quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Bala Santa





Frio, esta seria sua última sensação. Fosse o proveniente da arma encostada no céu da boca ou aquele do suor que escoria por suas axila, o frio era tudo o que teria. E, ainda que um ferimento à bala fosse quente, conforme diziam, quando uma estourou-lhe o crânio, suas terminações nervosas já não funcionavam para verificar tal crença.
Como servo de Deus, ele tinha recusado todas as convocações dos dirigentes do partido; destemido dizia que nem sua própria morte o demoveria desse posicionamento. Mas a guerra estava se tornando mais sangrenta e se não bastassem as humilhantes derrotas das tropas do partido, vários daqueles que haviam sido forçados a se tornarem oficiais estavam tirando suas próprias vidas. Desde o início dos combates aquele era o momento no qual todos os que podiam segurar uma arma de fogo eram necessários. O sacerdote era ainda mais valioso uma vez que era conhecido por sua inteligência e liderança entre os habitantes daquela região.
Zombando de sua última recusa, o representando do partido advertiu: ou ele aceitava se tornar um oficial e seguia na manhã seguinte para a frente de batalha ou seria obrigado a viver com a memória da execução de cada habitante de sua; o aviso incluiu um lembrete de que o suicídio do religioso não impediria o cumprimento da ameaça. Como se ele, um homem de Deus, pudesse realizar tal ato execrável.
Percebendo-se em cheque, naquela noite, deitou-se implorando a Deus que lhe desse um sinal. Não o tinha servido por toda sua vida? Não guiara seus fiéis em tempos de paz e agora, na guerra? Só o Senhor poderia ajudá-lo. Afinal, a guerra entre partidos tinha separado ex-amigos e irmãos em lados diferentes por simples questões de opinião. Era ir contra a lei divina de não assassinar seus semelhantes ou ver os habitantes que restaram em sua vila serem executados pelos membros do partido.
Então, o fato dele nunca ter duvidado da própria fé foi recompensando, pois em sonho uma voz lhe dissera: “Quem toma para si o destino alheio, deve viver com os frutos dessa escolha...” A sensação de que sob as trevas o autor da frase sorria de modo enigmático lhe causou arrepios. Mas ele, um homem de Deus, não fugiria à sua responsabilidade. Como se pudesse ler sua mente a voz disse “muito bem...”. Então, em seguida, um sinal e uma ordem surgiram fazendo-o acordar sem fôlego. Estava com lágrimas secas na face. Não importava, tinha o coração leve. Sabia que fora atendido! Deveria ir lutar para que sua vila não fosse massacrada, o senhor cuidaria do resto. Apanhou poucos objetos, dentre eles um canivete e partiu para o local indicado pelo representante do partido.
Lá, alguns dos oficiais pareciam surpreso com a decisão do sacerdote e riram com escárnio ao suporem que aquele homem não era tão determinado quanto parecia. Mas ele não se importou. Depois de receber armamentos e ser apresentado a seus homens, o novo capitão do exército do partido recebeu ordens de rumar imediatamente para a selva na qual se concentravam as batalhas. Ele, contudo, fez um último pedido a seu oficial comandante: que lhe fossem concedidos dois ou três minutos para orar a sós. Com um semblante de desprezo o superior concordou. Apanhando seu fuzil e pistola o sacerdote se retirou para uma parte mais afastada do acampamento, lá chegando não orou, ao invés disso, tratou de executar aquilo que Deus lhe havia ordenado. Com o canivete gravou em suas armas o sinal que recebera em sonho; embora não soubesse o que iria ocorrer, tinha fé!
Partiram, capitão e seus subordinados. Pelos olhares que recebia o sacerdote sabia que seus subordinados não tinham nenhuma confiança nele. Provavelmente, também não tiveram escolha: era obedecer ao novo oficial ou ser sumariamente executado. Em meio à selva, contudo, ninguém saberia se o sacerdote foi atingido por uma bala inimiga ou não; muitos dos homens pareciam se tranquilizar com essa ideia.
Haviam partido nas primeiras horas da manhã e no início da tarde ainda não tinham encontrado evidências dos inimigos. O agora capitão sabia que isso não duraria. Em pouco tempo encontraria pessoas com as quais crescera ou conhecia, mas que deveriam ser mortas por acreditarem numa forma diferente de gerir a própria vida em sociedade.
Por conhecer muitos daqueles homens tão bem, o sacerdote não acreditava nos rumores sobre quem iria combater. Dizia-se que lutavam como se possuídos por uma força capaz de tolher-lhes o medo da morte e que fazia com que tivessem prazer em lutar de forma pouco prudente, suicida, talvez fosse a melhor definição. Contudo, mais difícil de acreditar era a crueldade que se atribuía a eles: nem crianças pequenas eram poupadas de execuções bizarras. Não escapou à percepção do sacerdote que a descrição de como os corpos eram encontrados lembrava procedimentos ritualísticos. Ninguém sabia o quanto daquilo era verdade, pois eles não se deixavam capturar vivos ou se eventualmente isso ocorria, não falavam, mesmo sob forte tortura o que invariavelmente os levava à morte. Aquilo não combinava com o que sabia sobre os “inimigos”; eram pessoas boas que não teriam satisfação no assassínio e todas tinham conhecimento do castigo eterno advindo de atentar contra a própria vida.
De repente, o sacerdote e os membros de sua unidade viram-se cercados por gritos enlouquecidos vindos da vegetação ao redor. O que já era previsto para um bando de trabalhadores unidos à força sem qualquer vínculo entre si ou treinamento ocorreu: o pânico dominou-os e estes passaram a correr de modo desordenado facilitando o trabalho dos inimigos que os alvejavam indiscriminadamente. Só o sacerdote não se movia, com os olhos cerrados, sentiu que era chegado o momento de fazer o que sua fé dizia: puxar o gatilho. Então, sem mirar girou 360o sobre o próprio eixo e descarregou seu fuzil.
Ninguém foi capaz de dizer quanto tempo depois de o religioso ter descarregado sua arma começaram os gritos de dor. À medida que sobreviventes da unidade se reagrupavam de sua desastrosa debandada, o milagre pelo qual o sacerdote tanto rogou a seu deus tornava-se evidente: na floresta ao redor, todos os atacantes haviam sido atingidos! Tornando o acontecimento ainda mais “milagroso” estava a constatação de que embora os inimigos tivessem sido atingidos em locais como cabeça, tórax e/ou artéria femoral, nenhum deles estava morto! Nem mesmo a hemorragia decorrente dos tiros levavam as vítimas a óbito, embora permanecessem abertas as enormes feridas iam, pouco a pouco, tendo suas hemorragias estancadas. Também inexplicável era o fato de todos os alvejados permanecerem inconscientes ainda que os sinais vitais estivessem estáveis. Conforme os feridos iam sendo recolhidos à condição de prisioneiros, a dimensão do feito do líder da unidade ficou evidente! Não importava mais no que os membros da unidade acreditassem antes do ocorrido, agora todos sabiam que aquele capitão era um homem tocado por Deus!
Em poucos dias se constatou que os feridos permaneciam em seu sono; suas feridas continuavam abertas e sem sangrar! Novos fatos sobrenaturais foram percebidos: os corações permaneciam funcionando, contudo, as demais funções dos comatosos pareciam congeladas! Por exemplo, eles não urinavam ou defecavam durante sua inconsciência. Quanto ao sacerdote-capitão e seus homens estes se tornaram conhecidos em todo o exército do partido como a unidade “Bala Santa”. Alguns, mesmo vendo os prisioneiros inconscientes e seus ferimentos mortais que não matavam, ainda duvidavam. Mas muitos outros se ajoelhavam à passagem daqueles homens. Porém, todos, tinham inveja por não pertencerem a um grupo capaz de derrotar todos os seus inimigos sem que ninguém mais fosse morto desde o momento no qual o religioso revelara seu dom. Boatos davam conta de que só o capital lutava...
Graças à Bala Santa, pela primeira vez os soldados do partido estavam conseguindo o fazer o inimigo retroceder. Obviamente, o sacerdote não era onipresente e a melhoria nos resultados da campanha militar se devia ao fato dos homens do exército sentirem-se invencíveis. Outra novidade foi a criação de uma unidade “auxiliar” especialmente montada para apanhar os feridos enquanto o sacerdote avançava; os líderes do partido diziam acreditavam num tratamento justo aos prisioneiros de guerra, especialmente por causa da comunidade internacional.
Finalmente aconteceu, eles encontraram um dos acampamentos do adversário. Ao entrarem, o religioso percebeu que havia um altar improvisado no centro do local e, chocado, constatou que seus antigos conterrâneos tinham trocado de fé. Um objeto feito de ramos e galhos que grosseiramente simulava a forma humana jazia embebido de sangue no altar. Pedaços de corpos ao redor adornavam a divindade pagã. O detalhe é que estes restos mortais eram em sua maioria de crianças e mulheres. Em seu íntimo, o religioso sabia que só poderia ser aquela mudança a explicar o modo insano dos inimigos combaterem desdenhando a própria Morte. Questionado pelos subalternos o religioso disse que aquilo não significava nada e que deveriam continuar lutando. Não funcionou. Uma animosidade imediata surgiu entre seus homens para com os inimigos. Agora a guerra não parecia mais uma questão meramente política. O outro lado havia ousado desafiar Deus.
Conforme avançavam, tanto a Bala Santa quanto outra unidades encontravam novos altares repletos de sangue e com eles a mesma divindade banhada em sangue e rodeada de corpos.. Logo os boatos chegaram aos comandantes do exército e, pouco a pouco, mesmo os que não se importavam em fazer prisioneiros começaram a questionar os métodos do sacerdote. A maioria dos soldados e oficiais começou a ficar incomodada com a captura de prisioneiros. Aqueles que antes ajoelhavam para o sacerdote em sua passagem agora lhe cuspiam. Veladamente cresceu a opinião de que pagãos como aqueles a morte era pouco. Os próprios subalternos da unidade Bala Santa já não admiravam a miraculosa capacidade do sacerdote. Por isso, eles passaram a fazer questão de tomar parte do combate, ao invés de deixar tudo com seu líder como antes. Com isso aumentou o número de mortos de ambos os lados.
Inevitavelmente alguns prisioneiros eram recolhidos na frente de batalha, mas quase sempre, poucos deles chegavam vivos à base do exército do partido. Boatos também surgiram de que mesmo os prisioneiros capturados à semanas viam sendo secretamente mortos à noite. Mas ainda que ninguém percebesse a maior mudança de todas ocorreu no íntimo do sacerdote; sua fé na providência divina antes inabalável já era atacada por lapsos de dúvida. Não tinha ele sentido um sorriso maléfico antes de receber o sinal? Talvez em sua arrogância de se achar capaz de intervir no livre arbítrio humano ele tenha sido enganado por algum demônio, ou pela divindade pagã da floresta, que se passava por Deus.
O comandante do exército que tanto louvou o dom do religioso advertiu-o para que não tivesse piedade com aqueles demônios; de acordo com sua orientação todos os prisioneiros deveriam ser mortos! Aparentemente a ordem foi passada aos soldados também, pois no primeiro embate após a conversa, o sacerdote viu seu grupo massacrar os inimigos que capturava sem piedade; agora ambos os grupos tinham se igualado em barbárie.
O servo de Deus acredita que aquilo culpa era toda dele: havia sido enganado e por causa disso mais mortes que as necessárias estavam ocorrendo. Na noite seguinte quando voltou ao alojamento trancou-se em seu quarto. O criador não o perdoaria por sua arrogância e ingenuidade. Sabia-se condenado. Suas ações dali em diante pouco importavam e já havia decidido tomar a única decisão possível: eliminar a própria consciência. Posicionou o fuzil que tanta dor lhe trouxera e sentiu o frio. Sim. Frio, esta seria sua última sensação. Fosse o proveniente da arma encostada no céu da boca ou aquele do suor que escoria por suas axila, o frio era tudo o que teria. E, ainda que um ferimento à bala fosse quente, conforme diziam, quando uma estourou-lhe o crânio, suas terminações nervosas já não funcionavam para verificar tal crença. Em sua loucura também não havia ouvido o comandante ordenar-lhe que abrisse a porta. Talvez o religioso até repensasse a ideia de ter sido abandonado por seu Deus. Afinal, o velho oficial tinha vindo advertir-lo novamente só que dessa vez teria dito que o sacerdote fora longe demais: se não bastasse ter poupado centenas de inimigos, todos eles estavam acordando de seu coma plenamente curados!

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Abaixo a Matemática



Sei que vivemos numa era na qual somente uma minoria, os especialistas, tem a prerrogativa de opinar sobre questões relevantes. A nós os leigos, resta apenas acreditar no que diz tal minoria; entendamos a mensagem ou não. Entretanto, encorajado pelo vinho de cinco reais comprado com uma das parcelas do bolsa família, resolvi insubordinar-me contra a ditatura que me proibi opinar sobre o quê não entendo.

Por certo meu protesto será considerado um ato desesperado de um ser que desconhece o posto que lhe cabe. Especialmente porque resolvi manifestar minha insatisfação contra que aquela que é a mais arcana das especialidades, a Matemática. Bem, arcana ao menos para uma mente incapaz de entender a diferença entre holístico e integral.

Dito isso, revelo meu guia nessa empreitada: uma memória de causar inveja no mais bem dotado dos paquidermes. Pois bem, o registro mais significativo sob meu poder é o que afirmava ser a ciência dos números “a base para o entendimento das leis que regem o universo conhecido”. Exagerando a hipérbole, minha professora dizia que ao encontrarmos seres extraterrestres nos comunicaríamos com eles por meio da Matemática!

Daí que o maior uso dos números é no convencimento de que vivemos no melhor dos mundos. Veja só, quando uma nova epidemia assola o planeta os especialistas em matemática dizem: “não temam, em 99,9% dos pacientes essa doença não apresenta sequelas, as poucas mortes foram fatalidades”. Já quando um acidente aéreo vem ressuscitar nossa desconfiança natural quanto a tirar os pés do chão dentro de uma caixa que pesa milhares de quilos, eles proclamam: “voar é o meio de transporte mais seguro do mundo, as chances de acidentes são de menos de uma em tantos milhões”.

Felizmente fui salvo da prepotência dos números por uma classe de homens de inestimável saber obtido na escola da vida, os políticos. Nossos estimados representantes preferem acreditar naquilo que vai no coração, pois sabem que nada de bom surge dos números, pelo contrário. Sim, enquanto os especialistas tentam nos convencer que a probabilidade de ficarmos doentes é baixíssima, logo que sentem que podem estar enfermos, os políticos partem para o melhor e mais próximo hospital a fim de se tratarem. Por outro lado, quando um avião de uma companhia aérea qualquer cai por falta de manutenção, as aeronaves públicas à disposição dos políticos são prontamente revisadas.

Obviamente minha confiança nos políticos não se deu modo instântaneo; antes de a luz se fazer presente, a oposição estes e os especialistas me deixou confuso. Em que deveria confiar? Foi então que, mais uma vez, minha memória me indicou a saída do labirinto. Me apossei da solução de um grande homem que também passou por uma crise semelhante em relação à verdade e disse: penso, logo existo. Então pensei: quais serias as probabilidades de eu não ser um completo imbecil caso a Matemática estivesse certa e os políticos errados? Como definitivamente não tenho nem uma fração de bobo, conclui que o único resultado possível era o de que a Matemática estava errada! Isso mesmo, repito: errada!

Não é à toa que se diz que todo consenso é burro! Afinal, uma pesquisa recente demonstrou que profissão mais desprezível do mundo é a de político. Prefiro acreditar que esses mal avaliados senhores são profissionais mais devotados até que os bombeiros, eleitos como queridinhos da população mundial.

Enfim, por tudo isso quero que se juntem a mim no movimento de minha autoria batizado de “abaixo a Matemática”. Façamos como nossos visionários políticos que já entenderam a moral do velho ditado “existem mentirosos, malditos mentirosos e estatísticos”.