sexta-feira, 16 de julho de 2010

Reconhecendo Papai


Maria, minha empregada, sofria de uma incapacidade congênita de ser sutil. Exigia aumentos ou reclamava da rapidez com a qual eu desfazia seu serviço de modo tão natural quanto me dava bom dia. Por algum motivo, essa crueza sempre me divertira sobremaneira, pelo menos até aquela manhã de quarta-feira, seis de agosto, quando me acordou às sete e meia dizendo:

“Seu Paulo, ligaram de San Miguel. Disseram que seu pai morreu num acidente de carro.”

Talvez para na maioria das pessoas a pergunta “tem certeza?” fosse motivada pela esperança de que tudo não passasse de um engano. Para mim, contudo, ela foi feita para cumprir aquele que eu considerava ser um comportamento educado.

Quando Maria mencionou a palavra “talismã” soube que não havia engano. Segundo me contou no início o telefonema parecia um trote, pois seu interlelocutor perguntava se ali havia alguém cujo apelido era talismã. À exceção da carteira de habilitação, explicava a voz do outro lado, o morto só portava com ele um velho pedaço de jornal com essa palavra e um telefone escritos nele. Minha empregada terminou seu relato aconselhando-me a esperar antes de partir para San Miguel: “o pessoal do tempo ainda não sabe se o tal Valquíria passará por lá. Por ser muito perigoso ir hoje”. Depois, virou-se e foi limpar o andar de baixo.

Mário nunca me chamava de Paulo, apenas por esse apelido idiota de criança. Não era capaz de se referir ao seu primogênito pelo nome nem mesmo num pedaço de papel. O telefone rabiscado também era típico, a bebida por certo tinha contribuído para piorar sua já péssima memória. Não que eu tenha lhe dado a oportunidade de decorar o número. Da mesma forma que os últimos dois anos, nosso derradeiro contato seria sem palavras. Eu lhe reconheceria o corpo e estaríamos conversados.

Como havia o risco de o corpo demorar a ser liberado, meia hora após ter sido advertido por Maria já havia ligado para o único hotel de San Miguel e feito uma reserva. Algum tempo depois, entrei na rodovia 67 para iniciar meu trajeto de aproximadamente seiscentos e cinquenta quilômetros até a pequena cidade. Se não era a primeira, por certo seria a última vez que Mário me dava trabalho.

Apenas o relógio no painel do carro me fazia crer estar dirigindo às nove da manhã e não da noite. Como se estivesse em conluio com minha empregada, o vento contra tentava deter meu avanço. As gotículas de chuva espalhadas no parabrisas, por sua vez, causavam dor aos meus olhos conforme iam ampliando os faróis altos dos veículos que fugiam em sentido oposto. Mas, incapaz de aceitar qualquer coisa que me contrariasse desde que recebera a primeira palmada no hospital, segui em frente, rumo à cidade e quem sabe, ao furacão Valquíria.

Enquanto lutava para manter-me em linha reta imaginava como estaria a cidade. Estivera lá apenas uma vez na tenra infância acompanhado por meu genitor e minha irmã caçula. O fato de o lugar ser à época sede de uma grande indústria química e ter, por conseqüência inúmeros trabalhadores ali residindo, tornavam freqüentes as visitas do vendedor Mário. Entretanto, percorrer a distância até a cidade deixou de compensar quando a tal indústria se mostrou por diversas vezes a mais poluidora do continente e acabou desmantelada pelas autoridades. Sem ter o que lhe evidenciasse no mapa, San Miguel perdeu praticamente toda sua população. Já o vendedor sem clientes descobriu a bebida. Que diabos o teria levado aquele lugar agora abandonado?

Pelo rádio soube que San Miguel seria colhido pela porção esquerda do furacão. À semelhança da maioria dos humanos destros, o sinistro também era o lado mais fraco daquele tipo de fenômeno atmosférico. Isso não impediu, entretanto, que a resistência imposta pelo vento e a má visibilidade tornassem minha viagem muito mais longa que o calculado. Exausto e com a musculatura posterior dos ombros queimando entrei na cidade. As edificações estavam muito menos coloridas e num estado bem pior do que imaginara. Provavelmente muitas delas não passariam incólumes mesmo ao braço ruim do furacão.

Era por volta de uma hora da madrugada quando cheguei ao hotel. Sabia que teria de esperar até de manhã quando o morgue estaria aberto. Em meio a tanto cansaço e aborrecimento, uma notícia animadora: excepcionalmente um funcionário do necrotério, Edgar, estaria à minha espera. “Para que o senhor possa voltar logo para a cidade grande” concluiu seu recado o prestativo recepcionista. Desculpei-me pela reserva não utilizada e ofereci-lhe uma compensação financeira, mas ele disse que não tinha importância. Pareceu-me que a falta de visitas da cidade grande, fez com que os moradores de San Miguel passassem a valorizar excessivamente os que de lá viam como eu; talvez disso decorresse a seqüência de gentilezas

Mesmo com as orientações recebidas no hotel tive certa dificuldade para localizar o necrotério municipal. Quando por fim o encontrei foi preciso dar a volta no imóvel a fim de chegar ao estacionameno. O prédio me pareceu excessivo para seu propósito; ainda que considerasse o período que a cidade pulsava de vida. Ao descer do carro, o vento forte e chuva castigavam meu rosto, mas à distância pude divisar a silueta de um homem em pé ao lado de uma porta de vidro. Pela brancura, Edgar parecia só ter tomado sol o bastante na vida para não ter raquitismo. De resto, ele seguia o mesmo padrão de servilidade do funcionário do hotel; ofereceu-me a mão excessivamente quente e desejou que tivéssemos nos conhecido numa situação diferente.

Apresentações feitas, o jovem sugeriu que a melhor forma de lidar com aquela situação seria reconhecer o corpo o quanto antes. A entrada do edifício dava acesso a um escritório no fundo do qual havia uma porta vai-e-vem. Dali se atingia as entranhas do prédio. Enquanto seguíamos por um imenso corredor deixávamos para trás várias portas fechadas. Antes que precisássemos tomar o próximo corredor à esquerda, nos deparamos com um aviso escrito em letra grosseira: geladeira.

Tomando por referência o número de vezes que havia pensado em Mário nos últimos anos, causou-me surpresa perceber que a suposta indiferença a qual o tinha relegado, não era tão convicta assim. Quando adentrei na sala fria, meu coração pareceu submergir num tanque de adrenalina, a velocidade de seus batimentos era tal que me era impossível separá-los uns dos outros. Uma gaveta estava para fora, dentro dela um corpo coberto por um campo cirúrgico laranja.

O solícito funcionário me disse que se desejasse poderia fazer o reconhecimento e passar alguns instantes a sós com meu pai. A ideia de remover sozinho o pano laranja me horrizava, mas não tanto quanto deixar que o rapaz percebesse meu medo. Sozinho, segurei a fina película de algodão que nos separava. A morte, eu bem sabia, tem o dom de nos transfigurar, transformando-nos num esboço de traços grotescos. Conforme puxava o tecido, potenciais rostos fúnebres me surgiam e o músculo em meu peito acelerava um pouco mais. Entretanto, a feição que se apresentou não estava na minha lista imaginária, era a que jamais poderia ter sido concebida por mim: a inexistente!

O rosto à minha frente não era o de Mário, tampouco era o rosto de qualquer ser humano. Estava completo: olhos, sobrancelhas, nariz, boca...nada faltava em absoluto! Ele carecia, contudo, de uma identidade. Aquela coisa indefinível que permite ao cérebro distinguir uma expressão humana! Era como olhar para um manequim de vitrine barato.

Graças ao medo transmutado em curiosidade, toquei o corpo e descobri que a clavícula esquerda possuia um calo ósseo exatamente onde Mário sofrera uma fratura. Lá estavam ainda as inúmeras varizes; as que permaneciam íntegras e as que se romperam em diferentes ocasiões da minha infância. As semelhanças continuavam: operação de apendicite, mesma estatura, cor da pele e cabelo. Não fosse pelo “não-rosto”, aquele por certo seria quem eu buscava.

Quando Edgar decidiu que eu tivera privacidade suficiente voltou à sala interrogando-me com seu olhar.

_ Há algo errado com esse corpo...

_ Então, o senhor quer dizer que esse não é seu pai, não é?

_ Não, quero dizer exatamente o que disse. Que não dá para ter certeza!

_ Sei que é um momento difícil, senhor, mas o corpo está em perfeito estado. De fato, dada a natureza do óbito é de se admirar que ele apresente tão poucos sinais de trauma. Basta que confirme se é ou não seu pai! A foto na carteira de habilitação não deixa dúvida que ele é Mário Nogueira dos Santos. Não é o nome de seu pai?

_ É sim, mas não estou certo que...

_ Acalme-se, por favor. Creio que não foi uma boa coisa tê-lo deixado soz...

_ Droga! Você viu o rosto dele?

_ Claro que sim! Não acabei de mencionar sobre a semelhança da foto?

_ E era isto que estava na carteira de motorista?

Meu dedo indicador levou o rapaz a olhar para o corpo pela primeira vez desde que eu chegara. Enquanto ele fitava o cadáver, percebi a cor fugindo-lhe da face.

_ Meus Deus! Ele não estava assim quanto fiz a necrópsia pela manhã, eu juro! Preciso ligar para meu chefe, ele é médico. Talvez seu pai sofresse de alguma doença contagiosa...precisamos ter certeza de que não vai se espalhar.

_ Edgar. Sou biólogo e posso te garantir que não há nenhuma doença, contagiosa ou não, que cause esse tipo de mudança.

Inútil. Como uma criança encarregada por um adulto de contar-lhe coisas erradas durante sua ausência, o rapaz saiu de onde estávamos rumo ao escritório na entrada. Apenas alguns segundos depois, voltou passando por mim enquanto praguejava muito e dizia algo sobre um rádio. Tomou o corredor à esquerda, no qual eu ainda não havia estado e entrou numa saleta com divisórias de vidro transparente próxima a uma espessa porta metálica. Acompanhei-o. Ao vê-lo utilizando o rádio conclui que as linhas telefônicas estavam inoperantes devido ao furacão.

Já na sala, descobri que a simpatia que Edgar tinha demonstrado até então, esgotou-se assim que esse terminou de falar com seu superior. Agora ele estava indiferente a tudo ao seu redor: fosse minha presença ou o vento que lá fora arremessava coisas contra as paredes do necrotério. Ignorado, sentei-me enquanto observava o rapaz andando de um lado para num inócuo ritual para acelerar o tempo. A eternidade para ele durou exatos cinco minutos quando seu aguardado chefe apareceu na porta:

_ Prazer, Senhor Paulo. Antônio Conceição às suas ordens – foi dizendo com a mão estendida.

Demorei um átimo para responder-lhe o gesto; causou-me estranheza que aquele desconhecido soubesse meu nome. Com atraso, veio-me a idéia de que Edgar deveria ter-lhe contado sobre mim. Também atribui ao cansaço à impressão de que o recém-chegado não viera pela porta da frente do prédio.

_ Prazer, doutor.

_ Por favor, senhor Paulo, a medicina é algo do passado.

“É com essa respiração arfante e esse excesso de peso, parece que o abandono aos princípios da saúde não ficou só nas palavras” - pensei.

_ Mas seu diploma permite que o senhor dirija isto aqui, não é?

_ Sim, sim. Formalidades, sabe como é. Hoje prefiro ser conhecido como alguém tem a honra de guiar o rebanho de Deus nessa cidade. Agora se me dá licença, preciso trocar algumas palavras com meu assistente. Ele deve ter algo muito sério a dizer para chamar-me a esta hora.

A. Conceição puxou seu subalterno para a porta da sala e se interpôs à sua frente. Ainda que não me fosse possível ouvir o que Edgar falava ou ver seu rosto era óbvio que ele estava nervoso tal era seu repertório de gestos. Já o chefe, inicialmente impassível, começou a se agitar e, em pouco tempo, ambos pareciam executar uma desagradável coreografia. De posse da carteira de motorista de Mário em mãos, o médico revezava seu olhar incrédulo entre o documento e eu. Terminado o relato, Edgar e o chefe começaram a sair da sala, mas eu os impedi:

_ Então, doutor, o senhor pode me explicar o que acontecendo? Preciso saber se aquilo lá é quem eu procuro. Não posso ficar aqui para sempre.

_ Senhor, Paulo. Ainda que quisesse, não lhe seria possível sair da cidade nas próximas horas. Na verdade, dada a força do vento, não creio que seja prudente nem sair deste edifício. De qualquer modo, precisamos de algum tempo para resolver essa questão da identificação. Assim, saberemos se “aquilo” é ou não, seu pai!

_ Me desculpe, doutor. Não quero que me entenda mal. Como tinha dito a Edgar, diversos sinais no corpo indicam que ele é o certo. Há também a documentação. Enfim, só quero saber...o rosto dele, sabe? Deixe pra lá, só o libere logo para que eu acabe com isso.

_ Está bem. Por que não me acompanha num chá para que possamos discutir os detalhes da liberação?

Comecei a perceber que minha crescente irritação só iria manter-me mais tempo lá e, apesar de duvidar que naquele momento meu corpo possuisse órgãos destinados à digestão, aceitaria participar de um banquete se isso me tirasse daquela cidade. Sem protestar acompanhei o chefe e seu subordinado rumo à saída do prédio, mas pouco antes da porta de entrada tomamos um corredor à direita o qual não tinha percebido quando cheguei; comecei a me dar conta que o morgue era um imenso conjunto de corredores e salas. A caminhada terminou numa cozinha improvisada. Edgar apanhou duas xícaras e as encheu de chá, ofertando uma para A. Conceição e outra a mim. Na expectativa de que uma atitude mais cooperativa me tirasse dali, comecei a sorver o líquido quente.

De repente, o calor e aroma do chá inglês pareciam estar atendendo alguma necessidade física oculta de meu corpo, tal o bem-estar que se apossou de mim. Partindo do tronco, a sensação prazerosa foi seguindo em direções opostas e logo, o desejo de deitar e aproveitar o momento tornou difícil que eu sustentasse a cabeça. Em seguida, já não podia identificar qual de meus anfitriões falava comigo:

_ O senhor está se sentindo bem?

Quando despertei estava deitado num velho sofá do escritório. Pelo cheiro do móvel, podia-se jurar que ele era usado quando a geladeira não tinha espaço suficiente. Apesar da camada de pó, o mostrador do relógio de parade marcava três horas da madruga; dormira por cerca de uma hora e meia. Era estranho que o cansaço tivesse me arrebatado de modo tão súbito, mas não era de todo impossível já que dirijira tempo demais sob tensão.

Com dificuldade para manter o equilíbrio sai caminhando pelas dependências do necrotério enquanto gritava por Edgar e seu chefe. Ninguém atendeu aos meus chamados. Mas eles não eram os únicos a se ausentaram, na gaveta onde o suposto corpo de Mário devia estar repousando não havia mais nada!

Olhando pela porta de entrada constatei que objetos pouco mais pesados que um homem grande mantinham-se no lugar com teimosa dificuldade. Seria impossível que ambos tivessem saído pela porta da frente carregando o corpo. Notei também que além do prédio no qual me encontrava somente uma construção a quase duas quadras tinha luz: um templo religioso. Então me lembrei do que o chefe de Edgar tinha dito sobre sua ocupação preferencial, era provável que ele estivesse ali com seu rebanho orando para que o furacão os poupasse.

Voltei para dentro a fim de me proteger do vento e decidir o que fazer. De um lado estava minha impaciência nata a estimular-me a ir até o templo correndo. De outro, minhas pernas ainda sem coordenação pelo desmaio. Felizmente, quando a primeira já estava por arrebatar-me numa empreitada suicida, ouvi uma porta batendo próxima à sala do rádio. Andar no passo mais rápido que me era possível não foi o suficiente para alcançar a pessoa antes que esta deixasse o local fazendo o mesmo estardalhaço de que quando entrara.

Quando por fim cheguei ao local de onde vieram os sons, descobri que se tratava da porta metálica ao final do corredor da sala do rádio. Meus músculos pareciam anestesiados e precisei de muita força para movê-la. A pouca lubrificação explicava o porquê de tanto ruído. À minha frente, uma vela que se afastava no escuro permitiu perceber que se tratava de um túnel bastante longo. Mesmos com meus gritos, o portador da fonte de luz continuou se afastando e, devido à lentidão imposta por minha condição física, tive que compensar com o tatear de paredes a limitação imposta pelo escuro.

Impossível precisar quanto tempo depois minhas mãos tocaram uma porta semelhante àquela pela qual já passara. Empurrando-a, passei a ouvir uma voz clamando a toda intensidade:


“Eis o sinal!”

A que um coral respondia:

“Obrigado, ò Pai”

Identifiquei nas vozes A. Conceição estimulando seu rebanho. Empurrando ainda mais a porta percebi que o túnel me trouxera a uma das laterais do templo. Fazia sentido: uma vez finalizados os procedimentos funerários, os falecidos podiam ser velados sem o incômodo de transportá-los pela rua. A ladainha repetida à exaustão era proferida por dezenas de pessoas que formavam um círculo em torno do altar. Mas ao invés de um ídolo qualquer, o objeto de adoração era o corpo sem rosto. Ele estava nu e à sua volta havia várias facas e punhais. Edgar, com uma vela na mão, acabava de depositar mais dois objetos em torno dele: a carteira de motorista de Mário e seu inseparável pedaço de jornal.

Constatei então que minha presença não era segredo:

_ Senhor, Paulo. Achei que não acordaria mais hoje! Talvez Edgar tenha errado na dose ou quem sabe foi outro milagre que tenha se recuperado tão rápido? Mas venha, venha degustar a obra divina. Tome seu lugar de honra. Afinal, de todos nós, o senhor foi o escolhido para ser filho do portador do sinal.

_ “Sinal”?

_ Sim. De que ele está voltando!

_ Do quê você está falando?

_ Não percebe? Todos nós depois de mortos guardamos por algum tempo algo que permite que nossas antigas moradas sejam reconhecidas: a alma. Esta se libera gradativamente conforme o corpo se desfaz. Mas o invólucro de seu pai já está vazio! Eis o motivo de não poderrmos indenticar nele as feições do antigo dono: falta-lhe a alma! Tal milagre só pode representar um aviso de algo muito importante. Este é um sinal de que nosso Pai em breve estará de volta para salvar os seus! Não se sente honrado, senhor Paulo? De ter alguém de sua família servindo a um propósito tão elevado? Junte-se a nós e venha se tornar um com o instrumento de Deus.

A um sinal de seu líder as dezenas de pessoas que estavam em volta ao corpo foram se afastaram formando um corredor entre mim e o altar. Diante de tanta loucura, minha reação não podia ter sido pior:

_ Seus cretinos! Esse daí não é instrumento divino coisa nenhuma! Podem louvá-lo o quanto quiserem, mas acreditem Deus jamais escolheriam um bêbado irresponsável para representá-lo!

Minha suposta ingratidão em não reconhecer o privilégio que me fora concedido pelo altíssimo transformou os cordeiros de A. Conceição em inquisidores ávidos para depurarem meus pecados. Fui agarrado com violência e enquanto me traziam à força até o altar recebia socos e pontapés. Ao término do trajeto eu estava bastante machucado e me mantiveram de joelhos, seguro pelos braços e cabelos.

_ Infiel! Reconheça a grandiosidade do que está à sua frente – gritava o descontrolado médico-guru enquanto empurravam meu rosto sobre o “não-rosto” do morto.

“Reconhecer”? Então, volto à primeira vez que tive dificuldade em reconhecer o suposto dono daquele corpo. Acabo de completar dezoito anos e um antigo conhecido de Mário me avisa que ele está em dificuldades. Fazia seis anos desde que ele abandonara minha mãe trocando-a em definitivo pela bebida. Não sei por qual motivo, mas vou procurá-lo no local indicado pelo tal sujeito. É domingo de manhã bem cedo, mas os botecos já estão repletos de homens em busca do líquido que os escraviza. O viciado que quero, contudo, não está entre os demais. Pergunto em vários bares e pago inúmeras doses, até que por fim, alguém me diz que o procurado está sentado numa praça ali perto. Conheço o lugar, Mário me levava lá para brincar quando pequeno.

Chegando à praça, olho ao redor, mas não há ninguém ali. Ou melhor, há um mendigo mal cheiroso, cabeludo e mais sujo do que se possa imaginar ser possível. A criatura está sentada numa calçada com um olhar perdido para o chão. Lanço um olhar de desprezo para aquilo que já foi um homem e sigo em frente. Em vão. Quem busco, não está nas proximidades. Decido voltar e ir embora para casa. Estou praguejando contra o homem que disse tê-lo visto naquele lugar quando volto a avistar o mendigo petrificado. Dessa vez, algo me faz prestar atenção nele. Aos poucos ele vai se tornando familiar e me aproximo. Contendo a ânsia de vômito, chego próximo ao homem e temendo a resposta pergunto: “pai, é você?”. Antes que o lento movimento para erguer a cabeça me permita ver seus olhos, uma voz emerge do abismo e me responde “talismã?” Com lágrimas nos olhos, desejo não ser seu filho...

Também estava com os olhos molhados quando ouvi A. Conceição ordenar:

_ Tirem esse miserável daqui! Ele não é digno de estar entre nós.

Inúmeras mãos me afastaram bruscamente do corpo e, por um motivo, tentei evitar a perda de contato. Então, me vi com cerca de cinco anos. Estou lutando com todas minhas fibras musculares para evitar que um dos garçons de Mário me arraste para fora de seu restaurante. Dentro da cozinha do estabelecimento, o patrão e um ajudante tentam conter o vazamento de um enorme butijão de gás. Imploro a meu captor que me deixe ficar, mas sua a força é muito maior que a minha. Antes que ele me coloque no chão do outro lado da rua, paro de lutar e prometo que ficarei quieto. Minha primeira mentira. Assim que o pobre se descuida saio correndo; o carro que quase me atropela quando cruzo a rua, impede que meu guardião me alcance. Esbaforrido entro na cozinha, e usando a única arma que conheço imploro: vamos embora, papai! Mário que nunca pôde com minhas lágrimas me tira dali. Assim que atingimos a distância suficiente para não sermos atingidos, uma explosão dá fim à vida do ajudante de cozinha e à metade do restaurante. Meu pai me abraça e me chama de um nome esquisito: “meu talismã”.

Trinta e cinco anos depois, eles continuavam me levando para longe do altar. Percebi que da mesma forma que tinha me livrado daquele garçom, precisava me libertar das mãos que me arrastam ou perderia Mário. Como outra promessa vã estava fora de questão, reuni forças desconhecidas e desferi potentes socos e cotoveladas nos fiéis. Surpreendidos pela reação inesperada eles me soltaram e parti rumo ao corpo. Apanhando um dos punhais que se encontrava a seu lado, agarrei o líder religioso e pressionei-lhe o instrumento perfurante contra o pescoço.

_ Não se importem comigo, meus irmãos – foi a resposta do médico à ameaça. Continuem louvando o escolhido. Nosso pai não nos abandonará e em breve estará aqui para salvar os seus.

_ Cale a boca! – gritei pressionando um pouco mais a lâmina. Deixe-me sair daqui com o corpo ou você vai estar deitado ao lado dele antes que suas ovelhas possam salvá-lo.

Os fanáticos começam a abrir espaço. Com dificuldade para manter meu refém imóvel comecei a apanhar os pertences do falecido. Primeiro, sua carteira de motorista e, por fim, o velho pedaço de jornal do qual ele jamais se separava. Não havia mais vestígio dos caracteres originalmente impresso nele, apenas meu apelido e número de telefone manuscritos eram legíveis.

_ “Corpo”? Pensei que para você ele era um “bêbado irresponsável” – esbraveja A. Conceição no momento em que finalmente me lembro do significado daquele pedaço de papel.

Retirando o punhal de seu pescoço, viro-o de modo que este fique de frente para mim:

_ Não, aquele não é um corpo, muito menos um bêbado, é meu pai. Entendeu? – digo com o mesmo orgulho com a qual meu velho não se cansava de mostrar para todos o jornal com meu nome entre os aprovados do vestibular.

As lágrimas surgiram quando percebi que não mais o ouviria dizendo “talismã” ou “meu orgulho”. Já não me importava que A. Conceição tivesse tirado o punhal de minhas mãos nem que naquele momento o objeto estivesse gravado em minha barriga. Tomado pela dor, me arrastei com dificuldade por sobre meu próprio sangue, ora escorregando, ora progredindo alguns centímetros em direção ao altar. Estranhamente, ninguém se opôs, talvez pensassem que até um ingrato como eu merecia ser perdoado antes do fim. Incapaz de ficar de pé encostei-me na mesa ritual abaixo de onde se encontrava meu pai. Consegui erguer o braço esquerdo e puxar-lhe a mão fria para junto da minha. Então, apertei-a com entusiasmo, como deveria ter feito há dois anos. Naquele dia, recusei seu o aperto de mão quando soube que ele não voltaria à clínica de reabilitação; disse que queria viver seus últimos dias sem cobranças. Talvez tenha sido a emoção de finalmente me dar conta de minha perda ou quem sabe foram os muitos golpes na cabeça, mas sem dúvida, naquele momento senti meu aperto sendo retribuído.

“Será possível que ele ainda está vivo?” pensei. Desesperado, tentei mais uma vez erguer-me para vê-lo. Mas sua mão e braço que se encontravam pouco acima de minha cabeça me impediram. No instante seguinte, vi por um breve segundo A. Conceição, seu rebanho e tudo à minha volta ser envolvido pelo fogo.

“Deus veio” pensei.

Quando acordei sobressaltado numa cama de hospital, minha irmã caçula que morava no exterior estava ao meu lado. Abraçou-me com força e me beijou diversas vezes no rosto enquanto me encharcava com suas lágrimas. Achou que eu não iria resistir aos ferimentos causados pela explosão.

“Explosão?”

Fui informado então de que quando o furacão atingiu as instalações a antiga indústria química de San Miguel ele liberou o conteúdo de um tanque que se suponha vazio. Milhares de toneladas de gás etileno acabaram sendo liberadas. Daí, os bombeiros acreditavam que um raio ou faísca teriam atingido a substância altamente inflamável. A pior parte da explosão colheu o templo da cidade. Todos os que estavam lá “orando por suas vidas”, à exceção de mim, morreram queimados. Supostamente eu escapara porque estava atrás do altar.

Em resposta ao meu relato fantástico sobre os acontecimentos de San Miguel, ela respondeu que tudo estava bem; os médicos já a tinham prevenido quanto aos efeitos alucinatórios do etileno. Certo de que jamais convenceria a cabeça-dura, não insisti com a história. Então, perguntei-lhe sobre o sepultamento de nosso pai. A esperança que motivou a pergunta se concretizou quando ela me disse que tinha decido esperar que eu acordasse para sepultá-lo; uma espera de dois meses.

Três dias depois, ainda com muita dificuldade para andar, cheguei ao velório de meu pai em uma cadeira de rodas. Fui conduzido até ao lado da urna que abrigava seu corpo e, nervoso, pedi a amigos que me ajudassem a ficar de pé. Assim que enxerguei a parte superior do caixão percebi que ele estava lacrado. Uma pequena janela de vidro permitia apenas uma visão parcial do rosto de quem repousava ali. Lá dentro, um par de olhos cerrados compunha a conhecida expressão de meu querido pai quando dormia.

sábado, 10 de julho de 2010

Inconsciência Ecológica

Somos criaturas antinaturais e, ainda que insconciente, tal constatação é a muito evidenciada. Daí, mitos ancestrais como o do deus grego Prometeu, forçado a nos conceder fogo e postura bípede porque seu irmão fez os animais mais rápidos e fortes. Contudo, discordo de que os dons emergenciais tenham compensado o erro de nossa concepção.


Na verdade, a essência diversa nos incapacita viver como os outros seres. Veja por exemplo, o tão festejado lado gregário humano. Para os que desconhecem o fruto da árvore proibida e, por isso são irracionais, estar em bando é encontrar-se sob julgo da Natureza. Já para nós cuja “mente pensante” ousou dispensar essa força reguladora, agrupar-se significa não ter limites; o bando humano anula os indivíduos transformando-os numa entidade coletiva cuja monstruosidade não encontra rival.


Não à toa, toda vida desdenhei essa atração pelo coletivo. Contudo, agora no fim, peço por companhia como um ateu que ora com fevor a Deus pedindo salvação; difícil é crer que os eventos responsáveis por minha conversão se iniciaram há menos de duas semanas.


Naquela manhã fui acordado mais cedo pois cabia a mim, o infectologista do grupo, decidir quando e como alguém poderia sair ou entrar; sempre havia o risco da contaminação. De cima da muralha do acampamento podíamos ver um homem que se arrastava na frente do portão implorando acesso. Por mim, ele morreria. Deixar entrar um desconhecido, por certo contaminado, não era lógico. Mas acabei cedendo, as três centenas de pessoas do grupo acabariam por me considerar um monstro pior do que os que nos rodeavam caso não o fizesse.


Ainda sem saber se o rapaz sobreviveria, coletei seu sangue e deparei-me com algo improvável: não havia anticorpos zumbis. Logo, ele realizara a proeza de andar por aí sem que nenhum dos mortos o arranhasse ou mordesse.


Uma semana após chegar, ele estava hidratado e decidimos interrogá-lo. Seu nome era Francisco e tinha vivido os últimos anos nas montanhas que ficavam no Noroeste do estado. O rigor do último inverno matou as plantas e os animais de sua família. Quando as reservas acabaram foi preciso decidir entre morrer de inanição ou arriscar-se em busca provisões. O resto não podia ser menos óbvio; farejados pelos zumbis, toda sua família foi morta.


Questionado sobre como escapara, recebemos com gargalhadas sua resposta: depois de matarem a última pessoa de sua família, os cadáveres ambulantes deram-lhe as costas. Aos poucos, durantes as semanas seguintes, ele percebeu que poderia procurar alimento sem risco de ataque.
Louco ou não, era impossível chegar até nosso acapamento sem cruzar o mar morto. Há alguns anos, um piadista de nosso grupo, resolveu dar esse nome ao agrupamento de milhares de zumbis que estava a cinco quilômetros do acampamento. Confrontado por nossa incredulidade, Francisco disse que voltaria lá e poderíamos observá-lo à distância.


Percebi que se a história fosse verdadeira, poderíamos trocar de acampamento para um lugar mais apropriado para dar lugar aos acontecimentos programados para dali a uma semana. Um antigo condomínio do outro lado da cidade era a melhor opção. Sem comunicar minhas intenções aos demais participantes do interrogatório, prontifiquei-me a acompanhar Francisco. Outros quatro membros se ofereceram para ir conosco.


Partimos carregando a maior quantidade de armas e munições que não atrapalhasse nossa mobilidade. Descemos o caminho rochoso e avistamos a massa de zumbis acerca de meio quilômetro, estancamos de imediato. Um de nós, contudo, continuou. Tomado pelo súbito presentimento de que mandava à morte um homem ávido por aceitação, comecei a gritar-lhe para que voltasse, mas ele não me atendeu.


Mais e mais próximo das criaturas, vimos quando Francisco, sob vigilância de nossos binóculos, se tornou um entre muitos pontos do mar morto. Àquela distância e entre tantos corpos era impossível perceber alguma movimentação anormal que indicasse que ele estivesse sendo atacado. Inquietos, esperávamos qual o primeiro de nós decretaria quão tolo era ter esperanças de que o rapaz iria voltar, mas ele voltou. Destacando-se da multidão, trazia pela mão um zumbi que outrora fora uma mulher; sem protestar ela permitia ser conduzida.


Foi devido à ousadia que experimentei paradoxo de sentir carne pútedra e úmida firmente aderidas aos ossos de um zumbi “vivo”. Eufórico, exterminei-a com um tiro na testa e voltamos para o acampamento.


Cientes da boa nova, o pessoal do acampamento se deixou convencer de duas coisas: que seria mais fácil dar continuidade ao projeto biogênesis fora dali e que teríamos que nos mudar dentro de uma semana a fim de cumprir seu cronograma. Francisco era a única pessoal que não poderia concordar com a pauta, por não saber do que se tratava.


Para tornar mais digeríveis as minúcias biológicas, contei-lhe na linguagem mais leiga possível, que há quinze anos tínhamos decidido conservar em nitrogênio líquido nossos óvulos e espermatozóides. Que de lá para cá, tínhamos investido todo o conhecimento de nosso pessoal, constituído em sua maioria por cientistas da antiga universidade, na construção de equipamentos capazes de realizar uma gestação extra-uterina. Batizados de úteros mecânicos, esses aparelhos concluídos a cerca de seis meses, tinham recebido nossos gametas e iriam nos entregar seus primeiros recém-nascidos em uma semana.


A quietude com a qual Francisco ouviu meu relato foi substituída pelo destempero. Sem que ninguém pudesse contê-lo, gritava que aquilo seria um erro e que não deveríamos trazer ninguém a esse mundo. Para ele as coisas estavam boas como eram e tentar alterá-las atraria desgraça. Por fim, ele saiu correndo da reunião. Estávamos preocupados com nossos planos para nos preocuparmos com os acessos de loucura de um estranho.


Foram necessários três dias para encaxotar o que prestava entre equipamentos e tralhas dos mais variados. Partiríamos em dois grupos; o maior iria na frente levando os úteros mecânicos, as melhores armas, veículos e quase todo mantimento. Eu e o restante de nós, levaríamos água e comida apenas necessárias para um dia de caminhada; além de algumas armas de menor calibre.
No dia combinado, o primeiro grupo partiu cedo enquanto nós terminávamos de desmontar o acampamento. Era a primeira vez que via Francisco em três dias e pedi-lhe que fosse no primeiro grupo. Embora tenha concordado, assim que se viu fora dos portões, ele se desvinculou do grupo e desapareceu em meio às rochas.


Foram necessárias três horas de uma estrada acidentada para que o grupo chegasse ao mar morto e outras duas para cruzá-lo. Pelo rádio nos informavam que os zumbis não se manifestaram durante a travessia, nem mesmo ao serem esmagados pelos caminhões. Às vinte e duas horas, eles chegaram ao condomínio; imediatamente começaram os procedimentos de remoção dos zumbis.


Com o comunicado, partirmos. Próximo ao mar morto fui consultado: apesar de estar tudo pronto, poderiam me esperar para liberar as crianças. Disse-lhes que um velho já não pode pensar em si e que prosseguissem sem mim.


Senti e fiz questão apenas de realizar a contagem regressiva. À frente, os tiros iam iluminando a caminhada de meu grupo entre os mortos. No zero, gritos e salvas vindos do rádio marcaram o instante do nascimento e percebi o quão estivera errado.


Quando os zumbis surgiram, achei que tendência do Homem a formar bandos descontrolados era tão forte que persistia até depois da morte. Aquela seria a prova de que nem mesmo mortos nos submetíamos a Natureza, mas eu me enganei. Lembrei-me da frase “a natureza nunca nos engana; somos nós que nos enganamos*.” Do lado de lá, gritos chorosos anunciavam a chegada de cento e cinquenta bebês enquanto a alguns metros de mim, exatamente o mesmo número de meus companheiros era devorado sob uivos ferozes.


Agora sozinho, lamento que os malditos zumbis tenham voltado a seu amaldiçoado estado quiescente e não possam apressar meu fim. Parto percebendo que na morte, finalmente nos tornamos parte da Natureza.

*Jean Jacques Rousseau

O Despertar


Chegou um tempo no qual a indiferença à maldade humana era tal que uma pessoa só importava em não ser a vítima da vez. Nessa época também diziam que Deus não existia; ele não permitiria tanta injustiça. Mas os Homens estavam enganados; o criador apenas gozava merecido sono, após, no sexto dia, ter concluído a criação do mundo. Ao despertar de seu breve cochilo, contato em eras aos olhos humanos, o arquiteto supremo viu que em sua ausência, sua obra deixara de ser excelente. Reconhecendo no Homem o responsável pelo caos, Deus tirou-lhe o dedo opositor.

Irrecusável



Num dia qualquer percebeu que sua vez chegara. Para comemorar quase-escritor decidiu queimá-las; deseja que levassem sua grosseria para o inferno. Ele também não ficaria com as padronizadas, afinal, não precisava da piedade embutida naqueles pedacinhos de celulose mesclados com tinta. Nunca mais receberia cartas de recusa por seus trabalhos. Incinerando-as, o fogo purificador forjaria sua nova identidade: escritor.


Seu nome seria mencionado em todas as editoras do mundo e editores tremeriam ao ouvi-lo. Seria famoso e respeitado. Mostraria do que era capaz ao bando de autores-parasitas que por tanto tempo sugaram o que era seu por direito. Odiava-os e a seus livros inferiores. Especialmente a Machado Queiroz! Em sua opinião, o maior dos impostores.


Olhou para o relógio na parede e viu que precisa ser rápido; TK, seu contato do serviço postal, devia estar chegando. Lembrou que dias atrás tivera que ser duro com TK, mas no final ele decidiu pagar o favor que devia. Pouco depois que escritor terminou de embalar seu original, o carteiro tocou a campanhia. Claro que TK não era um carteiro qualquer, era o responsável pela entrega da correspondência do senhor Paulo Sandoval, editor-chefe da Editora Minerva.
Às quatro e meia da tarde, daquele dia qualquer, a correspondência foi entregue à assistente do editor-chefe.


_ Senhor, veja o que chegou!


_ Meu Deus, aquele malandro! Você sabia se ele estava trabalhando em algo novo?


_ Acho que ele quis lhe fazer uma surpresa.


_ Vamos ver.


Paulo Sandoval rascou a embalagem remetida por seu autor predileto, Machado Queiroz, e encontrou um maço de papel intitulado “A ultima recusa”. Ao retirar o manuscrito a caixa explodiu pulverizando seu escritório.

Do Pó aos Seres do Pó [1]



No início, o prefeito e seus assessores mais próximos, tentaram lidar com o problema em sigilo; usaram caminhões frigoríficos para armazenar aqueles que não tinham quem os reclamasse. Contudo, isso não foi suficiente, em pouco tempo começou a faltar vagas também para os que gozaram suas vidas no seio de uma família; nesses últimos casos, a solução foi começar a atrasar a liberação dos falecidos alegando o surgimento de problemas durante a necropsia. Por fim, a necessidade de obter trinta a quarenta novos lugares todos os dias, tornou a situação insustentável; era preciso comunicar aos cidadãos a incômoda realidade: não havia mais onde enterrar os mortos pois os cemitérios da metrópole estavam lotados.

O anúncio de que alguns corpos estavam esperando há mais de dois meses a oportunidade de serem enterrados causou comoção e o prefeito com seus aliados mais próximos foram obrigados a renunciar. Porém, uma vez alimentado o desejo de vingança da massa, concluiu-se que o impasse persistia. Já que uma medida provisória não impediria as pessoas de morrerem, os novos ocupantes da prefeitura propuseram uma assembléia popular para discutir a questão.

Na manhã combinada, os mais diversos representantes da sociedade reuniram-se num ginásio municipal. Na abertura da cerimônia, o novo prefeito lembrou que estava descartada a possibilidade de se construir um novo cemitério na cidade; outra conseqüência da falta de espaço. Dito isso, a primeira idéia a agremiar um número considerável de indivíduos, foi a da cremação. Infelizmente, uma proporção igualmente significativa da audiência, não concordava com o procedimento, afirmando que ele era contrário às crenças prévias de seus entes falecidos. Alguns, mais alarmistas, chegaram a afirmar que tal incinerar os mortos contribuiria para o agravamento do efeito estufa.

À medida que as horas passavam, novas propostas eram postas em pauta para na seqüência, serem recusadas. Já no início da noite, aventou-se a possibilidade de aumentar a rotatividade no uso das tumbas: cada ocupante passaria menos tempo em seu local de repouso eterno. Concluído esse período, seus restos seriam colocados em recipientes que ocupariam menos espaço. A princípio todos concordaram que essa parecia ser a solução mais óbvia, até que alguém lembrou da impossibilidade de se apressar a natureza; os falecidos só poderiam ser retirados de seus túmulos uma vez decompostos.

Então, a organização da assembléia fragmentou-se em centenas de conversas paralelas. Aos poucos, porém, a ordem começou a ser restabelecida pelos pedidos de atenção de um homem que tomara a palavra. O senhor de cabelos grisalhos era um renomado cientista e dizia ter a chave para o dilema funerário: a resposta estava nos aracnídeos, mais precisamente em um tipo bastante conhecido, o ácaro. A proposta era muito simples, os seres microscópicos se alimentariam dos cadáveres acelerando o retorno destes ao pó. O anúncio foi seguido de vaias, gargalhadas até mesmo de tentativas de agressão, felizmente contidas pelas forças de segurança presentes ao local.

A rejeição unânime, contudo, em nada afetou o proponente; ele continuava impassível e insistia que todos deveriam continuar prestando atenção ao que tinha a dizer. À medida que falava, a lógica inquestionável de seus argumentos, foi vencendo até os mais arredios. De acordo com o pesquisador, o uso dos ácaros não era nenhuma heresia; aqueles seres estavam consumindo restos humanos há centenas de milhares de anos. Obviamente, não corpos inteiros, mas isso era feito por outros seres. Para reforçar sua tese, o homem chegou a apelar para a questionável etimologia popular lembrando que a palavra cadáver derivava do latim “caro data vermibus”, ou seja, carne dada aos vermes. Em seguida, destacou que a utilização adequada dos ácaros não causaria problemas ao meio ambiente, já que se tratava de uma solução “natural”. A argumentação continuou e quando o dia seguinte amanheceu, a proposta do cientista foi aprovada sem que um voto sequer lhe fosse negado.

A fim de implementar a idéia aprovada, a prefeitura promoveu uma campanha de troca de travesseiros e colchões pela cidade: a municipalidade doaria novos artigos de cama enquanto os cidadãos cederiam seus itens usados. Isso era fundamental para a obtenção da quantidade de ácaros capaz de atender à demanda mortuária do município.

Os materiais velhos, recebidos na transação, foram gradualmente levados a um galpão no qual o cientista montou seu laboratório. Lá, usando tecnologias inovadoras, ele era capaz de obter um trilhão de ácaros a partir de um colchão com dez anos de uso; os travesseiros não ficavam muito atrás, já que após 6 anos de uso, dez por cento do peso destes eram constituído por ácaros.

Graças à boa vontade da população, em algumas semanas uma enormidade de ácaros foi arrecadada. Entretanto, nem todos eram do mesmo tipo, na realidade, foram obtidos cinco tipos diferentes de ácaros.

Dessa forma, para que a missão necrofágica dos pequenos seres fosse bem sucedida, algumas providências eram necessárias. Em primeiro lugar, era preciso combinar as características das diferentes linhagens numa espécie híbrida. Também era preciso estender a longevidade dos aracnídeos para que a reposição dos espécimes não fosse tão constante. Finalmente, a nova espécie deveria ser capaz de devorar qualquer tecido morto e não só pele; esses feitos foram alcançados graças à utilização de técnicas de biologia molecular.

Concluídos os experimentos, as estimativas iniciais sugeriam que a nova família de ácaros seria capaz de viver por até doze meses, ao invés dos dois a quatro habituais. Por último, a capacidade da nova espécie de consumir qualquer tecido morto rendeu-lhe, por parte de seu criador, o apelido hiena do pó.

Tudo pronto, os pequenos carniceiros passaram a ser distribuídos entre os serviços funerários da cidade. A utilização dos ácaros era bem simples; uma caixa contendo as microscópicas hienas era adicionada dentro do caixão pouco antes dele ser baixado à tumba. Os mortos que tinham seu funeral em urna lacrada, saiam do IML com a tal caixa dentro desta; nos demais casos, o recipiente era adicionado ao final do velório, momentos antes do sepultamento.

Os primeiros resultados demonstraram que as hienas eram capazes de decompor um adulto por completo em cerca de 2 meses. Assim que um corpo era decomposto, o pó restante era recolhido e, a partir desse material, os ácaros eram recuperados e podiam ser reutilizados enquanto sua sobrevida permitisse. Por outro lado, a parte do pó livre deles, ele era transferida para caixas de metal invioláveis; caso alguma família solicitasse, a caixa era transferida para o jazigo desta, mas se ninguém o fizesse, a prefeitura se encarregava dela.

Graças à celeridade das hienas do pó, em poucos meses a falta de espaço nos cemitérios já não era uma questão a ser resolvida. O novo prefeito passou a gozar de índices invejáveis de popularidade nas pesquisas de opinião; os números lhe garantiriam uma reeleição fácil. Na realidade, ele só seria derrotado pela nova celebridade da metrópole; o herói que com o poder da ciência devolveu aos mortos a oportunidade de um descanso digno, ainda que breve.

Talvez porque sempre existirão os que justificam seu fracasso a partir do sucesso alheio, pouco tempo depois, um grande jornal da cidade recebeu uma denúncia anônima contra a prefeitura. Segundo o denunciante, uma quantia considerável de dinheiro estava sendo gasta nos novos procedimentos fúnebres sem que isto estivesse devidamente explicado.

Pressionado pela mídia, o gabinete do prefeito revelou que não havia nada de ilícito nos gastos; eram apenas despesas referentes ao armazenamento das caixas de pó que não haviam sido guardadas em jazigos familiares. Os documentos apresentados eram verídicos e comprovavam a versão apresentada. Apesar disso, a defesa foi considerada insuficiente; os meios de comunicação queriam saber por que aquele material simplesmente não era descartado ao invés de consumir grandes somas de dinheiro público.

O prefeito disse que o dinheiro era gasto de acordo com orientações do cientista, portanto, ele era o único capaz de responder a isso. Contudo, ao ser questionado, contrariando sua atuação na assembléia, o pesquisador fez uso de argumentos confusos e contraditórios. Além disso, ele concluiu suas respostas com o dúbio apelo de que as tais caixas não fossem abertas em hipótese alguma.

Alguns dias depois, a prefeitura teve seu segundo líder afastado em menos de um ano e o cientista teve sua prisão preventiva decretada, até que a situação fosse esclarecida.

Uma junta de notório saber, da mais conceituada universidade do país, foi reunida para produzir um laudo sobre a situação; os resultados da investigação demonstraram que o pó armazenado não se tratava de restos humanos, mas sim de fezes de ácaros. A indignação não poderia ser maior; durante meses, famílias tinham acolhido dejetos entre os seus e o contribuinte gastara uma exorbitância com material de esgoto.

Ao receber uma pesada pena de prisão, o cientista declarou que aceitava tudo aquilo sem reclamar, mas voltou a implorar que o material armazenado não fosse aberto e muito menos descartado no meio ambiente.

A junta de notório saber emitiu um comunicado dizendo que o cientista só queria aparecer com aquele tipo de declaração. Além do mais, ela tinha tudo sob controle: as hienas do pó que ainda estivessem vivas seriam devidamente irradiadas antes de serem descartadas; quanto às fezes, o único dano que elas seriam capazes de causar, seria à moral da cidade, o que de fato já tinham feito.

Assim, poucos dias depois, ordenou-se que várias toneladas de fezes de ácaros e de aracnídeos vivos fossem irradiados. Infelizmente, extasiados nos píncaros de seu conhecimento científico, os membros da junta não imaginaram que, muito dos mal pagos e nada informados funcionários encarregados do procedimento, poderiam achar um exagero, o excesso de medidas de segurança proposto. De fato, os funcionários se perguntaram: qual era a importância de usar toda aquela vestimenta desconfortável, se eles já estavam atrás de uma grossa parede de chumbo, capaz de protegê-lo de toda radiação? Por isso, eles preferiram usar seus habituais macacões de trabalho enquanto abriam as caixas de hienas do pó e despejavam os microscópicos seres nos locais onde encontrariam seu fim nos braços eletromagnéticos do raio-X. Realizado o serviço, hienas mortas e fezes, foram despejados num lixão isolado da cidade.

Naquele dia, ao voltarem para suas casas, cada um dos desobedientes funcionários levou, em suas roupas, algumas hienas que escaparam da irradiação enquanto suas caixas eram abertas. Quanto às fezes despejadas no lixão, estas foram espalhadas até onde o vento alcançava.

Logo, a cidade e mais tarde todos os locais habitados por seres humanos, foram vitimados por alguns fatos que o cientista condenado já sabia: ácaros não se alimentam apenas de tecido morto; eles são dificílimos de serem eliminados de materiais têxteis e suas fezes são extremamente prejudiciais para o sistema respiratório das pessoas. Por azar, no caso das hienas do pó, essas características foram satisfatoriamente potencializadas pela manipulação gênica.

Desde então, a impossibilidade de retirar as hienas das peças de vestiário, faz com que as pessoas venham do e voltam ao pó da mesma forma, nuas. Nesse intervalo, elas têm a oportunidade de aproveitar sua estadia entre crises de dermatite e asma.

Cabelos Rebeldes




Houve um tempo em que os homens estavam aos seus pés. Vinham de toda parte admirar a mulher cuja beleza dizia-se não ter rival. Mas sua forma de conduzir a própria existência revoltou autoridades maiores que se acharam no direito de puni-la. O castigo a converteu numa criatura monstruosa e os homens deixaram de arriscar suas vidas singrando os mares para vê-la. Por isso, ela passou a odiá-los.

A solidão, porém, não era o que realmente a incomodava e sim a perda de seu maior bem: seus cabelos. Eles sempre foram o mais invejável aspecto de sua também invejável beleza. Até suas duas irmãs, que foram tão belas quanto ela, desejaram aqueles cabelos. Após a punição, eles foram substituídos por entidades que além de assumirem a forma que bem desejam, feriam o rosto daquela que deveria ser sua senhora.


Para acalmar o emaranhado de seres rebeldes a pobre criatura fez uso de todos os segredos do receituário popular: imergiu-os em leite de cabra; lavou-os com mel misturado a óleo de amêndoa e até ministrou-lhes abacate com azeite morno. Mas os novos cabelos insistiam em ter vida própria.


Mesmo as imparciais Moiras se sensibilizaram com o drama e cederam aos pedidos da mulher para revelar o que o destino reservava ao tratamento capilar. A visão revelou que no futuro os cabelos seriam invariavelmente domados sob ferros quentes e ácidos. Como golpe de misericórdia, haveria ainda uma miríade de poções com nomes estranhos tais como xampu e condicionador. Convocando a mulher à realidade, Átropos, uma das Moiras, lembrou-lhe que o fio de sua vida seria cortado muito antes que ela pudesse conhecer aquelas maravilhas do amanhã.


Desde então, a dona dos cabelos inquietos passou a usar o tempo que lhe restava espiando o horizonte. Sentada no ponto mais alto da ilha, ela espera pelos incautos que por ventura chegassem até aquele lugar onde o dia e a noite se encontravam. Nessas raras ocasiões, a solitária Medusa conseguia destilar seu ódio transformando os insensíveis homens em pedra.

Raiva



Estavam seguros ali dentro. A chuva poderia continuar por outra semana; ela não entraria. Ele desejava que toda a água do mundo acabasse. Tinha consciência de que poderia demorar, mas persistiria, faria sua parte. Quem sabe mais algum tempo com as torneiras e o chuveiro abertos a água se esgotasse? Além de livrar-se do pavoroso líquido contribuiria para que o planeta passasse a justificar seu nome.


Samantha estava do outro lado da sala. Ele não se lembrava da última vez que a ouvira. Desconfiava que ela ainda estava com raiva. Chegou a explodir:


_ Droga Samantha, faz alguma coisa sua vagabunda! Desculpe, desculpe... São as dores, você sabe, me deixam furioso.


Então o vento ficou mais forte. A chuva insistia em pegá-los. Mas ele tinha certeza que tudo estava selado: janelas, portas, ralos. Ninguém conseguiria entrar. Mas e se chuva conseguisse? E se alguma fresta, buraco ou rachadura fora esquecido?


Decidiu precaver-se. Satisfeito pela indulgência dos espasmos musculares que não impediram sua mobilidade por completo, arrastou-se sobre o próprio vômito até a cozinha. De posse de seu talismã abraçou Samantha. Sussurrou-lhe que não estava mais zangado. Nem pelo silêncio nem pela mordida. Sua mão já não doía. Quem não tinha seus maus momentos? Tomado de carinho por sua fiel companheira gritou:


_ Eu te perdôo.


Ela não reagiu. Continuava imóvel e quieta. Acariciou-lhe o rosto e soube que estava perdido. A saliva que escorria pela boca de Samantha era o sinal. A água tinha entrado! O tenebroso líquido estava dentro dele! Bisbilhotando e profanando cada microscópico segredo de sua fisiologia.


_ Samantha, me ajude!


Em seus braços Samantha parecia distante, fria. Ele estava por sua conta e decidiu usar seu talismã. Sua poderosa magia não lhe abandonou. Enquanto a água pegajosa e quente jorrava de seus pulsos abertos incomodando-o uma última vez, o som da chuva diminuía.

Os iNCOMUNICÁVEIS



No passado, os sinais de que a água estava subindo foram ignorados; primeiro passamos a esquecer coisas banais como os números de telefone de nossos amigos e dos não tão conhecidos. Logo a enxurrada tomou conta de nossas agendas. Então, quando tudo o que se referia às nossas vidas passou a ser registrado em telefones celulares, as águas do rio Lete iniciaram a conquista de nossas entranhas.


Entretanto, antes que a possibilidade de um futuro fosse tragada, líderes visionários instituíram a ordem dos iNCOMUNICÁVEIS. Se a maioria das pessoas só era capaz de decorar que tudo o que precisa lembrar estava registrado no celular, os iNCOMUNICÁVEIS desconheciam a existência de tais máquinas. Foram separados de suas famílias na tenra infância para que assim fosse. A eles cabia a tarefa vital de alimentar as máquinas que mantinham a memória coletiva em funcionamento.


Assim, qualquer necessidade humana era atendida a partir dos ensinamentos sagrados contidos nos downloads executados pelos celulares. Para os que caíam vítimas do impulso primitivo do sexo “177 maneiras de enlouquecer uma mulher/homen na cama”. “Como fazer amigos e influenciar pessoas” para os solitários. “A dieta do doutor Atkins” para os preocupados com silueta. E até a “Origem das espécies” como consolo teológico. A vigilância eterna dos iNCOMUNICÁVEIS impulsionava o coração do mundo.


Mas se a memória do homem comum fora afogada, sua estupidez salvou-se subindo em algum ponto elevado de sua mente. As divergências políticas continuavam. As guerras e o terrorismo idem. A diferença é que as facções em luta já não lembravam porque brigavam; mas sabiam que a luta tinha de continuar.


Cientes de que a espécie humana era como um infante sob sua carga e que o fim de sua ordem seria o maior prêmio para as facções terroristas, os iNCOMUNICÁVEIS isolaram-se num mosteiro situado no cume da montanha mais alta da Terra.


Décadas depois, um jovem iNCOMUNICÁVEL divisou um corpo caído enquanto coletava ervas para o jantar. Logo o corpo revelou-se uma garota; diferente de todas que o neófito já vira em sua ordem. Tocado pelo estado da pobre criatura decidiu levá-la ao mosteiro. Extenuada pelo esforço de subir até a montanha mais alta do mundo a garota disse que sua hora havia chegado mas que o rapaz precisava completar-lhe a missão: levar uma caixa para o líder dos iNCOMUNICÁVEIS. Após fazê-lo prometer que cumpriria seu desejo a garota deixou sua essência esvair-se num último suspiro. Cumprindo seu destino o garoto entregou a caixa a seu líder e todos da ordem conheceram o plano de 600 minutos.

Inferno


No início, quando foi combinado que os pecadores incorrigíveis deveriam ter seu lugar de danação eterna, o inferno parecia a solução perfeita. Almas, estivessem elas presas à carne ou não, tremiam ao imaginarem as torturas eternas as quais seriam submetidas se saíssem dos trilhos. E as coisas funcionaram assim por éons. Aos poucos, porém, os lamentos e gritos das almas condenadas foram perdendo força. Por paradoxal que possa parecer, a noção de que um mesmo castigo só era interrompido tempo suficiente para que se delimitasse a fronteira entre o anterior e o próximo começou a anestesiar as almas. Como medida de emergência foi aberta uma exceção e os condenados foram transferidos entre os diferentes círculos do inferno; assim receberiam novos castigos. Isso deu certo, mas só por um tempo.


Claro que não é segredo que os Homens tentam compensar sua ínfima quota de vida experimentando as mais diversas situações. Mas a alma, constituída por um material indelével, deveria suportar a maçante eternidade. Quem sabe mesmo a vida humana sendo tão fugaz ela seja tempo demais para a alma passar encarcerada num corpo mortal de barro? O certo é que a repetição dos mesmos castigos para todo o sempre tornou apática a alma daqueles cujos pecados eram pesados demais para serem perdoados pelo ato do arrependimento. E assim, o inferno foi vencido pelo tédio. Contrariado, o ex-anjo da luz decidiu consultar o único capaz de aconselhá-lo; aquele que consentiu que tudo fosse criado, o inferno inclusive. Com uma polidez que só o pai celestial teria para com seus desafetos, o senhor do inferno foi informado que deveria resolver seus próprios problemas. O paraíso também estava em crise; o rebanho do senhor não estava imune à mesmice. O tédio que havia em cima, havia embaixo.


O acusador não sabia o que fazer; se as almas do inferno continuassem ganhando em insensibilidade logo uma rebelião se instauraria. A solução óbvia para superar o tédio era a inovação: criar novos castigos. Mas o inferno era grande e tradicional demais para mudar assim, com dizem, de uma hora para outra. Seria preciso tempo e dedicação, mas como se as almas não paravam de chegar? Por não ser onisciente, onipresente e onipotente, durante a reforma, o chefe do inferno poderia no máximo cuidar das almas que já estavam sob seu comando, mas não dar atenção às recém-chegadas.


Decidido ele disse:


_ Ao diabo com as novas almas! Aqui elas não entram! A partir de agora o inferno é a Terra.

Falcon


Eles percorriam selvas lutando contra gorilas ensandecidos; resgatavam tesouros protegidos por tubarões insones de apetite insaciável. E apesar de todo o perigo, o menino sabia que enquanto estivesse com seu amigo Falcon não tinha o que temer; o boneco o protegeria.


Contudo, havia um adversário que ambos não conseguiam sobrepujar, a mãe do menino. Preocupada com as horas que o filho passava quieto com aquele boneco ela era obrigada a fingir que lhe daria umas chinelas a fim de interromper a brincadeira. O pai achava suspeito. Onde já se viu menino brincando de bonecas? Mas eles acabaram se acostumando com aquela dupla inusitada.


Numa manhã o menino permaneceu na cama e não pôde acompanhar Falcon na aventura que o boneco havia planejado. Exames depois os pais foram informados de que seu filho sofria de uma doença grave. Iniciado o tratamento os inúmeros remédios não surtiram efeito e o garoto continuou a piorar.


Desiludida, a mãe partiu com seu filho para o interior em busca de uma renomada curandeira. Depois de olhar o menino a velha bruxa perguntou à mãe se seu filho tinha algum objeto do qual gostasse muito. De imediato a mãe contou-lhe sobre o Falcon e a velha disse o que precisa ser feito para tirar a doença do menino. Às lágrimas o filho implorou para que a mãe não seguisse as instruções. Mas não funcionou. De volta à cidade ela confeccionou um novo uniforme para o boneco a partir das roupas de seu filho. Por fim, com alguns fios do cabelo do menino ela improvisou uma barba para o Falcon.


Após o bizarro experimento o menino foi gradativamente recuperando suas forças enquanto o Falcon, escondido num armário, murchava como se tivesse sido acometido por uma perversa caquexia. Numa noite quando a vitalidade do menino estava quase recuperada, ele conseguiu sair da cama e procurar seu companheiro. Após revirar vários dos conhecidos esconderijos da mãe ele encontrou o boneco já quase sem forma. Desesperado, o garoto arrancou-lhe o uniforme e a barba.


Em resposta, a saúde do menino deteriorou-se de tal forma que ele não pôde mais ser tratado em casa e foi internado. Suspeitando do que havia acontecido a mãe procurou pelo boneco, mas ele desaparecera. Quando o garoto atingiu o primeiro estágio do coma, o médico explicou a seus pais que mais nada podia ser feito. Agora tudo dependia da vontade do paciente lutar pela própria vida.


Mais tarde enquanto o garoto dormia uma pequena mão de plástico tocou-lhe o rosto e uma voz sussurrou:


_ Ei, eu estou aqui.


E então partiram, o menino e seu Falcon, na maior de todas as aventuras.

Cogumelos sob a Luz da Lua Cheia




Dias atuais, numa potência do hemisfério norte.

_ Senhor presidente, desculpe-me incomodá-lo, mas trago informações da junta de generais.

_ O que eles disseram sobre meus planos?

_ Estão aguardando vossas ordens para entrar em guerra contra os demônios do Ocidente.

_ Excelente! Você fez um bom trabalho; não me esquecerei de sua lealdade. Se não tiver mais informes, pode ir.

_ Na verdade, senhor, o ministro Gouveia solicitou uma audiência. Mas ele não disse o assunto, só que era importante.

_ Pois bem, encontre-o e traga-o aqui.

_ Sim vossa excelência, com licença.

Em outra parte do palácio presidencial, o ministro Gouveia entra numa sala de interrogatório.

_ Salve, ministro!

_ Então capitão, o que conseguiu dele?

Em resposta, o oficial entregou um livro ao ministro.

_ Ele só tinha isso?

_ Sim. Mas nossos especialistas acreditam que esse não é um livro qualquer; aparentemente ele tem alguns séculos! Claro que eles precisariam examinar o conteúdo...

_ Mas ninguém fez isso, não é? Cabe a mim descobrir se há algo de valor aqui ou se isso é só uma peça de museu. Ah, a partir de agora, deixe o espião em paz. Que fiquei ai no chão, mas não bata mais nele; mortos não falam.


Dizendo isso, Gouveia partiu em direção a seu gabinete. Lá, com as mãos trêmulas, ele começou a folhear o livro.

“A cada dia que passa, temo que a fera apague por completo o homem que já fui. Caso um dia isso ocorra, essas páginas me lembrarão que já fui conhecido por Aemilius Lepidus Tácito.”

“Minha vida ordinária mudou radicalmente cerca de 60 anos antes da era cristã. Eu fora escravizado e forçado a lutar sob o comando de Júlio César em sua campanha na Gália. Tivesse tido sorte, teria morrido em batalha, mas fui ser capturado e os druidas me reservaram um terrível fim: o sacrifício. Era noite de lua cheia e fui amarrado a um gigantesco carvalho. Contudo, não foi uma divindade que apareceu instantes antes de meu peito ser aberto, e sim dezenas de demônios chamados de vérsipélios pelos romanos bastardos. Liderados pelos uivos infernais do maior entre eles, uma criatura que se assemelhava a um lobo mas cujo corpo branco era o de um homem, os demais destroçaram todos os gauleses com uma rapidez e ferocidade de fazer inveja a melhor das legiões romanas. Quando só eu ainda respirava naquela maldita floresta, a grande besta branca veio até mim. Contrariando minhas expectativas de ser indignamente estripado como um porco amarrado, fui mordido no ombro e, após ser arremessado à distância, mergulhei na inconsciência.”

“Quando fui encontrado estava entre o reino dos vivos e o dos mortos e apesar disso, um médico piedoso, convenceu outros legionários a me carregarem. Semanas depois quando estávamos na metade do caminho entre Roma e a Gália, uma assombrosa mudança ocorreu numa noite de lua cheia: minha razão desapareceu na mesma proporção que meu corpo aumentou em tamanho e fúria. No dia seguinte, os pedaços de corpos atestavam meus crimes. Infelizmente, o único romano pelo qual já tivera apreço, o médico, estava entre as vítimas.”

“Embora depois da primeira transformação, inúmeras outras tenham ocorrido ao longo dos anos, as lembranças desses momentos estão envoltas em névoas. O mesmo não ocorre quanto às sensações que se apossavam de mim. Transformado, meus sentidos ficavam tão ampliados que podia sentir as diferença de sabor entre a carne mais branca e a mais vermelha dos músculos de minhas vítimas. E o que dizer do gosto contrastante entre o sangue arterial, rico em nutrientes e o sangue venoso, cheio de excretas?”

“Claro que o maior tesouro obtido com a passagem do tempo foi as descobertas que fiz. A primeira e, também mais amarga delas, foi perceber que teria de passar toda existência fugindo. Afinal, se nas noites de lua cheia eu era praticamente indestrutível, nos demais dias do mês era presa fácil daqueles que previamente tinha caçado. A falta de contato humano, decorrente disso, foi salutar à besta que habitava em mim; sua presença passou a dominavar-me de modo crescente mesmo quando não havia lua cheia.”

“A segunda constatação foi a de que gozaria da imortalidade desde que me mantivesse a salvo de meus perseguidores, afinal, qualquer sinal de envelhecimento cessou em meu corpo; mas manter-me ileso não era uma tarefa fácil. Certa ocasião, quando o Império Romano do Oriente acabara de fragmentar-se levando consigo a Idade Média, fui salvo da destruição por uma jovem das estepes russas que me ocultou de seus conterâneos furiosos. O surgimento de Madalena estancou a dominação que a fera vinha exercendo sobre minha personalidade. Assim, apaixonei por uma garota milhares de anos mais nova que eu. Depois de contar-lhe meu segredo, nos mudamos mais para o norte e, em nosso novo lar, construi uma prisão para conter-me quando necessário; logo vieram os filhos.”

“O sonho durou quinze anos, até que o lobo branco que me criou atravessou o mundo e veio me assombrar numa noite de lua cheia. Preso pelos grilhões, achei que veria impotente, minha família ser massacrada. Mas enquanto o resto da alcatéia segurava minha mulher e filhos, meu criador veio até mim e me libertou. Desesperado, atraquei-me com ele e, embora liberasse toda minha fúria, meu adversário parecia estar se divertindo com algo. Como o monstro descobriu sobre o eclipse lunar total, jamais saberei, mas assim que ele começou, eu e os demais versipélios voltamos ao nosso estado original, enquanto ele permanecia o mesmo. Aparentemente, o monstro original não se dobrava nem à lua cheia. Posso jurar que, segundos antes dele levar o último resquício de minha humanidade com a vida de meus familiares, vi um sorriso naquela face animalesca. Depois, ele simplesmente partiu.”

“Após o...”

_ Senhor ministro, com licença. Bati à porta, mas o senhor não respondeu. O presidente concordou em recebê-lo.

_ Pedro? Está bem, vamos.

Minutos depois, ambos estavam no gabinete presidencial.

_ Entrem, por favor. Então, Gouveia, o que tinha a me dizer que não podia esperar?

_ Peço perdão por tê-lo alarmado, mas o livro que tenho em mãos não tem nenhum segredo militar importante, como imaginei. Na verdade, ele não passa de uma coleção de sandices; delírios de algum lunático que acreditava ser um lobisomem perseguido por outros lobisomens.

_ E como termina a história?

_ Bem, eu não terminei...

_ Fiquei curioso, por favor, leia o restante para nós, ainda temos tempo.

_ Deixe-me ver...aqui. “Após o eclipse, minhas transformações cessaram, mas a fúria e a loucura passaram a me dominar em tempo integral. Desde então, voltei a viver entre os homens buscando a única forma de saciar meu desejo: destruir por completo todas as odiosas criaturas da face da Terra”. Eu não disse, senhor? Que tudo não passava de loucura?

_ Veja o lado bom disso, ministro. Podemos usar a história para convencer o povo de que o país do ocidente é realmente dominado por demônios. Ninguém se negaria a lutar...

_ Mas isso é um absurdo...

No instante seguinte, as mãos nuas do presidente arrancaram a cabeça do ministro com tal velocidade que o corpo deste continuou gesticando por alguns instantes como se ainda estivesse conversando.

_ Ah, às vezes eu me esqueço da força que tenho! Viu, Pedro? Diferente de você, o Gouveia nunca teve fé em mim. Agora, tire esse sangue do rosto e aprecie o lançamento de algumas de nossas ogivas, mas só as que forem suficientes para provocar o revide inimigo.

_ Então, o senhor?

_ Sim, o livro é meu. E graças a pessoas como você, em breve o mundo estará livre!

_ Dos lobisomens?

_ Não meu caro, não só. Há tempos percebi que não sou parte nem da alcatéia nem da humanidade. Dando chance de revide, há mais garantias de que as bombas eliminem ambos. Não há mais lugar nesse mundo para nada que não seja a evolução, isto é, eu. Não se preocupe, você e algumas centenas de servos estão a salvo aqui. Garantirei que vivam e procriem para me servir. Afinal, é preciso que exista ordem pois como dizia o bom filósofo inglês “o homem é o lobo do homem”.

A Mudança - conto baseado no conto "O gato preto" de Poe



Há alguns meses, todos acreditavam conhecer meu futuro imediato: a morte. Tudo por causa daquele maldito gato. Mas quem é capaz de adivinhar o que nos aguarda na próxima esquina? Por certo o demônio negro não, caso contrário, teria acabado comigo enquanto podia.


Após constatarem meu crime, fui jogado numa cela imunda e úmida sem nenhum tratamento médico; as autoridades não se apiedaram de um homicida que emparedou a própria esposa e foi espancado quase até a morte por ter resistido à prisão.


Para mal estar geral, não morri devido aos ferimentos e pior, assim que as ataduras foram retiradas de meu rosto perceberam uma desagradável sequela. Eu preferi chamá-la de “mudança”. Não resta dúvida que esta foi mais uma tentativa de enlouquecer-me daquele gato e é bem provável que isso tivesse ocorrido caso o fato se desse antes da morte de minha pobre esposa. Entretanto, foi justamente a perda do medo em relação ao animal que me levou, por acidente, a matá-la. Acontece que os golpes recebidos durante minha captura danificaram de modo irreversível meu olho esquerdo. A órbita que até então abrigava um órgão saudável, passou a hospedar uma massa disforme cujo último resquício da Íris, um traço vertical, conferia-lhe a aparência de um olho de gato submetido à luz forte.


Naquele momento a deformidade serviu para alimentar rumores de que eu matara minha esposa devido a um sinistro pacto com o diabo. Ainda ignorando o que o novo olho representava e tendo como certa minha condenação à morte, decidi escrever o relato dos acontecimentos que me levaram à prisão e o intitulei “O gato preto”.


Como eu não lhes facilitei o trabalho, dias depois uma junta de juízes me convocou para comunicar-me sua decisão. Os magistrados concluíram que a crueldade de meu crime e a insanidade registrada em “O gato preto” eram a prova de que o álcool consumira meu juízo. O remédio para tal condição era ser pendurado pelo pescoço até a morte. Ouvi a sentença com indiferença e quando o mais velho dos juízes perguntou-me se tinha algo a dizer eu respondi: “Gostaria de dizer que depois de amanhã ao meio dia, o senhor terá a honra de ser recebido no inferno antes de mim”. Nem mesmo eu fui capaz de entender o porquê daquelas palavras, mas dois dias depois na hora prevista, o velho magistrado teve um infarto fulminante. O episódio serviu para coroar os boatos de que eu gozava da proteção do diabo e acabou tendo um efeito ainda mais surpreendente: talvez por temor às próprias vidas, os demais juízes comutaram minha pena numa estadia perpétua num manicômio da região.


Se por um lado, minhas feridas continuavam a cicatrizar, o delirium tremens que não me abandonara por um único segundo desde minha prisão, tornara-se insuportável quando cheguei no hospício. Era-me impossível dormir; passava as horas entre alucinações sobre bebidas e momentos de pânico nos quais via o gato preto do tamanho de um boi dentro de minha cela. Apesar de meus gritos, minha fama sobrenatural mantinha todos longe; à exceção do enfermeiro responsável pelo turno da noite. Este passou a compensar o frio das madrugadas com a satisfação obtida em ver minha reação a seu hábito de ingerir álcool em frente a minha cela.


Numa noite chuvosa na qual a falta de genebra causava uma convulsão tão forte que por um milagre meus dentes não se partiram, comecei a gritar um nome: Berenice. Pela segunda vez, eu pronunciava palavras que nada significavam para mim, mas o enfermeiro imediatamente veio até as grades de minha cela ameaçando-me para que repetisse o nome. Após obedecê-lo, ele desapareceu e ao retornar na noite seguinte, passou a me tratar com uma cortesia inimaginável: recebi doses de rum, genebra e até mesmo um cálice de amontillado.


A razão para o novo comportamento do enfermeiro logo ficou clara; o nome que eu proferira era o de uma égua que veio a ganhar um páreo na noite anterior. Seguindo meu palpite, o ele obtivera uma generosa quantia em dinheiro.


Nesse dia percebi que por mais insólito que isso fosse, meu novo olho me permitia prever o futuro! Apostador contumaz, o enfermeiro passou a exigir até três novas “previsões” todos os dias. Infelizmente, eu não tinha controle sobre quais palavras iria proferir ou acontecimentos que iria prever, o que me impossibilitava de atender a seu pedido com a regularidade necessária.


Assim, as semanas se seguiam entre madrugadas de marajá, nos quais bebida e outros prazeres abundavam e outras de espancamento e ameaça. Numa dessas últimas, eu gritei enquanto eu recebia uma miríade de pontapés: “hoje nas cartas, aceite a aposta do anel.” De imediato os maus tratos foram encerrados e após dar-me a merecida cota de bebida lá se foi o enfermeiro em busca de seu prêmio.


Pouco antes do amanhecer ele voltou e apresentava uma mancha de sangue abaixo da axila direita; a área coberta pelo líquido viscoso aumentava lentamente. Ainda que apresentasse dificuldade para respirar, o enfermeiro não parava de dizer que aquilo era minha culpa; a informação que eu lhe dera o pusera em desgraça. Sem esperar resposta, ele passou a dizer após cerca de três horas de jogo com alguns desconhecidos, um escritor, talvez acreditando ter uma mão imbatível, apostou tudo que tinha, inclusive a bela aliança de sua ex-esposa morta de tuberculose. Os outros jogadores não aceitaram a aposta, mas o enfermeiro lembrando-se de minha dica teve certeza que aquela era sua chance de fazer fortuna. O que ocorreu pois ele levou uma grande quantia em dinheiro do escritor além do valioso anel. Após perder, o inconformado viúvo fora posto à força para fora do bar por mostrar-se um mau perdedor.


Terminada a jogatina, o enfermeiro tomou a direção do hospício para que o responsável pelo turno da manhã não percebesse sua ausência. Num beco, ele foi surpreendido pelo escritor que portava uma faca e exigia-lhe de volta o anel; o dinheiro não lhe interessava. A embriaguez extrema do homem fez parecer que sua ameaça não era séria, porém, demonstrando uma agilidade inesperada o antigo dono do anel esfaqueou o enfermeiro. Irado, este último esmurrou seu atacante e começou a estrangulá-lo, mas lembrou-se que as autoridades certamente viriam atrás do assassino de uma figura que embora decadente, pertencia à elite da cidade. Além do mais, caso o infeliz morresse, ele seria o principal suspeito uma vez que todos testemunharam as desavenças entre ambos após a aposta. Então, tentando dificultar a identificação do escritor que jazia inconsciente, o enfermeiro roubou-lhe os documentos e vestiu-lhe com trapos achados no lixo.


Aquela era a história que o trouxera até a porta de minha cela. Naquele momento, desorientado pela hemorragia, o desgraçado deixou-se convencer que eu era sua única chance de não morrer. Num último ato inconseqüente, ele me libertou. Minha primeira providência foi sufocá-lo e arrastá-lo até minha cela; eu nunca lhe contei que as palavras que originalmente me vieram, eram para que ele não aceitasse a aposta; começava a ter controle sobre meu novo dom. Em seguida, despejei o conteúdo de várias lamparinas pelo chão e ateei jogo no maldito lugar. Conforme soube depois, a única pessoa jamais identificada entre os corpos carbonizados fora o enfermeiro.


Após fugir do país, juntei-me a um circo itinerante tornando-me uma de suas principais atrações “o caolho que prediz a sorte”. Mas é claro que não abandonei o único propósito que me mantém vivo: encontrar e matar o gato preto. Eu sei que aquele demônio continuar a me perseguir e para ter certeza que ele vai me encontrar eu o provoco com o passatempo que desenvolvi desde que fui preso: ocultar pessoas sob tijolos.

Pau que nasce torto...




Orestes nascera com aquela certeza; desde pequeno quando perguntado sobre o que seria quando crescesse, respondia sem pestanejar: ladrão. No início, seus pais acharam que aquilo era algo inócuo, como no caso de crianças simpatizantes de bandidos na inocente brincadeira de polícia e ladrão; a tataravó do counter strike. Infelizmente, para desgosto de seus progenitores, Orestes era na realidade, um caso extremamente precoce de certeza quanto à vocação profissional. Conforme cresceu, o aprendiz de trombadinha foi aprovado com louvor no bacharelado em competências para meliante.

Seu único ressentimento era nunca ter conseguido uma boca de fumo toda sua. Mas as alegrias da vida que escolhera compensavam em muito essa frustração. Por exemplo, nada derramava mais adrenalina no sangue do sujeito que ir até a pista para confiscar coisas de seu agrado. O vício pela substância endógena era tão grande que vez ou outra, ele esquecia uma das mais importantes regras para um assaltante: se o indivíduo quer ter uma carreira curta e não curtíssima, deve saber retirar-se da atividade de tempos em tempos quando a coisa esquenta. Foi numa dessas crises de abstinência hormonal que ele desrespeitou essa regra e acabou entrando nas estatísticas de fatalidades produzidas pela força policial.

Quando acordou, ele estava deitado num lugar bem silencioso. Ao sentar-se, duas moedas que estavam sobre seus olhos caíram no chão. Aquilo foi realmente esquisito; acabara de morrer sem um único centavo e ao ressuscitar, tinha duas belas moedas de ouro! Para completar a esquisitice, os furos de bala, gentilmente produzidos pelos policiais, tinham desaparecido.

Levantou-se, encheu os pulmões de ar e percebeu que não poderia estar mais disposto. Deu uma olhada ao redor e viu um rio no qual uma canoa e seu condutor pareciam estar lhe esperando. Aproximando-se do barqueiro, percebeu que este lhe estendia a palma da mão solicitando suas recém adquiridas peças de ouro. Aparentemente em troca, o dono do barco o levaria até o outro lado do rio.

Aquela oferta descabida, levou Orestes a converter-se numa prova viva que mortos também são tocados pelas musas inspiradoras. Sem aviso, deu às costas ao barqueiro e foi implementar seu negócio inovador. Desde então, cada novo falecido que se materializava no local, tinha sua passagem para o outro lado do rio confiscada antes que despertasse.

Devidamente ocultado, o tesouro de moedas crescia em proporção geométrica. Orestes pensava em como seria bom se sua mãe já não tivesse feito a travessia; ela poderia ver o quão bem sucedido seu filho se tornara.

Infelizmente, o novo empreendimento tinha alguns pontos negativos. Em intervalos regulares, Orestes precisava mandar os mortos recém chegados se dispersaram, pois sem ter para onde ir, eles tendiam a ficar vadiando próximo à margem. Isso aumentava tremendamente a densidade geográfica da área. Mas com certeza, o maior imbróglio encarado por ele era o que fazer com toda sua fortuna. Quem sabe ele pediria uma dica para o barqueiro um dia desses?

Indigente


Legista experiente, Vitório sabia ser só uma questão de tempo para que os sem-teto começassem a perecer numa pandemia de congelamento pelas ruas da cidade. Afinal, isso acontecia todos os anos e aquele inverno em particular, estava se consolidando como o mais frio dos últimos tempos. Por isso, ele não se surpreendeu quando o sujeito do carro coletor lhe informou que o recém chegado morrera de hipotermia. Ele só ficou um pouco aborrecido pois estava próximo do fim de seu turno e pensou que o motorista poderia ter-lhe feito o favor de trazer o corpo para o legista do próximo horário.

Pelo menos o frio tinha um lado bom quando se tratava dos indigentes. Quase sempre aqueles infelizes ficavam dias abandonados em becos ou valas até que alguém se dispusesse a chamar a polícia para recolhê-los. Com o sujeito que acabara de chegar não tinha sido diferente; provavelmente ele estava morto há dias, mas graças ao frio, seu estado de decomposição não era dos piores. De qualquer modo, por que se preocupar com a chegada do desconhecido? Ninguém ligava se eram ou não examinados. Bastava fazer uns cortes para simular um exame e verificar se o inconveniente não apresentava nenhum sinal evidente de doença infecto-contagiosa. Depois era só preencher um relatório com as causas de obtido óbvias: bebedeira, hipotermia ou o mais provável, morte provocada por hipotermia precedida de bebedeira.

Uma inspeção visual demonstrou que não havia nada de extraordinário no falecido: homem branco, cerca de 40 anos, sujo e vestindo farrapos ainda mais sujos. Seu rosto inchado pelo álcool e deformado pelo rigor mortis davam-lhe a aparência de um manequim barato e mal feito. Qualquer que tenha sido sua aparência, ela estava perdida; nada mais justo para um derrotado que não deixar lembranças. Provavelmente aquele sujeito não passava de um qualquer que se entregou por causa de um ou outro motivo banal.

Pouco antes de terminar o pseudo-exame, o braço esquerdo do morto caiu para fora da mesa. Quando Vitório puxou o membro enrijecido pela mão esta última fraturou-se. Ele percebeu que sob a pele de aparência relativamente jovem, ambas as mãos do morto pareciam apresentar uma densidade óssea extremamente reduzida. Se osteoporose já era uma doença menos comum entre os homens quando comparados às mulheres, num indivíduo daquela idade, a condição chegava a ser algo extraordinário. Contrariando sua motivação inicial, Vitório resolveu examinar o indigente de forma bastante minuciosa, mas logo percebeu que, além das mãos, não havia nada de diferente nele.

O dia seguinte, uma quinta-feira, era véspera de Corpus Christi e Vitório emendou o feriado graças a um colega que estava em débito com ele. Uma massa de ar polar que, reduziu ainda mais a temperatura da cidade, foi o pretexto que precisava para não levar o casal de filhos à praia. Claro que nem eles, nem Lídia, sua ex-mulher, ficaram satisfeitos. As reclamações não o incomodaram, porque acreditava nada ser suficiente para sua antiga família.

A tal massa de ar polar decidiu prolongar sua estadia sobre os céus da cidade e no início da nova semana conseguiu a proeza de empurrar o mercúrio ainda mais para o fundo do termômetro. Esse foi o gatilho para que outros moradores de rua viessem engrossar as fileiras de indigentes mortos por hipotermia metrópole afora. Entretanto, contrariando as probabilidades, nenhuma das novas vítimas chegou até as mãos de Vitório; em função dos locais e/ou do horário onde foram encontradas, elas foram dirigidas aos outros IML da cidade.

Enquanto o número de mortos pelo frio batia as marcas de anos anteriores, reportagens sensacionalistas cobravam providências das autoridades competentes. Essas por sua vez, garantiam que até o fim do inverno, ninguém mais ficaria nas ruas à merce das intempéries. As promessas jogadas ao vento trouxeram como resultado mais dois homens mortos no ínicio da terceira semana de inverno; esses chegaram num sábado durante o horário de trabalho de Vitório.

Como a rotina do IML não era determinada apenas pelo clima, mas principalmente pelas festas do final de semana, nessa mesma ocasião, Vitório estava atolado com a emissão de laudos para três moças e dois rapazes que terminaram a sexta-feira misturados a um poste. Graças a isso, ele designou os dois indigentes a um médico novato que ficaria encarregado de preencher os respectivos relatórios.

Horas depois, quando o rapaz já tinha ido embora, Vitório decidiu dar uma supervisionada em seu trabalho já que se algo estivesse errado, seria ele a pessoa de quem cobrariam o erro. Assim que comparou os relatórios, uma onda de calor subiu por seu tórax e ele jurou que, no dia seguinte, seria ele mesmo quem faria a necropsia do legista calouro. Como era possível o novato não ter percebido que suas mensurações apresentavam uma variação que em média não era maior que duas ou três unidades de medida? Aquilo tornava os dois mortos praticamente idênticos! A melhor coisa a fazer era repetir as principais medidas feitas pelo pateta e, assim, dar uma disfarçada nos relatórios.

Para o horror de Vitório, suas cinco primeiras mensurações confirmaram o que estava anotado nos registros! Aquilo não era possível. Desorientado, ele empurrou para o canto da sala as várias mesas que estavam entre os dois indigentes e colocou-os lado a lado. Era curioso, mas somente agora, importava-se com o fato daquelas duas coisas à sua frente já terem em algum momento, ostentado uma individualidade, o que provaria que ele não tinha perdido a razão. Talvez em punição às tantas vezes que o legista não viu mais que carne morta à sua frente, a decomposição apagara qualquer história daqueles homens; agora, somente os números amarrados aos dedos de seus pés pareciam estar convictos o suficiente para afirmar que aqueles homens não eram um só.

Conforme todos os itens do relatório eram revistos, a semelhança entre os indivíduos ficava mais evidente. Ao perceber que eles eram inúteis para ajudar na diferenciação dos corpos, Vitório passou a procurar por sinais ou marcas particulares que normalmente não eram registradas. Minutos depois o legista percebeu que a única característica poupada pelas forças desagregadoras da morte era a aparência das mãos. Na verdade, elas não poderiam ser mais díspares!

O sujeito cujo nome desconhecido fora substituído por uma etiqueta de número 337, tinha as mãos manchadas, cheias de minúsculos pontos. Ao avaliar esses pontos sob uma lupa, Vitório percebeu que cada um tinha uma cor diferente, como se fossem manchas de tinta. Já o que teve de esperar que outros trezentos e quarenta e cinco sujeitos fossem encontrados pelas ruas antes de ter sua chance de pisar no palco dos indigentes, o 346, tinha as mãos extremamente pequenas e enrugadas, mas apropriadas a uma mulher idosa do que a um homem de 40 anos.

Então, Vitório se lembrou do outro indigente que examinara duas semanas antes. Quando localizou o arquivo correto, ele amaldiçoou-se por ter deixado a preguiça levá-lo a não registrar os dados daquele homem. Independente disso, o legista se lembrou que de modo similar aos 337 e 346, o 319 também tinha uma particularidade bizarra nas mãos; elas se quebravam ao menor toque!

Nas horas que se seguiram, Vitório ligou para os outros três IML da cidade dizendo que a família de um figurão seqüestrado suspeitava que seu parente pudesse ter sido enterrado como indigente nas últimas semanas. Obviamente, essa abastada família ficaria muito grata em recompensar aqueles que identificassem seu ente querido. Motivados pela falsa história, não demorou para que seus colegas legistas enviassem todos os dados de homens que se assemelhavam à descrição fornecida por ele.

Pelo que pôde constatar, em pelo menos dois casos, os corpos eram praticamente idênticos aos 319, 337 e 346. Claro que aqueles homens não podiam mais ser examinados pois já tinham sido jogados sem caixão, numa vala comum qualquer. Graças a isso, muito provavelmente, nem mesmo as mãos deles estariam preservadas. Outra coincidência percebida era que, considerando a região da cidade em que foram encontrados, aqueles corpos deveriam ter parado em suas mãos, o que só não ocorreu porque quando finalmente os carros coletores chegaram ao local, à unidade de IML na qual trabalhava já estava fechada.

Aquilo só podia ser uma mensagem cujo destinatário era ele. De repente, descobrir o que estava acontecendo tornou-se tão angustiante como desobedecer aos estímulos nervosos que levavam os vivos a respirar. Ele nunca acreditou que a morte ocultasse qualquer segredo; aquele sempre fora o momento de cortar a carne e enterrar os restos. Talvez por isso, não estivesse pronto para simplesmente esquecer. Assim, apanhou tinta e coletou as digitais dos corpos 337 e 346. Em seguida, ligou para um colega policial do instituto de identificação e pediu-lhe que tentasse descobrir os donos das impressões que iria lhe enviar. Como esperado, seu colega não fez nenhuma pergunta, afinal, Vitório nunca as fazia quando o policial lhe solicitava para classificar como indigentes alguns corpos crivados de bala.

Horas depois o policial ligou dizendo que o favor fora mais fácil que o esperado: o sujeito tinha passagem na polícia. Quando Vitório perguntou qual deles, o policial abriu mão de sua habitual descrição e não poupou o legista de gozações: ele coletara duas vezes as impressões do mesmo indivíduo! Então Vitório viu seus corpos 337 e 346 serem rebatizados como José Carvalho dos Reis. Por último, o policial disse que talvez o legista tivesse sorte de identificar algum parente no endereço que tinha encontrado.

No dia seguinte, Vitório deixou um de seus auxiliares encarregado do turno e foi até o endereço de José Carvalho dos Reis. O lugar não se encaixava perfeitamente às supostas posses de um indigente; ele ficava numa região de classe média alta. Na portaria do prédio identificou-se como médico legista e que procurava por qualquer parente do falecido. O funcionário do prédio desculpou-se mas pediu-lhe que mostrasse diversos documentos; segundo ele, aquela era sua primeira semana no serviço e seu antecessor fora demitido justamente por ser descuidado na admissão de pessoas.

Ainda desconfiado, o porteiro acionou um interfone e após alguns segundos voltou com a resposta de que o morador do apartamento informado por Vitório não queria vê-lo. Disposto a testar a ignorância do rapaz, o legista insistiu dizendo que voltaria com a polícia pois sua atitude estava atrapalhando a investigação de um crime. Intimidado, o rapaz permitiu que o médico falasse ao interfone. Do outro lado da linha, uma moça acabou cedendo ao insistente médico e permitiu que ele subisse até seu apartamento.

Ao abrir a porta, ela não correspondeu ao aperto de mão dele e, após identificar-se, encorajou-o a dizer logo o que o tinha trazido ali.

_ Dona Ana, temo não ter boas notícias. Encontramos o corpo de José Carvalho dos Reis. A senhora pode me dizer qual seu parentesco com ele?

_ Ele era meu irmão...

_ Sinto em ser eu a dar-lhe essa notícia, mas ele foi encontrado na rua e trazido ao IML como indigente.

_ Eu não sabia que o IML saia à cata de indigentes.

_ Bem, nós...

_ Se quer minha ajuda, doutor, diga logo do que se trata. Embora não pareça, sou assistente social, felizmente posso me dar ao luxo de trabalhar no que gosto, sem ficar preocupada em ter uma profissão para ganhar dinheiro. Por isso mesmo, sei exatamente o que vocês fazem com indigentes e não simpatizo com tais práticas, sejam elas usadas em meu irmão ou não.

_ Me desculpe, dona Ana. Mas a história real não é das mais críveis, por isso tentei ir por outro lado. Muito bem. O fato é que nas últimas semanas, deparei-me com alguns sinais físicos bem peculiares em pelo menos três corpos; todos de indigentes. No meio da investigação sobre o que estava acontecendo, encontrei as impressões digitais de seu irmão.

_ Doutor Vitório, o senhor tem razão. Sua história não é corriqueira, mas eu lido com pessoas e com o tempo, aprendi a separar verdades e mentiras. Por isso, vou dizer-lhe o que sei.

_ Obrigado.

_ Em primeiro lugar, para ser sincera, não me surpreende que José tenha tido o destino que teve. Só achei que isso ia acontecer bem antes, há pelo menos um ano.

_ E por quê?

_ Como pode ver, meu falecido pai era um homem de posses; muitas mesmo. Apesar disso, ele nunca admitiu que eu ou meu irmão tivéssemos as coisas sem esforço. O desejo de meu pai era que José fosse um geriatra, como ele, mas meu irmão nunca conseguiu terminar a faculdade de medicina; José estava mais preocupado em drogar-se e ir a festas. Por causa disso, chegou a ser preso por curtos períodos, o que contribuiu para que ninguém o empregasse. Sem alternativas, meu pai resolveu ir contra seus princípios e empregou o filho em sua própria clínica.

_ E o que seu irmão fazia lá?

_ De tudo, doutor, serviços de limpeza e manutenção. Bem, pelo menos era isso que todos acreditavam até que alguns idosos começaram a reclamar.

_ Seu irmão os agredia?

_ Não exatamente, ele lhes roubava os pertences. Por que não entra e se senta doutor?

_ Ah, obrigado.

_ Como ia dizendo, aos poucos os roubos de meu irmão começaram a chamar atenção, mas meu pai tentou encobrir tudo repondo aos idosos o que tinha sido subtraído. Acho que no fundo, ele pressentia que se José saísse da clínica, ele teria seu fim nas drogas. A estratégia de papai funcionou até que dona Coré apareceu. Pelo que sei, meu irmão também roubou algo dela, mas diferente dos outros furtos, esse não teve nenhuma repercussão pois logo ela morreu. Para completar, seus parentes não deram falta de nada e só apareceram para apanhar os quadros da mulher; aparentemente ela era uma pintora famosa e eles valiam fortunas. Infelizmente para ele, meu irmão nunca soube disso.

_ Então como isso o prejudicou?

_ Acontece que ele começou a agir de forma estranha. Depois que José desapareceu, eu já chego lá, soubemos que ele disse a outro faxineiro da clínica que dona Coré tinha voltado.

_ O fantasma dela?

_ Não exatamente. Duas outras idosas chegaram na clínica e faleceram com menos de uma semana de permanência; meu irmão recusou-se a ajudar os outros funcionários na remoção dos corpos e não fez mais nenhum serviço no quarto em que morreram. Ele tinha uma fé absoluta no fato de que aquelas mulheres eram na realidade a dona Coré.

_ E elas eram realmente tinham semelhanças?

_ Quando perguntei isso ao colega faxineiro dele, a resposta foi que ele nem mesmo as achava parecidas! Mas o pior aconteceu no caso de uma terceira senhora. Naquele dia, alguns funcionários da clínica chegaram correndo no quarto dessa mulher atraídos por gritos terríveis de meu irmão. Ela estava imóvel sobre a cama e José estava prestes a cortar-lhe a mão esquerda quando foi contido. A mão direita tinha sido atirada pela janela do quarto. Enquanto o seguravam, ele gritava para que o deixassem acabar de uma vez por todas com dona Coré. Lamentavelmente, nós o perdemos pois apesar da vida desregrada, tinha uma enorme força física e acabou conseguindo escapar dos funcionários antes que a polícia chegasse. Isso foi há um ano e desde então não tive mais notícias dele.

_ Então seu irmão matou essa mulher?

_ Isso é o mais estranho, doutor. Dias depois, um colega seu disse que a mulher morrera de causas naturais e que já estava morta quando meu irmão arrancou-lhe a mão. Creio que meu pai foi generoso com esse legista para que ele abafasse a história.

_ Mas o que seu pai lhe disse disso tudo?

_ A mim nada; suas opiniões sobre os atos de meu irmão desceram com ele ao túmulo dois meses depois.

_ Sinto muito.

_ Eu também...

Com a promessa de que compareceria no IML na segunda-feira para liberar o corpo do irmão, Ana despediu-se de Vitório. O legista só não sabia qual dos dois corpos entregaria a ela, mas aquilo não importava. O importante era que agora sabia o que estava acontecendo: estava testemunhado à existência de algo além da vida física e, dentre bilhões de seres humanos, ele em particular, fora escolhido para ter um papel relevante nos desígnios de Deus. Afinal, o fato de que José Carvalho dos Reis estar aparecendo várias vezes significava que era sua missão ajudar a identificá-lo e dar-lhe um enterro descente. Por algum motivo, o arquiteto divino perdoara os pecados de José e cabia a Vitório ser um instrumento de tal misericórdia.

Tomado pelo êxtase, chegou à portaria que estava vazia. Sem dificuldade encontrou o botão que controlava o portão e saiu. “Deus, como está frio” pensou. Considerou-se um tolo por esquecer que era inverno e, para piorar, em comparação à hora que chegou ao prédio de dona Ana, a temperatura tinha caído bastante. Felizmente, dali a três quarteirões estaria no local em que conseguiu parar o carro; lá dentro estaria aquecido pelo ar condicionado.

A rua estava deserta e na esquina seguinte, Vitório tomou um susto ao ver um homem encolhido no chão; imediatamente lembrou-se de José, mas então, o infeliz se moveu um pouco demonstrando estar vivo. Refeito do susto, Vitório brincou ao passar pelo mendigo:

_ Nos vemos amanhã.

A poucos metros de seu carro, ele começou a ouvir passos vindos de várias direções, mas até onde a neblina permitia ver, uma inspeção de trezentos e sessenta graus não revelou ninguém se aproximando. Por precaução, completou o percurso até o carro, sem tirar os olhos da retaguarda. Ao abrir a porta do veículo ouviu em uníssono:

_ Obrigado...

_ Escutem bem, sou legista, não tenho um tostão, portanto, não adianta me roubarem...

Ao voltar-se, percebeu que os assaltantes estavam em cinco; o mendigo que vira segundos atrás e mais quatro vestidos de modo idêntico. Então o grupo repetiu:

_ Obrigado por me ajudar, doutor Vitório.

_ Mas do que é que vocês estão falando?

Em resposta, os quatro companheiros do mendigo atacaram impiedosamente o legista e só pararam quando havia mais sangue fora que dentro de seu corpo. Em seguida, apanharam o cadáver e desapareceram entre a névoa e o muro de uma casa próxima. Por fim, o mendigo os seguiu; ao partirem eles deixaram as únicas provas materiais de que realmente estiveram ali, as etiquetas numeradas que traziam presas aos dedos dos pés.

Doze meses depois, maldizendo sua sorte por ter tido que trabalhar num dia tão frio de inverno, o professor Douglas Ferreira se depara com um homem, cujas mãos estavam cruzadas sobre a cabeça, sentado em frente à porta de sua casa. Decidido a espantá-lo dali, o professor toca o sujeito e descobre que além de estar morto, ele tem um cheiro fortíssimo de formol nas mãos.