o trânsito estava pior do que ela imaginara e não se podia fazer muita coisa com o empresário após seu cabelo ter sido cortado; ele perdia o controle pro completo e precisa inclusive ser amarrado para não mutilar o próprio rosto.

Longe dali, na barbearia de uma certa instituição psiquiátrica um envelhecido empresário imobilizado por uma camisa de força recebia um conselho:

_ Pare de gritar, meu caro. Depois de tanto tempo, você já devia estar acostumado ao maior apreciador de seu delicioso tipo O negativo.


quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Noite no campo




Até bem pouco tempo, eu tinha certeza de ter nascido na Alemanha errada; a atual juventude alemã me enojava. Me incomodava particularmente a crença de alguns jovens de que nós, os legítimos alemães, havíamos causado grande sofrimento a judeus, ciganos e outras aberrações. Segundo eles, milhões de almas ainda hoje, estariam sofrendo nos lugares de seus martírios originais.

Foi por causa desse tipo de ideia, que há alguns meses eu quase quebrei a cara de uns almofadinhas no colégio e só não o fiz, porque alguém propôs algo mais interessante. Conforme disseram, caso eu estivesse certo e as vítimas do nazismo não fossem gente e muito menos tivessem alma, uma noite num antigo campo de concentração considerado assombrado, não teria maiores consequências. Por outro lado, se os almofadinhas tivessem razão, eu haveria de encontrar alguns espíritos por lá e teria de me desculpar.


Casado o dinheiro da aposta, apanhei minha bicicleta e cobri os cinco quilômetros de Munique até Dachau numa noite chuvosa. Não foi difícil entrar no antigo campo pois as autoridades responsáveis por sua administração, não se dignavam a investir em segurança acreditando que ninguém macularia o lugar. De acordo com o combinado, apanhei meu colchonete e rumei para um dos chuveiros a fim de passar a noite na sala de morte.

Surpreendido, devo confessar que no início assustei-me com um bando que vi aos berros na porta da câmara de gás, mas logo veio a decepção; tinham tido uma ideia melhor que a minha. As suásticas e insígnias nazistas nas roupas dos agressores não davam margem de dúvida quanto ao que acreditavam; no chão um bando de garotos com cor e aparência erradas recebia chutes enquanto era verbalmente agredida. Assim que me viram, aqueles que eu supunha serem alemãos dignos, sorriram e me convidaram para beber cerveja; atrás deles, no chão do lado de fora da câmara, ficou um bando de farapos ensanguentados.

Quando estava prestes a entrar na sala, meu pé foi retido com muita força por um dos rapazes agredidos; ele me implora “não vá, não vá”. Na hora não pude acreditar que o maldito pudesse ter a ousadia de me pedir ajuda e terminei aquilo com um pontapé na boca do infeliz.

Entrei na câmara rindo e meu novos colegas me fizeram um brinde. Foi quando as portas se fecharam e minhas vias áreas começaram a ser corroídas por uma espessa fumaça no mesmo instante que minha carne descolava-se dos ossos como se incinerada por um fogo invisível. Em minha agonia, eu era incapaz de distinguir quais eram de minha autoria e quais gritos vinham de meus companheiros que agora não passavam de esqueletos agonizantes. Então quando acreditei que uma dor capaz de descontrolar meus esfincteres não pudesse ficar mais intensa, percebi que estava enganado. Próximo do fim, um coro de orações me trouxe um fio de esperança; eram os jovens espancados que, do outro lado da porta, proferiam preces a Deus em meu favor.

Devo ter desmaiado pois na manhã seguinte fui encontrado pelos seguranças de Dachau e levado a um pronto socorro. Contudo, após a primeira noite lá, acabaram me trazendo para esse hospital psiquiátrico. Graças aos resultados normais de meus exames, nenhum dos médicos acreditou que meus gritos de dor e desespero tivessem origem somática; a loucura ocupou o lugar de um diagnóstico desconhecido. Então, desde a noite em Dachau peço duas coisas a Deus: perdão por não ter escutado aquela alma que me suplicou para não entrar na câmara de gás e para que ela e suas companheiras venham aliviar com suas orações, a purgação que passei a compartilhar, noite após noite, com os antigos soldados do campo de Dachau.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Reconhecendo Papai


Maria, minha empregada, sofria de uma incapacidade congênita de ser sutil. Exigia aumentos ou reclamava da rapidez com a qual eu desfazia seu serviço de modo tão natural quanto me dava bom dia. Por algum motivo, essa crueza sempre me divertira sobremaneira, pelo menos até aquela manhã de quarta-feira, seis de agosto, quando me acordou às sete e meia dizendo:

“Seu Paulo, ligaram de San Miguel. Disseram que seu pai morreu num acidente de carro.”

Talvez para na maioria das pessoas a pergunta “tem certeza?” fosse motivada pela esperança de que tudo não passasse de um engano. Para mim, contudo, ela foi feita para cumprir aquele que eu considerava ser um comportamento educado.

Quando Maria mencionou a palavra “talismã” soube que não havia engano. Segundo me contou no início o telefonema parecia um trote, pois seu interlelocutor perguntava se ali havia alguém cujo apelido era talismã. À exceção da carteira de habilitação, explicava a voz do outro lado, o morto só portava com ele um velho pedaço de jornal com essa palavra e um telefone escritos nele. Minha empregada terminou seu relato aconselhando-me a esperar antes de partir para San Miguel: “o pessoal do tempo ainda não sabe se o tal Valquíria passará por lá. Por ser muito perigoso ir hoje”. Depois, virou-se e foi limpar o andar de baixo.

Mário nunca me chamava de Paulo, apenas por esse apelido idiota de criança. Não era capaz de se referir ao seu primogênito pelo nome nem mesmo num pedaço de papel. O telefone rabiscado também era típico, a bebida por certo tinha contribuído para piorar sua já péssima memória. Não que eu tenha lhe dado a oportunidade de decorar o número. Da mesma forma que os últimos dois anos, nosso derradeiro contato seria sem palavras. Eu lhe reconheceria o corpo e estaríamos conversados.

Como havia o risco de o corpo demorar a ser liberado, meia hora após ter sido advertido por Maria já havia ligado para o único hotel de San Miguel e feito uma reserva. Algum tempo depois, entrei na rodovia 67 para iniciar meu trajeto de aproximadamente seiscentos e cinquenta quilômetros até a pequena cidade. Se não era a primeira, por certo seria a última vez que Mário me dava trabalho.

Apenas o relógio no painel do carro me fazia crer estar dirigindo às nove da manhã e não da noite. Como se estivesse em conluio com minha empregada, o vento contra tentava deter meu avanço. As gotículas de chuva espalhadas no parabrisas, por sua vez, causavam dor aos meus olhos conforme iam ampliando os faróis altos dos veículos que fugiam em sentido oposto. Mas, incapaz de aceitar qualquer coisa que me contrariasse desde que recebera a primeira palmada no hospital, segui em frente, rumo à cidade e quem sabe, ao furacão Valquíria.

Enquanto lutava para manter-me em linha reta imaginava como estaria a cidade. Estivera lá apenas uma vez na tenra infância acompanhado por meu genitor e minha irmã caçula. O fato de o lugar ser à época sede de uma grande indústria química e ter, por conseqüência inúmeros trabalhadores ali residindo, tornavam freqüentes as visitas do vendedor Mário. Entretanto, percorrer a distância até a cidade deixou de compensar quando a tal indústria se mostrou por diversas vezes a mais poluidora do continente e acabou desmantelada pelas autoridades. Sem ter o que lhe evidenciasse no mapa, San Miguel perdeu praticamente toda sua população. Já o vendedor sem clientes descobriu a bebida. Que diabos o teria levado aquele lugar agora abandonado?

Pelo rádio soube que San Miguel seria colhido pela porção esquerda do furacão. À semelhança da maioria dos humanos destros, o sinistro também era o lado mais fraco daquele tipo de fenômeno atmosférico. Isso não impediu, entretanto, que a resistência imposta pelo vento e a má visibilidade tornassem minha viagem muito mais longa que o calculado. Exausto e com a musculatura posterior dos ombros queimando entrei na cidade. As edificações estavam muito menos coloridas e num estado bem pior do que imaginara. Provavelmente muitas delas não passariam incólumes mesmo ao braço ruim do furacão.

Era por volta de uma hora da madrugada quando cheguei ao hotel. Sabia que teria de esperar até de manhã quando o morgue estaria aberto. Em meio a tanto cansaço e aborrecimento, uma notícia animadora: excepcionalmente um funcionário do necrotério, Edgar, estaria à minha espera. “Para que o senhor possa voltar logo para a cidade grande” concluiu seu recado o prestativo recepcionista. Desculpei-me pela reserva não utilizada e ofereci-lhe uma compensação financeira, mas ele disse que não tinha importância. Pareceu-me que a falta de visitas da cidade grande, fez com que os moradores de San Miguel passassem a valorizar excessivamente os que de lá viam como eu; talvez disso decorresse a seqüência de gentilezas

Mesmo com as orientações recebidas no hotel tive certa dificuldade para localizar o necrotério municipal. Quando por fim o encontrei foi preciso dar a volta no imóvel a fim de chegar ao estacionameno. O prédio me pareceu excessivo para seu propósito; ainda que considerasse o período que a cidade pulsava de vida. Ao descer do carro, o vento forte e chuva castigavam meu rosto, mas à distância pude divisar a silueta de um homem em pé ao lado de uma porta de vidro. Pela brancura, Edgar parecia só ter tomado sol o bastante na vida para não ter raquitismo. De resto, ele seguia o mesmo padrão de servilidade do funcionário do hotel; ofereceu-me a mão excessivamente quente e desejou que tivéssemos nos conhecido numa situação diferente.

Apresentações feitas, o jovem sugeriu que a melhor forma de lidar com aquela situação seria reconhecer o corpo o quanto antes. A entrada do edifício dava acesso a um escritório no fundo do qual havia uma porta vai-e-vem. Dali se atingia as entranhas do prédio. Enquanto seguíamos por um imenso corredor deixávamos para trás várias portas fechadas. Antes que precisássemos tomar o próximo corredor à esquerda, nos deparamos com um aviso escrito em letra grosseira: geladeira.

Tomando por referência o número de vezes que havia pensado em Mário nos últimos anos, causou-me surpresa perceber que a suposta indiferença a qual o tinha relegado, não era tão convicta assim. Quando adentrei na sala fria, meu coração pareceu submergir num tanque de adrenalina, a velocidade de seus batimentos era tal que me era impossível separá-los uns dos outros. Uma gaveta estava para fora, dentro dela um corpo coberto por um campo cirúrgico laranja.

O solícito funcionário me disse que se desejasse poderia fazer o reconhecimento e passar alguns instantes a sós com meu pai. A ideia de remover sozinho o pano laranja me horrizava, mas não tanto quanto deixar que o rapaz percebesse meu medo. Sozinho, segurei a fina película de algodão que nos separava. A morte, eu bem sabia, tem o dom de nos transfigurar, transformando-nos num esboço de traços grotescos. Conforme puxava o tecido, potenciais rostos fúnebres me surgiam e o músculo em meu peito acelerava um pouco mais. Entretanto, a feição que se apresentou não estava na minha lista imaginária, era a que jamais poderia ter sido concebida por mim: a inexistente!

O rosto à minha frente não era o de Mário, tampouco era o rosto de qualquer ser humano. Estava completo: olhos, sobrancelhas, nariz, boca...nada faltava em absoluto! Ele carecia, contudo, de uma identidade. Aquela coisa indefinível que permite ao cérebro distinguir uma expressão humana! Era como olhar para um manequim de vitrine barato.

Graças ao medo transmutado em curiosidade, toquei o corpo e descobri que a clavícula esquerda possuia um calo ósseo exatamente onde Mário sofrera uma fratura. Lá estavam ainda as inúmeras varizes; as que permaneciam íntegras e as que se romperam em diferentes ocasiões da minha infância. As semelhanças continuavam: operação de apendicite, mesma estatura, cor da pele e cabelo. Não fosse pelo “não-rosto”, aquele por certo seria quem eu buscava.

Quando Edgar decidiu que eu tivera privacidade suficiente voltou à sala interrogando-me com seu olhar.

_ Há algo errado com esse corpo...

_ Então, o senhor quer dizer que esse não é seu pai, não é?

_ Não, quero dizer exatamente o que disse. Que não dá para ter certeza!

_ Sei que é um momento difícil, senhor, mas o corpo está em perfeito estado. De fato, dada a natureza do óbito é de se admirar que ele apresente tão poucos sinais de trauma. Basta que confirme se é ou não seu pai! A foto na carteira de habilitação não deixa dúvida que ele é Mário Nogueira dos Santos. Não é o nome de seu pai?

_ É sim, mas não estou certo que...

_ Acalme-se, por favor. Creio que não foi uma boa coisa tê-lo deixado soz...

_ Droga! Você viu o rosto dele?

_ Claro que sim! Não acabei de mencionar sobre a semelhança da foto?

_ E era isto que estava na carteira de motorista?

Meu dedo indicador levou o rapaz a olhar para o corpo pela primeira vez desde que eu chegara. Enquanto ele fitava o cadáver, percebi a cor fugindo-lhe da face.

_ Meus Deus! Ele não estava assim quanto fiz a necrópsia pela manhã, eu juro! Preciso ligar para meu chefe, ele é médico. Talvez seu pai sofresse de alguma doença contagiosa...precisamos ter certeza de que não vai se espalhar.

_ Edgar. Sou biólogo e posso te garantir que não há nenhuma doença, contagiosa ou não, que cause esse tipo de mudança.

Inútil. Como uma criança encarregada por um adulto de contar-lhe coisas erradas durante sua ausência, o rapaz saiu de onde estávamos rumo ao escritório na entrada. Apenas alguns segundos depois, voltou passando por mim enquanto praguejava muito e dizia algo sobre um rádio. Tomou o corredor à esquerda, no qual eu ainda não havia estado e entrou numa saleta com divisórias de vidro transparente próxima a uma espessa porta metálica. Acompanhei-o. Ao vê-lo utilizando o rádio conclui que as linhas telefônicas estavam inoperantes devido ao furacão.

Já na sala, descobri que a simpatia que Edgar tinha demonstrado até então, esgotou-se assim que esse terminou de falar com seu superior. Agora ele estava indiferente a tudo ao seu redor: fosse minha presença ou o vento que lá fora arremessava coisas contra as paredes do necrotério. Ignorado, sentei-me enquanto observava o rapaz andando de um lado para num inócuo ritual para acelerar o tempo. A eternidade para ele durou exatos cinco minutos quando seu aguardado chefe apareceu na porta:

_ Prazer, Senhor Paulo. Antônio Conceição às suas ordens – foi dizendo com a mão estendida.

Demorei um átimo para responder-lhe o gesto; causou-me estranheza que aquele desconhecido soubesse meu nome. Com atraso, veio-me a idéia de que Edgar deveria ter-lhe contado sobre mim. Também atribui ao cansaço à impressão de que o recém-chegado não viera pela porta da frente do prédio.

_ Prazer, doutor.

_ Por favor, senhor Paulo, a medicina é algo do passado.

“É com essa respiração arfante e esse excesso de peso, parece que o abandono aos princípios da saúde não ficou só nas palavras” - pensei.

_ Mas seu diploma permite que o senhor dirija isto aqui, não é?

_ Sim, sim. Formalidades, sabe como é. Hoje prefiro ser conhecido como alguém tem a honra de guiar o rebanho de Deus nessa cidade. Agora se me dá licença, preciso trocar algumas palavras com meu assistente. Ele deve ter algo muito sério a dizer para chamar-me a esta hora.

A. Conceição puxou seu subalterno para a porta da sala e se interpôs à sua frente. Ainda que não me fosse possível ouvir o que Edgar falava ou ver seu rosto era óbvio que ele estava nervoso tal era seu repertório de gestos. Já o chefe, inicialmente impassível, começou a se agitar e, em pouco tempo, ambos pareciam executar uma desagradável coreografia. De posse da carteira de motorista de Mário em mãos, o médico revezava seu olhar incrédulo entre o documento e eu. Terminado o relato, Edgar e o chefe começaram a sair da sala, mas eu os impedi:

_ Então, doutor, o senhor pode me explicar o que acontecendo? Preciso saber se aquilo lá é quem eu procuro. Não posso ficar aqui para sempre.

_ Senhor, Paulo. Ainda que quisesse, não lhe seria possível sair da cidade nas próximas horas. Na verdade, dada a força do vento, não creio que seja prudente nem sair deste edifício. De qualquer modo, precisamos de algum tempo para resolver essa questão da identificação. Assim, saberemos se “aquilo” é ou não, seu pai!

_ Me desculpe, doutor. Não quero que me entenda mal. Como tinha dito a Edgar, diversos sinais no corpo indicam que ele é o certo. Há também a documentação. Enfim, só quero saber...o rosto dele, sabe? Deixe pra lá, só o libere logo para que eu acabe com isso.

_ Está bem. Por que não me acompanha num chá para que possamos discutir os detalhes da liberação?

Comecei a perceber que minha crescente irritação só iria manter-me mais tempo lá e, apesar de duvidar que naquele momento meu corpo possuisse órgãos destinados à digestão, aceitaria participar de um banquete se isso me tirasse daquela cidade. Sem protestar acompanhei o chefe e seu subordinado rumo à saída do prédio, mas pouco antes da porta de entrada tomamos um corredor à direita o qual não tinha percebido quando cheguei; comecei a me dar conta que o morgue era um imenso conjunto de corredores e salas. A caminhada terminou numa cozinha improvisada. Edgar apanhou duas xícaras e as encheu de chá, ofertando uma para A. Conceição e outra a mim. Na expectativa de que uma atitude mais cooperativa me tirasse dali, comecei a sorver o líquido quente.

De repente, o calor e aroma do chá inglês pareciam estar atendendo alguma necessidade física oculta de meu corpo, tal o bem-estar que se apossou de mim. Partindo do tronco, a sensação prazerosa foi seguindo em direções opostas e logo, o desejo de deitar e aproveitar o momento tornou difícil que eu sustentasse a cabeça. Em seguida, já não podia identificar qual de meus anfitriões falava comigo:

_ O senhor está se sentindo bem?

Quando despertei estava deitado num velho sofá do escritório. Pelo cheiro do móvel, podia-se jurar que ele era usado quando a geladeira não tinha espaço suficiente. Apesar da camada de pó, o mostrador do relógio de parade marcava três horas da madruga; dormira por cerca de uma hora e meia. Era estranho que o cansaço tivesse me arrebatado de modo tão súbito, mas não era de todo impossível já que dirijira tempo demais sob tensão.

Com dificuldade para manter o equilíbrio sai caminhando pelas dependências do necrotério enquanto gritava por Edgar e seu chefe. Ninguém atendeu aos meus chamados. Mas eles não eram os únicos a se ausentaram, na gaveta onde o suposto corpo de Mário devia estar repousando não havia mais nada!

Olhando pela porta de entrada constatei que objetos pouco mais pesados que um homem grande mantinham-se no lugar com teimosa dificuldade. Seria impossível que ambos tivessem saído pela porta da frente carregando o corpo. Notei também que além do prédio no qual me encontrava somente uma construção a quase duas quadras tinha luz: um templo religioso. Então me lembrei do que o chefe de Edgar tinha dito sobre sua ocupação preferencial, era provável que ele estivesse ali com seu rebanho orando para que o furacão os poupasse.

Voltei para dentro a fim de me proteger do vento e decidir o que fazer. De um lado estava minha impaciência nata a estimular-me a ir até o templo correndo. De outro, minhas pernas ainda sem coordenação pelo desmaio. Felizmente, quando a primeira já estava por arrebatar-me numa empreitada suicida, ouvi uma porta batendo próxima à sala do rádio. Andar no passo mais rápido que me era possível não foi o suficiente para alcançar a pessoa antes que esta deixasse o local fazendo o mesmo estardalhaço de que quando entrara.

Quando por fim cheguei ao local de onde vieram os sons, descobri que se tratava da porta metálica ao final do corredor da sala do rádio. Meus músculos pareciam anestesiados e precisei de muita força para movê-la. A pouca lubrificação explicava o porquê de tanto ruído. À minha frente, uma vela que se afastava no escuro permitiu perceber que se tratava de um túnel bastante longo. Mesmos com meus gritos, o portador da fonte de luz continuou se afastando e, devido à lentidão imposta por minha condição física, tive que compensar com o tatear de paredes a limitação imposta pelo escuro.

Impossível precisar quanto tempo depois minhas mãos tocaram uma porta semelhante àquela pela qual já passara. Empurrando-a, passei a ouvir uma voz clamando a toda intensidade:


“Eis o sinal!”

A que um coral respondia:

“Obrigado, ò Pai”

Identifiquei nas vozes A. Conceição estimulando seu rebanho. Empurrando ainda mais a porta percebi que o túnel me trouxera a uma das laterais do templo. Fazia sentido: uma vez finalizados os procedimentos funerários, os falecidos podiam ser velados sem o incômodo de transportá-los pela rua. A ladainha repetida à exaustão era proferida por dezenas de pessoas que formavam um círculo em torno do altar. Mas ao invés de um ídolo qualquer, o objeto de adoração era o corpo sem rosto. Ele estava nu e à sua volta havia várias facas e punhais. Edgar, com uma vela na mão, acabava de depositar mais dois objetos em torno dele: a carteira de motorista de Mário e seu inseparável pedaço de jornal.

Constatei então que minha presença não era segredo:

_ Senhor, Paulo. Achei que não acordaria mais hoje! Talvez Edgar tenha errado na dose ou quem sabe foi outro milagre que tenha se recuperado tão rápido? Mas venha, venha degustar a obra divina. Tome seu lugar de honra. Afinal, de todos nós, o senhor foi o escolhido para ser filho do portador do sinal.

_ “Sinal”?

_ Sim. De que ele está voltando!

_ Do quê você está falando?

_ Não percebe? Todos nós depois de mortos guardamos por algum tempo algo que permite que nossas antigas moradas sejam reconhecidas: a alma. Esta se libera gradativamente conforme o corpo se desfaz. Mas o invólucro de seu pai já está vazio! Eis o motivo de não poderrmos indenticar nele as feições do antigo dono: falta-lhe a alma! Tal milagre só pode representar um aviso de algo muito importante. Este é um sinal de que nosso Pai em breve estará de volta para salvar os seus! Não se sente honrado, senhor Paulo? De ter alguém de sua família servindo a um propósito tão elevado? Junte-se a nós e venha se tornar um com o instrumento de Deus.

A um sinal de seu líder as dezenas de pessoas que estavam em volta ao corpo foram se afastaram formando um corredor entre mim e o altar. Diante de tanta loucura, minha reação não podia ter sido pior:

_ Seus cretinos! Esse daí não é instrumento divino coisa nenhuma! Podem louvá-lo o quanto quiserem, mas acreditem Deus jamais escolheriam um bêbado irresponsável para representá-lo!

Minha suposta ingratidão em não reconhecer o privilégio que me fora concedido pelo altíssimo transformou os cordeiros de A. Conceição em inquisidores ávidos para depurarem meus pecados. Fui agarrado com violência e enquanto me traziam à força até o altar recebia socos e pontapés. Ao término do trajeto eu estava bastante machucado e me mantiveram de joelhos, seguro pelos braços e cabelos.

_ Infiel! Reconheça a grandiosidade do que está à sua frente – gritava o descontrolado médico-guru enquanto empurravam meu rosto sobre o “não-rosto” do morto.

“Reconhecer”? Então, volto à primeira vez que tive dificuldade em reconhecer o suposto dono daquele corpo. Acabo de completar dezoito anos e um antigo conhecido de Mário me avisa que ele está em dificuldades. Fazia seis anos desde que ele abandonara minha mãe trocando-a em definitivo pela bebida. Não sei por qual motivo, mas vou procurá-lo no local indicado pelo tal sujeito. É domingo de manhã bem cedo, mas os botecos já estão repletos de homens em busca do líquido que os escraviza. O viciado que quero, contudo, não está entre os demais. Pergunto em vários bares e pago inúmeras doses, até que por fim, alguém me diz que o procurado está sentado numa praça ali perto. Conheço o lugar, Mário me levava lá para brincar quando pequeno.

Chegando à praça, olho ao redor, mas não há ninguém ali. Ou melhor, há um mendigo mal cheiroso, cabeludo e mais sujo do que se possa imaginar ser possível. A criatura está sentada numa calçada com um olhar perdido para o chão. Lanço um olhar de desprezo para aquilo que já foi um homem e sigo em frente. Em vão. Quem busco, não está nas proximidades. Decido voltar e ir embora para casa. Estou praguejando contra o homem que disse tê-lo visto naquele lugar quando volto a avistar o mendigo petrificado. Dessa vez, algo me faz prestar atenção nele. Aos poucos ele vai se tornando familiar e me aproximo. Contendo a ânsia de vômito, chego próximo ao homem e temendo a resposta pergunto: “pai, é você?”. Antes que o lento movimento para erguer a cabeça me permita ver seus olhos, uma voz emerge do abismo e me responde “talismã?” Com lágrimas nos olhos, desejo não ser seu filho...

Também estava com os olhos molhados quando ouvi A. Conceição ordenar:

_ Tirem esse miserável daqui! Ele não é digno de estar entre nós.

Inúmeras mãos me afastaram bruscamente do corpo e, por um motivo, tentei evitar a perda de contato. Então, me vi com cerca de cinco anos. Estou lutando com todas minhas fibras musculares para evitar que um dos garçons de Mário me arraste para fora de seu restaurante. Dentro da cozinha do estabelecimento, o patrão e um ajudante tentam conter o vazamento de um enorme butijão de gás. Imploro a meu captor que me deixe ficar, mas sua a força é muito maior que a minha. Antes que ele me coloque no chão do outro lado da rua, paro de lutar e prometo que ficarei quieto. Minha primeira mentira. Assim que o pobre se descuida saio correndo; o carro que quase me atropela quando cruzo a rua, impede que meu guardião me alcance. Esbaforrido entro na cozinha, e usando a única arma que conheço imploro: vamos embora, papai! Mário que nunca pôde com minhas lágrimas me tira dali. Assim que atingimos a distância suficiente para não sermos atingidos, uma explosão dá fim à vida do ajudante de cozinha e à metade do restaurante. Meu pai me abraça e me chama de um nome esquisito: “meu talismã”.

Trinta e cinco anos depois, eles continuavam me levando para longe do altar. Percebi que da mesma forma que tinha me livrado daquele garçom, precisava me libertar das mãos que me arrastam ou perderia Mário. Como outra promessa vã estava fora de questão, reuni forças desconhecidas e desferi potentes socos e cotoveladas nos fiéis. Surpreendidos pela reação inesperada eles me soltaram e parti rumo ao corpo. Apanhando um dos punhais que se encontrava a seu lado, agarrei o líder religioso e pressionei-lhe o instrumento perfurante contra o pescoço.

_ Não se importem comigo, meus irmãos – foi a resposta do médico à ameaça. Continuem louvando o escolhido. Nosso pai não nos abandonará e em breve estará aqui para salvar os seus.

_ Cale a boca! – gritei pressionando um pouco mais a lâmina. Deixe-me sair daqui com o corpo ou você vai estar deitado ao lado dele antes que suas ovelhas possam salvá-lo.

Os fanáticos começam a abrir espaço. Com dificuldade para manter meu refém imóvel comecei a apanhar os pertences do falecido. Primeiro, sua carteira de motorista e, por fim, o velho pedaço de jornal do qual ele jamais se separava. Não havia mais vestígio dos caracteres originalmente impresso nele, apenas meu apelido e número de telefone manuscritos eram legíveis.

_ “Corpo”? Pensei que para você ele era um “bêbado irresponsável” – esbraveja A. Conceição no momento em que finalmente me lembro do significado daquele pedaço de papel.

Retirando o punhal de seu pescoço, viro-o de modo que este fique de frente para mim:

_ Não, aquele não é um corpo, muito menos um bêbado, é meu pai. Entendeu? – digo com o mesmo orgulho com a qual meu velho não se cansava de mostrar para todos o jornal com meu nome entre os aprovados do vestibular.

As lágrimas surgiram quando percebi que não mais o ouviria dizendo “talismã” ou “meu orgulho”. Já não me importava que A. Conceição tivesse tirado o punhal de minhas mãos nem que naquele momento o objeto estivesse gravado em minha barriga. Tomado pela dor, me arrastei com dificuldade por sobre meu próprio sangue, ora escorregando, ora progredindo alguns centímetros em direção ao altar. Estranhamente, ninguém se opôs, talvez pensassem que até um ingrato como eu merecia ser perdoado antes do fim. Incapaz de ficar de pé encostei-me na mesa ritual abaixo de onde se encontrava meu pai. Consegui erguer o braço esquerdo e puxar-lhe a mão fria para junto da minha. Então, apertei-a com entusiasmo, como deveria ter feito há dois anos. Naquele dia, recusei seu o aperto de mão quando soube que ele não voltaria à clínica de reabilitação; disse que queria viver seus últimos dias sem cobranças. Talvez tenha sido a emoção de finalmente me dar conta de minha perda ou quem sabe foram os muitos golpes na cabeça, mas sem dúvida, naquele momento senti meu aperto sendo retribuído.

“Será possível que ele ainda está vivo?” pensei. Desesperado, tentei mais uma vez erguer-me para vê-lo. Mas sua mão e braço que se encontravam pouco acima de minha cabeça me impediram. No instante seguinte, vi por um breve segundo A. Conceição, seu rebanho e tudo à minha volta ser envolvido pelo fogo.

“Deus veio” pensei.

Quando acordei sobressaltado numa cama de hospital, minha irmã caçula que morava no exterior estava ao meu lado. Abraçou-me com força e me beijou diversas vezes no rosto enquanto me encharcava com suas lágrimas. Achou que eu não iria resistir aos ferimentos causados pela explosão.

“Explosão?”

Fui informado então de que quando o furacão atingiu as instalações a antiga indústria química de San Miguel ele liberou o conteúdo de um tanque que se suponha vazio. Milhares de toneladas de gás etileno acabaram sendo liberadas. Daí, os bombeiros acreditavam que um raio ou faísca teriam atingido a substância altamente inflamável. A pior parte da explosão colheu o templo da cidade. Todos os que estavam lá “orando por suas vidas”, à exceção de mim, morreram queimados. Supostamente eu escapara porque estava atrás do altar.

Em resposta ao meu relato fantástico sobre os acontecimentos de San Miguel, ela respondeu que tudo estava bem; os médicos já a tinham prevenido quanto aos efeitos alucinatórios do etileno. Certo de que jamais convenceria a cabeça-dura, não insisti com a história. Então, perguntei-lhe sobre o sepultamento de nosso pai. A esperança que motivou a pergunta se concretizou quando ela me disse que tinha decido esperar que eu acordasse para sepultá-lo; uma espera de dois meses.

Três dias depois, ainda com muita dificuldade para andar, cheguei ao velório de meu pai em uma cadeira de rodas. Fui conduzido até ao lado da urna que abrigava seu corpo e, nervoso, pedi a amigos que me ajudassem a ficar de pé. Assim que enxerguei a parte superior do caixão percebi que ele estava lacrado. Uma pequena janela de vidro permitia apenas uma visão parcial do rosto de quem repousava ali. Lá dentro, um par de olhos cerrados compunha a conhecida expressão de meu querido pai quando dormia.

sábado, 10 de julho de 2010

Inconsciência Ecológica

Somos criaturas antinaturais e, ainda que insconciente, tal constatação é a muito evidenciada. Daí, mitos ancestrais como o do deus grego Prometeu, forçado a nos conceder fogo e postura bípede porque seu irmão fez os animais mais rápidos e fortes. Contudo, discordo de que os dons emergenciais tenham compensado o erro de nossa concepção.


Na verdade, a essência diversa nos incapacita viver como os outros seres. Veja por exemplo, o tão festejado lado gregário humano. Para os que desconhecem o fruto da árvore proibida e, por isso são irracionais, estar em bando é encontrar-se sob julgo da Natureza. Já para nós cuja “mente pensante” ousou dispensar essa força reguladora, agrupar-se significa não ter limites; o bando humano anula os indivíduos transformando-os numa entidade coletiva cuja monstruosidade não encontra rival.


Não à toa, toda vida desdenhei essa atração pelo coletivo. Contudo, agora no fim, peço por companhia como um ateu que ora com fevor a Deus pedindo salvação; difícil é crer que os eventos responsáveis por minha conversão se iniciaram há menos de duas semanas.


Naquela manhã fui acordado mais cedo pois cabia a mim, o infectologista do grupo, decidir quando e como alguém poderia sair ou entrar; sempre havia o risco da contaminação. De cima da muralha do acampamento podíamos ver um homem que se arrastava na frente do portão implorando acesso. Por mim, ele morreria. Deixar entrar um desconhecido, por certo contaminado, não era lógico. Mas acabei cedendo, as três centenas de pessoas do grupo acabariam por me considerar um monstro pior do que os que nos rodeavam caso não o fizesse.


Ainda sem saber se o rapaz sobreviveria, coletei seu sangue e deparei-me com algo improvável: não havia anticorpos zumbis. Logo, ele realizara a proeza de andar por aí sem que nenhum dos mortos o arranhasse ou mordesse.


Uma semana após chegar, ele estava hidratado e decidimos interrogá-lo. Seu nome era Francisco e tinha vivido os últimos anos nas montanhas que ficavam no Noroeste do estado. O rigor do último inverno matou as plantas e os animais de sua família. Quando as reservas acabaram foi preciso decidir entre morrer de inanição ou arriscar-se em busca provisões. O resto não podia ser menos óbvio; farejados pelos zumbis, toda sua família foi morta.


Questionado sobre como escapara, recebemos com gargalhadas sua resposta: depois de matarem a última pessoa de sua família, os cadáveres ambulantes deram-lhe as costas. Aos poucos, durantes as semanas seguintes, ele percebeu que poderia procurar alimento sem risco de ataque.
Louco ou não, era impossível chegar até nosso acapamento sem cruzar o mar morto. Há alguns anos, um piadista de nosso grupo, resolveu dar esse nome ao agrupamento de milhares de zumbis que estava a cinco quilômetros do acampamento. Confrontado por nossa incredulidade, Francisco disse que voltaria lá e poderíamos observá-lo à distância.


Percebi que se a história fosse verdadeira, poderíamos trocar de acampamento para um lugar mais apropriado para dar lugar aos acontecimentos programados para dali a uma semana. Um antigo condomínio do outro lado da cidade era a melhor opção. Sem comunicar minhas intenções aos demais participantes do interrogatório, prontifiquei-me a acompanhar Francisco. Outros quatro membros se ofereceram para ir conosco.


Partimos carregando a maior quantidade de armas e munições que não atrapalhasse nossa mobilidade. Descemos o caminho rochoso e avistamos a massa de zumbis acerca de meio quilômetro, estancamos de imediato. Um de nós, contudo, continuou. Tomado pelo súbito presentimento de que mandava à morte um homem ávido por aceitação, comecei a gritar-lhe para que voltasse, mas ele não me atendeu.


Mais e mais próximo das criaturas, vimos quando Francisco, sob vigilância de nossos binóculos, se tornou um entre muitos pontos do mar morto. Àquela distância e entre tantos corpos era impossível perceber alguma movimentação anormal que indicasse que ele estivesse sendo atacado. Inquietos, esperávamos qual o primeiro de nós decretaria quão tolo era ter esperanças de que o rapaz iria voltar, mas ele voltou. Destacando-se da multidão, trazia pela mão um zumbi que outrora fora uma mulher; sem protestar ela permitia ser conduzida.


Foi devido à ousadia que experimentei paradoxo de sentir carne pútedra e úmida firmente aderidas aos ossos de um zumbi “vivo”. Eufórico, exterminei-a com um tiro na testa e voltamos para o acampamento.


Cientes da boa nova, o pessoal do acampamento se deixou convencer de duas coisas: que seria mais fácil dar continuidade ao projeto biogênesis fora dali e que teríamos que nos mudar dentro de uma semana a fim de cumprir seu cronograma. Francisco era a única pessoal que não poderia concordar com a pauta, por não saber do que se tratava.


Para tornar mais digeríveis as minúcias biológicas, contei-lhe na linguagem mais leiga possível, que há quinze anos tínhamos decidido conservar em nitrogênio líquido nossos óvulos e espermatozóides. Que de lá para cá, tínhamos investido todo o conhecimento de nosso pessoal, constituído em sua maioria por cientistas da antiga universidade, na construção de equipamentos capazes de realizar uma gestação extra-uterina. Batizados de úteros mecânicos, esses aparelhos concluídos a cerca de seis meses, tinham recebido nossos gametas e iriam nos entregar seus primeiros recém-nascidos em uma semana.


A quietude com a qual Francisco ouviu meu relato foi substituída pelo destempero. Sem que ninguém pudesse contê-lo, gritava que aquilo seria um erro e que não deveríamos trazer ninguém a esse mundo. Para ele as coisas estavam boas como eram e tentar alterá-las atraria desgraça. Por fim, ele saiu correndo da reunião. Estávamos preocupados com nossos planos para nos preocuparmos com os acessos de loucura de um estranho.


Foram necessários três dias para encaxotar o que prestava entre equipamentos e tralhas dos mais variados. Partiríamos em dois grupos; o maior iria na frente levando os úteros mecânicos, as melhores armas, veículos e quase todo mantimento. Eu e o restante de nós, levaríamos água e comida apenas necessárias para um dia de caminhada; além de algumas armas de menor calibre.
No dia combinado, o primeiro grupo partiu cedo enquanto nós terminávamos de desmontar o acampamento. Era a primeira vez que via Francisco em três dias e pedi-lhe que fosse no primeiro grupo. Embora tenha concordado, assim que se viu fora dos portões, ele se desvinculou do grupo e desapareceu em meio às rochas.


Foram necessárias três horas de uma estrada acidentada para que o grupo chegasse ao mar morto e outras duas para cruzá-lo. Pelo rádio nos informavam que os zumbis não se manifestaram durante a travessia, nem mesmo ao serem esmagados pelos caminhões. Às vinte e duas horas, eles chegaram ao condomínio; imediatamente começaram os procedimentos de remoção dos zumbis.


Com o comunicado, partirmos. Próximo ao mar morto fui consultado: apesar de estar tudo pronto, poderiam me esperar para liberar as crianças. Disse-lhes que um velho já não pode pensar em si e que prosseguissem sem mim.


Senti e fiz questão apenas de realizar a contagem regressiva. À frente, os tiros iam iluminando a caminhada de meu grupo entre os mortos. No zero, gritos e salvas vindos do rádio marcaram o instante do nascimento e percebi o quão estivera errado.


Quando os zumbis surgiram, achei que tendência do Homem a formar bandos descontrolados era tão forte que persistia até depois da morte. Aquela seria a prova de que nem mesmo mortos nos submetíamos a Natureza, mas eu me enganei. Lembrei-me da frase “a natureza nunca nos engana; somos nós que nos enganamos*.” Do lado de lá, gritos chorosos anunciavam a chegada de cento e cinquenta bebês enquanto a alguns metros de mim, exatamente o mesmo número de meus companheiros era devorado sob uivos ferozes.


Agora sozinho, lamento que os malditos zumbis tenham voltado a seu amaldiçoado estado quiescente e não possam apressar meu fim. Parto percebendo que na morte, finalmente nos tornamos parte da Natureza.

*Jean Jacques Rousseau

O Despertar


Chegou um tempo no qual a indiferença à maldade humana era tal que uma pessoa só importava em não ser a vítima da vez. Nessa época também diziam que Deus não existia; ele não permitiria tanta injustiça. Mas os Homens estavam enganados; o criador apenas gozava merecido sono, após, no sexto dia, ter concluído a criação do mundo. Ao despertar de seu breve cochilo, contato em eras aos olhos humanos, o arquiteto supremo viu que em sua ausência, sua obra deixara de ser excelente. Reconhecendo no Homem o responsável pelo caos, Deus tirou-lhe o dedo opositor.

Irrecusável



Num dia qualquer percebeu que sua vez chegara. Para comemorar quase-escritor decidiu queimá-las; deseja que levassem sua grosseria para o inferno. Ele também não ficaria com as padronizadas, afinal, não precisava da piedade embutida naqueles pedacinhos de celulose mesclados com tinta. Nunca mais receberia cartas de recusa por seus trabalhos. Incinerando-as, o fogo purificador forjaria sua nova identidade: escritor.


Seu nome seria mencionado em todas as editoras do mundo e editores tremeriam ao ouvi-lo. Seria famoso e respeitado. Mostraria do que era capaz ao bando de autores-parasitas que por tanto tempo sugaram o que era seu por direito. Odiava-os e a seus livros inferiores. Especialmente a Machado Queiroz! Em sua opinião, o maior dos impostores.


Olhou para o relógio na parede e viu que precisa ser rápido; TK, seu contato do serviço postal, devia estar chegando. Lembrou que dias atrás tivera que ser duro com TK, mas no final ele decidiu pagar o favor que devia. Pouco depois que escritor terminou de embalar seu original, o carteiro tocou a campanhia. Claro que TK não era um carteiro qualquer, era o responsável pela entrega da correspondência do senhor Paulo Sandoval, editor-chefe da Editora Minerva.
Às quatro e meia da tarde, daquele dia qualquer, a correspondência foi entregue à assistente do editor-chefe.


_ Senhor, veja o que chegou!


_ Meu Deus, aquele malandro! Você sabia se ele estava trabalhando em algo novo?


_ Acho que ele quis lhe fazer uma surpresa.


_ Vamos ver.


Paulo Sandoval rascou a embalagem remetida por seu autor predileto, Machado Queiroz, e encontrou um maço de papel intitulado “A ultima recusa”. Ao retirar o manuscrito a caixa explodiu pulverizando seu escritório.

Do Pó aos Seres do Pó [1]



No início, o prefeito e seus assessores mais próximos, tentaram lidar com o problema em sigilo; usaram caminhões frigoríficos para armazenar aqueles que não tinham quem os reclamasse. Contudo, isso não foi suficiente, em pouco tempo começou a faltar vagas também para os que gozaram suas vidas no seio de uma família; nesses últimos casos, a solução foi começar a atrasar a liberação dos falecidos alegando o surgimento de problemas durante a necropsia. Por fim, a necessidade de obter trinta a quarenta novos lugares todos os dias, tornou a situação insustentável; era preciso comunicar aos cidadãos a incômoda realidade: não havia mais onde enterrar os mortos pois os cemitérios da metrópole estavam lotados.

O anúncio de que alguns corpos estavam esperando há mais de dois meses a oportunidade de serem enterrados causou comoção e o prefeito com seus aliados mais próximos foram obrigados a renunciar. Porém, uma vez alimentado o desejo de vingança da massa, concluiu-se que o impasse persistia. Já que uma medida provisória não impediria as pessoas de morrerem, os novos ocupantes da prefeitura propuseram uma assembléia popular para discutir a questão.

Na manhã combinada, os mais diversos representantes da sociedade reuniram-se num ginásio municipal. Na abertura da cerimônia, o novo prefeito lembrou que estava descartada a possibilidade de se construir um novo cemitério na cidade; outra conseqüência da falta de espaço. Dito isso, a primeira idéia a agremiar um número considerável de indivíduos, foi a da cremação. Infelizmente, uma proporção igualmente significativa da audiência, não concordava com o procedimento, afirmando que ele era contrário às crenças prévias de seus entes falecidos. Alguns, mais alarmistas, chegaram a afirmar que tal incinerar os mortos contribuiria para o agravamento do efeito estufa.

À medida que as horas passavam, novas propostas eram postas em pauta para na seqüência, serem recusadas. Já no início da noite, aventou-se a possibilidade de aumentar a rotatividade no uso das tumbas: cada ocupante passaria menos tempo em seu local de repouso eterno. Concluído esse período, seus restos seriam colocados em recipientes que ocupariam menos espaço. A princípio todos concordaram que essa parecia ser a solução mais óbvia, até que alguém lembrou da impossibilidade de se apressar a natureza; os falecidos só poderiam ser retirados de seus túmulos uma vez decompostos.

Então, a organização da assembléia fragmentou-se em centenas de conversas paralelas. Aos poucos, porém, a ordem começou a ser restabelecida pelos pedidos de atenção de um homem que tomara a palavra. O senhor de cabelos grisalhos era um renomado cientista e dizia ter a chave para o dilema funerário: a resposta estava nos aracnídeos, mais precisamente em um tipo bastante conhecido, o ácaro. A proposta era muito simples, os seres microscópicos se alimentariam dos cadáveres acelerando o retorno destes ao pó. O anúncio foi seguido de vaias, gargalhadas até mesmo de tentativas de agressão, felizmente contidas pelas forças de segurança presentes ao local.

A rejeição unânime, contudo, em nada afetou o proponente; ele continuava impassível e insistia que todos deveriam continuar prestando atenção ao que tinha a dizer. À medida que falava, a lógica inquestionável de seus argumentos, foi vencendo até os mais arredios. De acordo com o pesquisador, o uso dos ácaros não era nenhuma heresia; aqueles seres estavam consumindo restos humanos há centenas de milhares de anos. Obviamente, não corpos inteiros, mas isso era feito por outros seres. Para reforçar sua tese, o homem chegou a apelar para a questionável etimologia popular lembrando que a palavra cadáver derivava do latim “caro data vermibus”, ou seja, carne dada aos vermes. Em seguida, destacou que a utilização adequada dos ácaros não causaria problemas ao meio ambiente, já que se tratava de uma solução “natural”. A argumentação continuou e quando o dia seguinte amanheceu, a proposta do cientista foi aprovada sem que um voto sequer lhe fosse negado.

A fim de implementar a idéia aprovada, a prefeitura promoveu uma campanha de troca de travesseiros e colchões pela cidade: a municipalidade doaria novos artigos de cama enquanto os cidadãos cederiam seus itens usados. Isso era fundamental para a obtenção da quantidade de ácaros capaz de atender à demanda mortuária do município.

Os materiais velhos, recebidos na transação, foram gradualmente levados a um galpão no qual o cientista montou seu laboratório. Lá, usando tecnologias inovadoras, ele era capaz de obter um trilhão de ácaros a partir de um colchão com dez anos de uso; os travesseiros não ficavam muito atrás, já que após 6 anos de uso, dez por cento do peso destes eram constituído por ácaros.

Graças à boa vontade da população, em algumas semanas uma enormidade de ácaros foi arrecadada. Entretanto, nem todos eram do mesmo tipo, na realidade, foram obtidos cinco tipos diferentes de ácaros.

Dessa forma, para que a missão necrofágica dos pequenos seres fosse bem sucedida, algumas providências eram necessárias. Em primeiro lugar, era preciso combinar as características das diferentes linhagens numa espécie híbrida. Também era preciso estender a longevidade dos aracnídeos para que a reposição dos espécimes não fosse tão constante. Finalmente, a nova espécie deveria ser capaz de devorar qualquer tecido morto e não só pele; esses feitos foram alcançados graças à utilização de técnicas de biologia molecular.

Concluídos os experimentos, as estimativas iniciais sugeriam que a nova família de ácaros seria capaz de viver por até doze meses, ao invés dos dois a quatro habituais. Por último, a capacidade da nova espécie de consumir qualquer tecido morto rendeu-lhe, por parte de seu criador, o apelido hiena do pó.

Tudo pronto, os pequenos carniceiros passaram a ser distribuídos entre os serviços funerários da cidade. A utilização dos ácaros era bem simples; uma caixa contendo as microscópicas hienas era adicionada dentro do caixão pouco antes dele ser baixado à tumba. Os mortos que tinham seu funeral em urna lacrada, saiam do IML com a tal caixa dentro desta; nos demais casos, o recipiente era adicionado ao final do velório, momentos antes do sepultamento.

Os primeiros resultados demonstraram que as hienas eram capazes de decompor um adulto por completo em cerca de 2 meses. Assim que um corpo era decomposto, o pó restante era recolhido e, a partir desse material, os ácaros eram recuperados e podiam ser reutilizados enquanto sua sobrevida permitisse. Por outro lado, a parte do pó livre deles, ele era transferida para caixas de metal invioláveis; caso alguma família solicitasse, a caixa era transferida para o jazigo desta, mas se ninguém o fizesse, a prefeitura se encarregava dela.

Graças à celeridade das hienas do pó, em poucos meses a falta de espaço nos cemitérios já não era uma questão a ser resolvida. O novo prefeito passou a gozar de índices invejáveis de popularidade nas pesquisas de opinião; os números lhe garantiriam uma reeleição fácil. Na realidade, ele só seria derrotado pela nova celebridade da metrópole; o herói que com o poder da ciência devolveu aos mortos a oportunidade de um descanso digno, ainda que breve.

Talvez porque sempre existirão os que justificam seu fracasso a partir do sucesso alheio, pouco tempo depois, um grande jornal da cidade recebeu uma denúncia anônima contra a prefeitura. Segundo o denunciante, uma quantia considerável de dinheiro estava sendo gasta nos novos procedimentos fúnebres sem que isto estivesse devidamente explicado.

Pressionado pela mídia, o gabinete do prefeito revelou que não havia nada de ilícito nos gastos; eram apenas despesas referentes ao armazenamento das caixas de pó que não haviam sido guardadas em jazigos familiares. Os documentos apresentados eram verídicos e comprovavam a versão apresentada. Apesar disso, a defesa foi considerada insuficiente; os meios de comunicação queriam saber por que aquele material simplesmente não era descartado ao invés de consumir grandes somas de dinheiro público.

O prefeito disse que o dinheiro era gasto de acordo com orientações do cientista, portanto, ele era o único capaz de responder a isso. Contudo, ao ser questionado, contrariando sua atuação na assembléia, o pesquisador fez uso de argumentos confusos e contraditórios. Além disso, ele concluiu suas respostas com o dúbio apelo de que as tais caixas não fossem abertas em hipótese alguma.

Alguns dias depois, a prefeitura teve seu segundo líder afastado em menos de um ano e o cientista teve sua prisão preventiva decretada, até que a situação fosse esclarecida.

Uma junta de notório saber, da mais conceituada universidade do país, foi reunida para produzir um laudo sobre a situação; os resultados da investigação demonstraram que o pó armazenado não se tratava de restos humanos, mas sim de fezes de ácaros. A indignação não poderia ser maior; durante meses, famílias tinham acolhido dejetos entre os seus e o contribuinte gastara uma exorbitância com material de esgoto.

Ao receber uma pesada pena de prisão, o cientista declarou que aceitava tudo aquilo sem reclamar, mas voltou a implorar que o material armazenado não fosse aberto e muito menos descartado no meio ambiente.

A junta de notório saber emitiu um comunicado dizendo que o cientista só queria aparecer com aquele tipo de declaração. Além do mais, ela tinha tudo sob controle: as hienas do pó que ainda estivessem vivas seriam devidamente irradiadas antes de serem descartadas; quanto às fezes, o único dano que elas seriam capazes de causar, seria à moral da cidade, o que de fato já tinham feito.

Assim, poucos dias depois, ordenou-se que várias toneladas de fezes de ácaros e de aracnídeos vivos fossem irradiados. Infelizmente, extasiados nos píncaros de seu conhecimento científico, os membros da junta não imaginaram que, muito dos mal pagos e nada informados funcionários encarregados do procedimento, poderiam achar um exagero, o excesso de medidas de segurança proposto. De fato, os funcionários se perguntaram: qual era a importância de usar toda aquela vestimenta desconfortável, se eles já estavam atrás de uma grossa parede de chumbo, capaz de protegê-lo de toda radiação? Por isso, eles preferiram usar seus habituais macacões de trabalho enquanto abriam as caixas de hienas do pó e despejavam os microscópicos seres nos locais onde encontrariam seu fim nos braços eletromagnéticos do raio-X. Realizado o serviço, hienas mortas e fezes, foram despejados num lixão isolado da cidade.

Naquele dia, ao voltarem para suas casas, cada um dos desobedientes funcionários levou, em suas roupas, algumas hienas que escaparam da irradiação enquanto suas caixas eram abertas. Quanto às fezes despejadas no lixão, estas foram espalhadas até onde o vento alcançava.

Logo, a cidade e mais tarde todos os locais habitados por seres humanos, foram vitimados por alguns fatos que o cientista condenado já sabia: ácaros não se alimentam apenas de tecido morto; eles são dificílimos de serem eliminados de materiais têxteis e suas fezes são extremamente prejudiciais para o sistema respiratório das pessoas. Por azar, no caso das hienas do pó, essas características foram satisfatoriamente potencializadas pela manipulação gênica.

Desde então, a impossibilidade de retirar as hienas das peças de vestiário, faz com que as pessoas venham do e voltam ao pó da mesma forma, nuas. Nesse intervalo, elas têm a oportunidade de aproveitar sua estadia entre crises de dermatite e asma.

Cabelos Rebeldes




Houve um tempo em que os homens estavam aos seus pés. Vinham de toda parte admirar a mulher cuja beleza dizia-se não ter rival. Mas sua forma de conduzir a própria existência revoltou autoridades maiores que se acharam no direito de puni-la. O castigo a converteu numa criatura monstruosa e os homens deixaram de arriscar suas vidas singrando os mares para vê-la. Por isso, ela passou a odiá-los.

A solidão, porém, não era o que realmente a incomodava e sim a perda de seu maior bem: seus cabelos. Eles sempre foram o mais invejável aspecto de sua também invejável beleza. Até suas duas irmãs, que foram tão belas quanto ela, desejaram aqueles cabelos. Após a punição, eles foram substituídos por entidades que além de assumirem a forma que bem desejam, feriam o rosto daquela que deveria ser sua senhora.


Para acalmar o emaranhado de seres rebeldes a pobre criatura fez uso de todos os segredos do receituário popular: imergiu-os em leite de cabra; lavou-os com mel misturado a óleo de amêndoa e até ministrou-lhes abacate com azeite morno. Mas os novos cabelos insistiam em ter vida própria.


Mesmo as imparciais Moiras se sensibilizaram com o drama e cederam aos pedidos da mulher para revelar o que o destino reservava ao tratamento capilar. A visão revelou que no futuro os cabelos seriam invariavelmente domados sob ferros quentes e ácidos. Como golpe de misericórdia, haveria ainda uma miríade de poções com nomes estranhos tais como xampu e condicionador. Convocando a mulher à realidade, Átropos, uma das Moiras, lembrou-lhe que o fio de sua vida seria cortado muito antes que ela pudesse conhecer aquelas maravilhas do amanhã.


Desde então, a dona dos cabelos inquietos passou a usar o tempo que lhe restava espiando o horizonte. Sentada no ponto mais alto da ilha, ela espera pelos incautos que por ventura chegassem até aquele lugar onde o dia e a noite se encontravam. Nessas raras ocasiões, a solitária Medusa conseguia destilar seu ódio transformando os insensíveis homens em pedra.

Raiva



Estavam seguros ali dentro. A chuva poderia continuar por outra semana; ela não entraria. Ele desejava que toda a água do mundo acabasse. Tinha consciência de que poderia demorar, mas persistiria, faria sua parte. Quem sabe mais algum tempo com as torneiras e o chuveiro abertos a água se esgotasse? Além de livrar-se do pavoroso líquido contribuiria para que o planeta passasse a justificar seu nome.


Samantha estava do outro lado da sala. Ele não se lembrava da última vez que a ouvira. Desconfiava que ela ainda estava com raiva. Chegou a explodir:


_ Droga Samantha, faz alguma coisa sua vagabunda! Desculpe, desculpe... São as dores, você sabe, me deixam furioso.


Então o vento ficou mais forte. A chuva insistia em pegá-los. Mas ele tinha certeza que tudo estava selado: janelas, portas, ralos. Ninguém conseguiria entrar. Mas e se chuva conseguisse? E se alguma fresta, buraco ou rachadura fora esquecido?


Decidiu precaver-se. Satisfeito pela indulgência dos espasmos musculares que não impediram sua mobilidade por completo, arrastou-se sobre o próprio vômito até a cozinha. De posse de seu talismã abraçou Samantha. Sussurrou-lhe que não estava mais zangado. Nem pelo silêncio nem pela mordida. Sua mão já não doía. Quem não tinha seus maus momentos? Tomado de carinho por sua fiel companheira gritou:


_ Eu te perdôo.


Ela não reagiu. Continuava imóvel e quieta. Acariciou-lhe o rosto e soube que estava perdido. A saliva que escorria pela boca de Samantha era o sinal. A água tinha entrado! O tenebroso líquido estava dentro dele! Bisbilhotando e profanando cada microscópico segredo de sua fisiologia.


_ Samantha, me ajude!


Em seus braços Samantha parecia distante, fria. Ele estava por sua conta e decidiu usar seu talismã. Sua poderosa magia não lhe abandonou. Enquanto a água pegajosa e quente jorrava de seus pulsos abertos incomodando-o uma última vez, o som da chuva diminuía.

Os iNCOMUNICÁVEIS



No passado, os sinais de que a água estava subindo foram ignorados; primeiro passamos a esquecer coisas banais como os números de telefone de nossos amigos e dos não tão conhecidos. Logo a enxurrada tomou conta de nossas agendas. Então, quando tudo o que se referia às nossas vidas passou a ser registrado em telefones celulares, as águas do rio Lete iniciaram a conquista de nossas entranhas.


Entretanto, antes que a possibilidade de um futuro fosse tragada, líderes visionários instituíram a ordem dos iNCOMUNICÁVEIS. Se a maioria das pessoas só era capaz de decorar que tudo o que precisa lembrar estava registrado no celular, os iNCOMUNICÁVEIS desconheciam a existência de tais máquinas. Foram separados de suas famílias na tenra infância para que assim fosse. A eles cabia a tarefa vital de alimentar as máquinas que mantinham a memória coletiva em funcionamento.


Assim, qualquer necessidade humana era atendida a partir dos ensinamentos sagrados contidos nos downloads executados pelos celulares. Para os que caíam vítimas do impulso primitivo do sexo “177 maneiras de enlouquecer uma mulher/homen na cama”. “Como fazer amigos e influenciar pessoas” para os solitários. “A dieta do doutor Atkins” para os preocupados com silueta. E até a “Origem das espécies” como consolo teológico. A vigilância eterna dos iNCOMUNICÁVEIS impulsionava o coração do mundo.


Mas se a memória do homem comum fora afogada, sua estupidez salvou-se subindo em algum ponto elevado de sua mente. As divergências políticas continuavam. As guerras e o terrorismo idem. A diferença é que as facções em luta já não lembravam porque brigavam; mas sabiam que a luta tinha de continuar.


Cientes de que a espécie humana era como um infante sob sua carga e que o fim de sua ordem seria o maior prêmio para as facções terroristas, os iNCOMUNICÁVEIS isolaram-se num mosteiro situado no cume da montanha mais alta da Terra.


Décadas depois, um jovem iNCOMUNICÁVEL divisou um corpo caído enquanto coletava ervas para o jantar. Logo o corpo revelou-se uma garota; diferente de todas que o neófito já vira em sua ordem. Tocado pelo estado da pobre criatura decidiu levá-la ao mosteiro. Extenuada pelo esforço de subir até a montanha mais alta do mundo a garota disse que sua hora havia chegado mas que o rapaz precisava completar-lhe a missão: levar uma caixa para o líder dos iNCOMUNICÁVEIS. Após fazê-lo prometer que cumpriria seu desejo a garota deixou sua essência esvair-se num último suspiro. Cumprindo seu destino o garoto entregou a caixa a seu líder e todos da ordem conheceram o plano de 600 minutos.

Inferno


No início, quando foi combinado que os pecadores incorrigíveis deveriam ter seu lugar de danação eterna, o inferno parecia a solução perfeita. Almas, estivessem elas presas à carne ou não, tremiam ao imaginarem as torturas eternas as quais seriam submetidas se saíssem dos trilhos. E as coisas funcionaram assim por éons. Aos poucos, porém, os lamentos e gritos das almas condenadas foram perdendo força. Por paradoxal que possa parecer, a noção de que um mesmo castigo só era interrompido tempo suficiente para que se delimitasse a fronteira entre o anterior e o próximo começou a anestesiar as almas. Como medida de emergência foi aberta uma exceção e os condenados foram transferidos entre os diferentes círculos do inferno; assim receberiam novos castigos. Isso deu certo, mas só por um tempo.


Claro que não é segredo que os Homens tentam compensar sua ínfima quota de vida experimentando as mais diversas situações. Mas a alma, constituída por um material indelével, deveria suportar a maçante eternidade. Quem sabe mesmo a vida humana sendo tão fugaz ela seja tempo demais para a alma passar encarcerada num corpo mortal de barro? O certo é que a repetição dos mesmos castigos para todo o sempre tornou apática a alma daqueles cujos pecados eram pesados demais para serem perdoados pelo ato do arrependimento. E assim, o inferno foi vencido pelo tédio. Contrariado, o ex-anjo da luz decidiu consultar o único capaz de aconselhá-lo; aquele que consentiu que tudo fosse criado, o inferno inclusive. Com uma polidez que só o pai celestial teria para com seus desafetos, o senhor do inferno foi informado que deveria resolver seus próprios problemas. O paraíso também estava em crise; o rebanho do senhor não estava imune à mesmice. O tédio que havia em cima, havia embaixo.


O acusador não sabia o que fazer; se as almas do inferno continuassem ganhando em insensibilidade logo uma rebelião se instauraria. A solução óbvia para superar o tédio era a inovação: criar novos castigos. Mas o inferno era grande e tradicional demais para mudar assim, com dizem, de uma hora para outra. Seria preciso tempo e dedicação, mas como se as almas não paravam de chegar? Por não ser onisciente, onipresente e onipotente, durante a reforma, o chefe do inferno poderia no máximo cuidar das almas que já estavam sob seu comando, mas não dar atenção às recém-chegadas.


Decidido ele disse:


_ Ao diabo com as novas almas! Aqui elas não entram! A partir de agora o inferno é a Terra.