quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A vila dos Fiéis




Naquela sexta-feira uma enorme agitação me despertou; a cidade toda estava à minha porta e no comando do espetáculo papai, o delegado do lugar. O motivo da confusão era a Vila dos Fiéis, cidade minúscula a doze quilômetros, cujos habitantes seguiam uma religião desconhecida e eram muito reservados.

Entre os poucos contatos que mantinham com o mundo exterior estavam as visitas do doutor Medonça aos enfermos. Acontece que naquela manhã, o médico encontrara todos os habitantes da vila paralisados; ninguém tinha morrido, mas nada que já fora vivo era capaz de se mover. Foi questão de instantes para que alguém dissesse que aquilo era um castigo de Deus e se qualquer um saísse da vila, a praga recairia sobre nossa própria cidade.

Discretamente apanhei minha moto e sai em disparada para a Vila dos Fiéis antes que chegassem lá para isolá-la. Ao entrar no lugar, passei a procurar pela garota que amava em segredo, tal era o sigilo que nem Julia conhecia meus sentimentos.

Quando a encontrei, meu primeiro pensamento foi levá-la para minha casa, mas tive medo do que aqueles malucos poderiam fazer com ela. Apanhei seu corpo inerte, levei-a até um sofá e resolvi esperar.

O sábado veio tomar lugar da sexta e Julia e os outros não apresentaram qualquer mudança; sua paralisia era tal não reparei sequer que alguém tenha feito suas necessidades nas roupas; toda sua fisiologia estava paralisada. Tão pouco meu pai e os seus apareceram.

No domingo pela manhã, acordei assustado com um enorme estrondo e ao abrir os olhos, Julia sorria para mim com uma expressão de surpressa. Toda sua cidade tinha voltado ao normal; pedindo desculpas a ela e seus familiares prometi que voltaria para explicar tudo e parti.

Quando cheguei, descobri que um terremoto engolira minha cidade com todos seus moradores.

Ídolo


Antes

Estimados, irmãos. Espero que quando nos encontrarem essa mensagem os ajude a entender o motivo de tão temerária atitude. Por mais que tentássemos, eu e minha parceira, não fomos capazes de viver nesse mundo. Então, nossa falha para com vocês é dupla: a partida sem aviso e a incapacidade de nos estabelecermos aqui, tal como todos vocês desejavam.

O fato, meus caros, é que neste exato momento meu tempo se exaure; no início, a degeneração celular só podia ser detectada por meios de testes laboratoriais, mas, de um mês para cá, o processo se tornou tão evidente que mal é possível realizar atividades banais em meio à dor e a dificuldade de coordenar os músculos desse corpo.

Também contribui para meu desespero o fato de minha companheira se encontrar num estágio bem mais avançado da patologia, seja por qual for a causa. Apenas eventualmente sua razão decide se manifestar e quando o faz, é para cobrar o cumprimento do pacto que fizemos quando da terrível descorberta: o de praticar o suicídio. Embora isso não fosse novidade para ela quando saudável, agora em seus momentos de lucidez, tenho de lembrar-lhe que, sem a devida preparação, sem algo para preservar nossas essências, suicidar-se significaria estar perdido por toda a eternidade. Claro, meus esforços são inúteis, finda minha explicação ela já tornou a ser sequestrada pela loucura da doença.

Ainda que não acreditemos nas coisas não científicas, meus irmãos, ao menos hoje, no último dia em que permaneceremos vivos, ela decidiu não interromper seu descanso, concedendo-me o tempo necessário aos ajustes finais. Seria o acaso? Sim, hoje deve ser o dia derradeiro pois mesmo que a doença nos permitisse mais alguns momentos, os primitivos das cavernas nos dizimariam em represária ao que fizemos a seus dois companheiros; hoje é noite sem lua.

Não preciso tê-los observado por longos períodos para saber que nessas noites algo inexplicável parece aumentar-lhes a coragem. Não estou por acaso sentido semelhante força, mesmo nesse corpo degenerado? Ao contrário dos ataques anteriores, no que está para acontecer daqui a algumas horas, não teremos condições de repelir os primitivos. Concluo aqui minha mensagem a vocês. Adeus, meus irmãos, e até breve.

- Ah, olá, como se sente? Acabei de transferir os dados da última mensagem à rocha calcária e não percebi que tinha se levantado. Você me deve obediência, portanto, é meu desejo que volte a descansar até que tudo esteja pronto.

_ Temos que fazê-lo agora, a dor...é insuportável...

_ Ouça, minha cara, falta pouco, talvez duas, quem sabe, uma hora para podermos nos desfazer dessa tortura sem riscos. Só preciso acabar de preparar a rocha.

_ Agora, por favor...

_ Paciência, a pedra já está pronta para receber energia, mas ainda não pode emitir um sinal rastreável. Além disso, tenho de tratá-la para que não seja danificada ou tudo será em vão.

_ Temos de fazê-lo, você prometeu...

_ Chega de disc...ei, por favor, largue a arma. Tente raciocinar, não...arghhhhh...

_ Não se preocupe, comandante, agora você pode descansar. Não tente estancar o sangue desse corpo, morra. Venha...ahhhh, já sinto sua essência vibrando na rocha. Estou indo lhe encontrar...

Pouco depois

Só um dos homídios foi bravo o bastante para se aproximar dos corpos deformados e ensanguentados de seus dois irmãos desaparecidos há meses. Talvez por seu papel na hierarquia da tribo, aquele bravo tenha sentido que a estranha pedra, diferente de todas que já vira, o estava chamando...

Hoje

_ Professor, muito obrigado por nos conceder essa entrevista.

_ É um prazer recebê-los em nosso museu. Pode me chamar de Abel.

_ Bem, Abel, não tenho dúvida que, em relação ao acervo do museu, a maior curiosidade de meus leitores é sobre o ídolo pré-histórico. Segundo se diz, a razão dele nunca ter sido exposto antes, apesar de ter sido descoberto há mais de duzentos anos, se deve aos estranhos fatos a ele relacionados. Coisas como liberar lágrimas de sangue, sons e vibrações estariam entre os fatos testemunhados pelos pesquisadores que tiveram acesso à peça. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

_ Minha, jovem. Crer em tais coisas, talvez fosse sensato para nossos antepassados de trinta mil anos atrás. Afinal, eles esculpiram o ídolo justamente por serem supersticiosos. Mas hoje, o máximo que posso dizer sobre tais crenças: absurdo!