sábado, 21 de janeiro de 2012

A primeira vez




Ainda que ninguém confesse, a maioria das pessoas recebe a morte alheia com alívio. É comum que entre os que se encontram na presença do defunto alguém lamente: “pobre coitado(a)! Mas em seu íntimo o suposto piedoso quase sempre comemora: “graças a Deus que não foi comigo!” É um alívio tolo, pois a qualquer vivente me farei conhecer e, cedo ou tarde, cada um será tocado. Não poderia ser diferente já que uma das leis fundamentais da criação é que nada deve estar livre de mim!
Engana-se, contudo, quem pensa que meu trabalho é simples; na verdade, nem mesmo a mim é dado conhecer o momento exato do fim de um homem; não até que tal momento chegue! Não há destino, nada está escrito! Sou auxiliada apenas por um insight de que a hora se aproxima. E, quando uma sensação irresistível me domina, é o instante final.
Na hipótese improvável de o toque não ocorrer no momento exato, a vítima estaria livre de minha influência uma vez que cada vida tem apenas uma oportunidade de ser tocada. Embora a probabilidade seja ínfima, a ocasião na qual um homem tem mais chance de escapar de mim é aquela em que o evento causador da fatalidade dá-se pela primeira vez. Quando não sei como determinada situação destruirá o organismo de um ser tornando sua vida insustentável, devo confiar cegamento no já mencionado insight para cumprir minha tarefa.
Por tudo isso, devo confessar um segredo: toda vez que um ser experimenta o que se poderia chamar de “um novo tipo de morte” temo que a pessoa escape de mim por não conseguir tocá-la no instante específico. Então, a fim de evitar que aberrações incapazes de morrer venham a existir, tenho o hábito de criar regras: nessas ocasiões inéditas tomo nota de todas as características do evento e, assim que um segundo humano tiver de passar pela mesma experiência, passo a contar com, além de meu insight, informações preciosas.
Graças a essa coleta de informações tenho me tornado mais e mais experiente ao longo da História humana. No início da Pré-história, basicamente, morria-se por lesões induzidas por armas de pedra, ataque de animais ou das infecções decorrentes de tudo isso; não havia novidades. Mas a curiosidade humana levou a novas maneiras de matar e morrer. Comecei a ter trabalho aprendendo como instrumentos de bronze ou ferro exterminam uma vida.
Como se pode ver, nunca tive motivos para gostar da curiosidade humana, contudo, minha tranquilidade passou a ser particularmente ameaçada depois que a Ciência tornou-se o modelo para explicar o mundo. Eis que fui obrigada a entender sobre a letalidade de milhares de coisas novas como armas de fogo e dos acidentes aéreos. Muito embora os humanos possam justificar sua busca por conhecimentos como uma tentativa de melhorar sua qualidade de vida, tudo não passa de um desejo inconsciente de escapar aos designíos da criação. Nada mais que aprender para brincarem de gato e rato comigo…
Mas por que lhe conto tudo isso? Deve ser ansiedade, afinal, me parece que hoje é um dos dias tensos: meu insight me trouxe a um lugar que não conheço. Pelo que ouvi, os humanos o chamam de emissora de TV. Alguém irá morrer hoje aqui; sinto que é um jovem e ele está próximo. Ah, ei-lo de frente àquele estranho instrumento o qual me lembra as primeiras máquinas fotográficas. Alguém grita para ele “em 30 segundos você entra, assim que acabar o trecho que já gravamos”. Não sei o que isso significa e não me interessa, preciso apenas estar atento, pois algo inédito oriundo deste local deve comprometer de modo irreversível o corpo de meu alvo.
Sem aviso, o escolhido surgiu dentro do instrumento estranho para o qual estava de frente. Espere, o insight está se intensificando; será em segundos! O mesmo humano que havia gritado volta a dizer “vamos entrar, veja seu microfone”. Eis que a sensação torna-se insuportável! Será agora. Meu alvo toca o objeto chamado microfone e recebe uma descarga elétrica letal que lhe paralisa o coração e queima outros tecidos internos.
A eletricidade não me é estranha; já levei centenas de pessoas por causa dela. Sei exatamente como tocar alguém atingido por essa forma de energia! Não seria um evento inédito? Espere, enquanto um corpo jaz danificado logo ali, o homem continua falando dentro do aparelho!!! Talvez o instrumento parecido com uma máquina fotográfica tenha permitido à eletricidade dividir o homem em dois! Esse deve ser o evento desconhecido! Mas qual dos dois homens deve tocar?
Na infinitesimal existência de minha dúvida acontece o impensado: o momento do toque passa! Pouco depois, a metade do homem que falava na máquina sumiu ao mesmo tempo que a atingida pelo choque mortal levantou-se para o espanto dos presentes.
Foi a primeira vez que alguém a ser tocado deveria estar de frente para aquela estranha máquina e acabei cometendo um erro. Agora que percebi como ela funciona, guardando fotografias animadas das pessoas, é tarde demais. Não importa! Os humanos terão sua paga por me induzirem ao erro. Aquele que acaba de escapar de mim, experimentará nos braços da eternidade a dor de não poder mais ter relações duradouras. Já os que ousarem deixar imagens gravadas depois de serem tocados por mim, sofrerão enquanto os vivos puderem vê-los como se ainda estivem caminhando nesse mundo. Para estes, a eterna jornada espiritual só continuará quando todas as gravações tiverem sido destruídas, até lá eu os deixarei no meio do caminho entre essa etapa e a próxima.