quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Morte na eternidade



Irritado pelo pequeno robô que vinha atrás de si enxugando a água da chuva que escorria de sua roupa, Erodes Gigitrio, lançou ao chão um cigarro com dois terço por fumar. “Limpa isso também, estúpido!” Quase no mesmo instante se arrependeu, ficou calculando se os maços que tinha consigo dariam para a noite toda.

Cruzava a descomunal entrada da sede do complexo farmacéutico Rimane; vinha de um prédio vizinho, que por esquecimento de algum arquiteto idiota, não estava conectado ao local no qual acabara de adentrar e por isso estava ensopado. Claro que nunca se importou com chuva alguma, sua vontade de esmurrar o mundo era devida à certeza que se avolumava de ter feito uma péssima aposta ao aceitar aquele caso.

Os três assassinos que acabar de entrevistar – sim entrevistar, como não estava em missão oficial do departamento de polícia, teve de pegar bem mais leve do que fazia nos interrogatórios – não ajudaram em nada. Nenhum dos três se conhecia ou aos seus respectivos alvos. Tinham ocupações distintas e não possuíam ficha criminal e, até o segundo no qual acabaram com suas vítimas, poderiam ser considerados cidadãos-modelo. Antes deles, outros quinze assassinatos foram cometidos e os autores ou foram mortos pela polícia em confrontos ou se suicidavam algum tempo depois de cumprirem seu intento. Uma vez que para as forças da lei os crimes não tinham relação entre si, elas não perceberam a tendência suicida dos criminosos, e quarto sujeitos já tinham se matado. Mas havia um elo entre os diversos assassinatos e o pessoal da Rimane sabia, por isso, seus funcionários tinham conseguido resgatar os três entrevistados antes que tirassem a própria vida. Agora eles permaneciam sempre imobilizados com camisas de força. Infelizmente para o policial, as duas mulheres e o homem que acabar de entrevistar, só disseram coisas sem nexo como  “me deixem ir até ela” ou “preciso encontrá-la”!

A dificuldade em digitar o código na catraca de acesso à parte restrita do edifício o fez interromper seus devaneios. “Mas que droga! Como querem que um cara na minha idade enxergue com tão pouca luz?”, pensou.  Então o investigador intuiu o motivo da iluminação menor que a usual: alguém a poucos metros dali não queria ser visto. Um bando de seguranças também passava pelas dezenas catracas e cercava um sujeito muito mal vestido. Erodes parou. Em trinta anos de atividade policial ele tinha visto milhares de vagabundos, contudo, jamais esquecia um rosto. Só não se lembrava o nome da criatura do esgoto e nem de sua ficha criminal. Precisa descobri o porquê daquele cortejo.

Para ele era a primeira vez algo promissor acontecia desde que fora instalado na Rimane. Excitado, acendeu o primeiro de muitos cigarros que o acompanharam enquanto passava as primeiras horas da noite explorando fotos nos arquivos eletrônicos da polícia. Tudo em vão. Precisa de ajuda e Mônica, por uma razão desconhecida, jamais se ausentava do prédio. Apanhou o telefone:

_  Precisamos conversar.

Minutos depois ela abriu a porta sem bater prostrando-se sob o batente. Há exatos seis meses ela fizera a mesma coisa e graças à capacidade que certos estímulos sensoriais possuem de ativar memórias, o policial foi transportado até aquele dia. Ele se lembra do espanto causado pelos profundos olhos verdes que pareciam ter ação similar à do curare. Devia ter por volta de trinta anos, alta e seus cabelos extremamente negros se opunham à pele alvíssima. Sempre de vestido; ela possuía aquela sabedoria de que nada dá mais asas à imaginação de um homem que aquela peça de vestuário sobre o corpo de uma bela mulher. Ah, e o cheiro? Bem, ele não podia sentir o perfume dela, pois há muito o cigarro lhe cortara o olfato, mas podia jurar que era sublime. Aquele corpo despertava algo fundo nele e, chegou a pensar que se a tivesse conhecido mais jovem talvez conseguisse resolver uma de suas mais graves deficiências…agora estava velho demais. Então a garota apresentou-se e explicou o  motivo daquele primeiro contato.

_ Por que está me contando isso, moça? _ Faltam oito meses para me aposentar e aqui existem policiais bem mais espertos que eu.

_ Você foi altamente recomendado – respondeu Mônica sentada de frente para a mesa de Erodes. _ Na verdade, o que disseram foi “o homem certo”!

A intenção daquelas palavras não podia ser mais explícita. O investigador Erodes era muito admirado por alguns membros do departamento devido à sua capacidade de livrar colegas de enrascadas complexas. Favores dados, favores retribuídos, ele foi conseguindo resolver os crimes dos quais era encarregado. De fato, isso danificou sua reputação com outros policiais, no caso, a maioria deles. Mas o que realmente lhe interessava era que sua a família o visse como um bom policial. Diferente do que se poderia supor, a importância dessa imagem não estava relacionada à vaidade, não. Era algo muito mais particular: ele nunca fora bem sucedido em nada! O que não se devia em absoluto à falta de talento para uma ou outra atividade, mas por ter nascido com uma insatisfação tal que jamais se interessava muito tempo por coisa alguma; sentia que algo lhe faltava. Se permaneceu como policial isso deveu-se em primeiro lugar ao desinteresse e a negociatas. E daí? O fato é que tinha imagem de bom policial para os que lhe interessavam.

Quando Mônica lhe pediu para investigar uma série de assassinatos com a vantagem de saber que todas as vítimas foram submetidas a um tratamento farmacológico contra o câncer na Rimane, ele decidiu apostar, pois aquilo seria o coroamento de sua carreira; para os demais policiais, Erodes tinha sido destacado para um trabalho qualquer. Ela lhe garantiu que ele teria acesso a todos os recursos disponíveis empresa, pois ninguém menos que seu lendário dono, Gregório Idesti, estaria por trás do pedido. O investigador sabia que se aquilo fosse verdade ela era uma das raras pessoas do mundo a já ter visto o homem que nunca aparecia em público. A partir daquele dia ele se transferira para uma sala de arquivos no prédio onde se encontrava neste instante.

_ Então, ainda quer falar comigo? – perguntou a moça resgatando-lhe das lembranças de meio ano.

_ Mônica, por que um criminoso entrou nesse prédio protegido por seguranças? – disparou Erodes.

A garota costumava ter respostas pré-fabricadas, agora, porém, permaneceu sem reação. Tentando prolongar o aturdimento dela o policial acendeu um cigarro o mais lentamente que pôde. Ofereceu um para Mônica que, diferente dessa vez, nunca os recusava. A resposta improvisada foi a de que qualquer pessoa que entrasse na companhia era algo que não lhe dizia respeito.

_ Escute aqui, desgraçada! – Eu não vou estragar minha carreira por causa de suas mentiras! Não venha bancar o paciente que paga fortunas ao médico mas que durante a consulta mente para esconder comportamentos reprováveis. Eu preciso do diagnostico verdadeiro!

Sem responder ela lhe estendeu a mão mostrando querer aquele cigarro. Tragou quase metade dele olhando para o alto e Erodes intuiu que suas palavras ecoavam nela.

_ Preste atenção, se o que lhe disser sair daqui, nós dois…

_ Lembra? Eu sou o homem certo para o trabalho.

Mônica deu uma nova tragada e pareceu mais aliviada por estar prestes a confessar-se com um interlocutor de moral questionável. Ela não tinha alternativa, afinal, também sabia que seu chefe estava para chegar em poucas horas e não ficaria satisfeito quando soubesse dos assassinatos e da incapacidade dela em lidar com eles. Também concluiu que Erodes aparentemente era mais musculoso que esperto e não conseguiria nada sem que ela lhe relatasse informações confidenciais. A moça foi até um arquivo a poucos metros da mesa do policial e abriu uma gaveta.

“Estava aqui o tempo todo” – espantou-se o investigador.

_ Tome, eis aquilo que precisa saber – disse ela entregando-lhe uma pasta.

Ela tinha apanhado um novo cigarro sobre a mesa do policial e um mão trêmula o mantinha à boca. Seu rosto estava ainda mais sem sangue do que de costume.

Depois de dar um primeira examinada nos documentos o policial não se conteve:

_ Você acha que isso é uma piada?

_ Infelizmente não é uma piada e ninguém mais que eu quer encontrar as respostas, pois meu chefe tem tudo para ser o próximo alvo de algum louco assassino.

Ela sentou-se, e pela primeira vez, a intuição do investigador dizia que a garota não escondia algo, ainda que sua revelação se assemelhasse a mais deslavada mentira jamais concebida. De acordo com ela, nenhuma das vítimas fizera tratamento para o câncer. Gregório Idesti tinha criado um procedimento revolucionário de preservação da vida: o armazenamento todas as emoções, habilidades cognitivas, lembranças e demais aspectos da personalidade, enfim, das faculdades mentais definidoras da pessoa, num circuito de computador. Assim, mesmo com a morte da carne, a essência do indivíduo poderia ser reimplantada num novo corpo sendo preservada eternamente. A técnica havia sido inventada no século XXII, isto é, há mais de 200 anos, mas por determinação do próprio inventor, nenhuma consciência preservada deveria ser reativada antes de passados cento e quarenta e quarto anos da morte de seu antigo dono. Por questões logísticas as primeiras pessoas foram ressuscitadas a cerca de dez anos, desde então os assassinatos vinham ocorrendo.

_ Então seu chefe estava entre os primeiros a passar pelo procedimento? – interrompeu Erodes.
Mônica disse ter mentido sobre isso também: antes de morrer, Gregório tinha explicitado uma data precisa para ser ressuscitado, por isso, outros “eternizados” – era assim que Gregório tinha batizado a futura casta de imortais – tiveram suas personalidades despertas antes da dele. Ela, como única parente viva dele, era quem tinha decidido ir atrás de Erodes, alguém com um passado, logo bom candidato a guardar segredo. Era urgente que o caso fosse solucionado, pois a bem da verdade, havia chegado o tempo do fundador da Rimane ser ressuscitado e ela não podia deixar que ele corresse perigo.

A garota encerrou seu relato surreal com um toque macabro: o procedimento só poderia ser realizado em receptáculos vivos. E para isso era preciso “matar” a personalidade do antigo dono de um corpo para que o implante da personalidade preservada pudesse ser feito; presidiários condenados à morte ou à prisão perpétua estavam sendo utilizados. Eram informados de que se participassem de um experimento teriam suas penas revistas, mas acabavam tendo suas existências deletadas.

Então o policial entendeu o que havia acontecido nas catracas, a ficha do homem mal vestido estava ali. Seu nome era Paolo Scorsa. Erodes não o reconheceu imediatamente, pois não tinha sido o responsável direto por sua prisão há cerca de sete anos; o conhecera pela TV. Como tantos outros mafiosos menores ele executava desafetos de sua família na esperança de galgar postos de liderança; infelizmente para o carcamano, sua bela carreira foi interrompida pelo encarceramento.

_ Quero conversar com Paolo Scorsa.

Aquele não era exatamente o pedido que Mônica achava que ouviria. Quase reflexamente ela disse que aquele pedido não seria atendido. O motivo era simples: Paolo Scorsa, àquela hora, já não existia. Ela tinha escolhido o jovem belo e saudável – sua mente doentia não atrapalharia em nada mesmo – para ser ocupado pelo próprio Gregório. Procedimento que devia estar sendo concluído ali mesmo num dos laboratórios do subsolo.

_  Tudo bem. Eu só ia confirmar algo com Paolo, mas posso fazer melhor: posso dizer a seu chefe o que ele precisa saber sobre os assassinatos.

Ela retrucou que Gregório não sabia de nada sobre os assassinatos já que até então estava morto e, que no devido tempo, ele seria informado sobre os crimes, sem alarde. Além do mais, qual o sentido dele conversar com seu chefe se nada fora descoberto! Tudo o que Erodes achava que pudesse saber podia ser dito a ela mesma.

_ Precisa confiar em mim! Lembre-se, Mônica, você não tem alternativa. E eu descobri algo, sim. Um dos três assassinos presos me deu uma informação e posso explicar que motivo levou tantos inocentes a cometerem assassinatos.
Mônica argumentou que aqueles três estavam completamente malucos e não tinham dito nada de útil em dezenas de ocasiões anteriores. Entretanto, por mais que tentasse extrair algo dele, o policial disse que só daria as informações para o próprio Gregório Ideshi, mas que se ela preferisse, eles podiam abandonar a coisa toda.

A garota deixou a sala de arquivos dizendo não ter certeza se aquilo era correto. Quando ficou só, Erodes sorriu maliciosamente pela certeza de que sua mentira teria o efeito desejado. Ele faria o que fosse necessário para resolver o caso, inclusive, tentar extrair algo do sujeito cuja invenção monstruosa estava na origem de toda a confusão.

Cerca de uma hora depois, quando estava quase amanhecendo, Erodes soube que teria sua chance com Gregório Idesti. Mônica subiu com ele até alguns andares acima. Parando pouco antes, indicou-lhe uma porta. Deixou-o. Um rapazola que servia de segurança tomou sua automática e ambos passaram pela porta. No lugar havia diversas dependências e ele foi conduzido até uma sala de reuniões. Antes de sentar-se outro segurança veio em sua direção e dessa vez ele foi revistado. Tendo passado no teste, pediram educadamente para que ele aguardasse a chegada do senhor Idesti.
Em torno da mesa retangular e comprida vários seguranças o encaravam, um em especial, posicionara-se às suas costas. Cerca de oito minutos depois entrou Gregório Idesti e o policial, num raro gesto de cortesia, adiantou-se para ficar de pé ao que o segurança atrás de si tentou impedir-lhe segurando-o pelo ombro. Com um rápido giro Erodes puxou o braço do rapaz para trás imobilizando-o.

_ Tire as mãos de mim, garoto – disse enquanto os colegas do segurança imobilizado partiam para cima dele. Então o recém-chegado exigiu:

_ Deixem-no em paz!

Ao ouvir a voz, o policial sentiu o estômago revirar, sua boca começou a secar e a saliva convertia-se numa massa pastosa. Graças aos olhos envelhecidos e à pouca iluminação, Erodes tinha uma visão prejudicada do novo eternizado. Era sem dúvida o corpo que pertencera ao jovem mafioso, contudo, agora trajava roupas finas e tinha uma postura altiva. Passando direto pela mesa ele foi direto para a porta que dava acesso à sacada e com a cabeça fez um gesto para que um de seus rottweilers a abrisse. Não foi à sacada, porém, ficando diante da porta aberta de costa para os presentes. Sem formalidades ele se dirigiu ao policial:

_ Estive ausente por mais de cento e cinquenta anos e imagino que o mundo esteja muito diferente e haja muito para ver. Aquela bela jovem da qual sou antepassado, Mônica, me convenceu, contudo, que eu precisava ouvi-lo. Algo relacionado ao fato de eternizados terem sido assassinados e que o senhor teria informações capazes de garantir minha segurança. Portanto, seja breve, e use bem o privilégio único que estou lhe concedendo.

A cada palavra o mal estar de Erodes aumentava. Sua boca estava agora completamente seca e uma sede terrível queimava sua garganta. Mesmo assim ele tentava concentrar-se e tentou a sorte dizendo que ambos já tinham se encontrado, pelo menos ele e o antigo dono do corpo. Sem paciência, Gregório Idesti respondeu que não se interessava pelas atividades do antigo dono daquela carcaça; sua existência tinha sido apagada e agora era ele quem estava ali.

Mais e mais nauseado além de sedento, o policial fez ainda duas tentativas de obter alguma informação, mas não funcionou. Entediado, Gregório Idesti suspirou fundo e virou-se para a sala. Olhando diretamente para Erodes:

_  Não temos mais nada para conversar.

No mesmo instante a sede atingiu níveis insuportáveis, tudo parecia desidratado e ele viu, ao encarar o antigo rosto de Paolo Scorza, que Gregório tinha roubando-lhe o último filete de água da Terra. Ele precisa tomá-lo de volta e eliminar a sensação que o consumia. O mal estar tornou-se tão profundo que o policial imaginou-se desmaiando. Ao invés, uma atração inelutável o dominou e quando tomou consciência de seu próximo ato estava agarrado ao chefe da Rimane tentando extrair dele aquilo que lhe pertencia. Na luta, um segurança tentava conter o investigador pelo pescoço enquanto este dominado por uma força descomunal empurrava Idesti em direção à sacada.  Caíram os três. Deslocados pelo segurança da trajetória que os levaria à rua, policial e eternizado aterrissaram numa sacada cinco andares abaixo enquanto o primeiro teve a coluna partida no patamar da mesma sacada e continuou sua descida até espatifar-se cinquenta andares abaixo.

Erodes caiu de costas e conseguia ver o novo corpo de Gregório Idesti retorcido, rosto e tronco de frente para o chão e pernas ao contrário, braços espasmódicos. Então, enquanto o conteúdo da cabeça do eternizado se espalhava lentamente pela sacada, o policial viu-se nascer num outro corpo, chorando séculos atrás pela perda de pais que não eram os que conhecia nessa vida e tendo saudades de um amor que nunca vira. Ele tinha certeza que aquelas lembranças eram da personalidade que fora implantada em Paolo Scorza; sua própria personalidade quando fora batizado como Gregório Idesti, há mais de duzentos anos. Seus olhos foram esfriando e seus últimos traços de calor recolheram-se a seu coração que ensaia os batimentos finais. Lá havia felicidade, pois sua alma, na verdade, a metade com a qual nascera e a metade complementar de Gregório Idesti, preservada há tanto, podiam voltar a ser uma.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

O primeiro pensamento




Há séculos a Ciência foi elevada à condição de instância suprema no julgamento de todas as questões humanas. Como um fruto que amadureceu nesse ambiente, Ronaldo, em sua juventude, foi um fiel depositário dessa ideologia. O reconhecimento que esperava em troca de sua fidelidade foi, contudo, substituído pelo desprezo de seus antigos colegas de universidade. Não importou o quando ele foi capaz de expressar- seguindo todos os fundamentos do método científico; não havia tolerância na Academia para com suas hipóteses sobre viagens no tempo. A demissão seguiu-se ao isolamento e, em sua raiva, ele tomou como meta provar que tinha razão.

Passadas três décadas, reconhecia que suas frustrações com a Ciência o permitiram entender que precisava buscar inspiração em outras fontes. Se por um lado os cientistas estavam certos ao afirmarem que voltar no tempo era impossível já que fatos passados desapareciam para sempre, por outro, erraram de forma miserável ao não considerarem que todo evento deixa “rastros”. Ao investigar documentos indianos milenares tais como Os Vedas e o Scrimad Bhagavatam, Ronaldo descobriu que neles, a estrutura do universo e toda sua física estavam descritas de modo preciso! Havia mais: eles afirmavam que o pensamento era uma forma de energia! As investigações também acabaram por demonstrar que a crença do “pensamento influenciando o mundo físico” era mais séria do que se poderia imaginar: pensamentos consistiam numa forma de energia passível de detecção e mensuração!

Graças a essa descoberta ele construiu um dispositivo capaz de detectar energias de pensamento e voltar até sua fonte, isto é, o passado!  Não conseguiu pensar em nenhum nome melhor que “máquina do tempo” para sua criação. Primeiro ela fora testada com objetos inanimados e finalmente com animais. A prova de que tinham voltado no tempo dava-se a partir da análise do pó ou pólen que ficasse à “cobaia” em questão. Faltava testá-la com seres humanos, o que deveria levar muito tempo para ser seguro, mas infelizmente, os acontecimentos não iriam permitir.

Há muitos anos, cientistas de todo o mundo concordaram que só havia um jeito de evitar a degradação do planeta: eliminar desmatamentos, emissões de carbono, energia nuclear e todas as formas de contaminação da Natureza.  Apesar disso, nos últimos cinquenta anos nunca foram registrados tantos terremotos, furacões, tsunamis, vulcões ativos ou incêndios espontâneos de grandes proporções. Existiam ainda estranhos relatos sobre barulhos ensurdecedores durantes muitas dessas catástrofes. Se para a maioria das pessoas isso não importava, afinal, elas continuavam levando suas vidas e acreditando que, com o tempo, as medidas de preservação fariam com que o planeta se estabilizasse (e seria possível instaurar o paraíso na Terra!). Para Ronaldo o planeta estava morrendo. Não porquê as medidas corretivas tivessem começado tarde demais. Pelo contrário, a Terra ainda não estava tão comprometida quando as mesmas foram implantadas. Sua intuição lhe dissera que havia algo mais! E que nenhum cientista fora capaz de perceber!

Semelhante aos que diante da morte dizem rever sua vida inteira num instante, a crença de que o fim do mundo estava próximo, fez Ronaldo desejar ser capaz de repassar toda a história humana para si quando chegasse a hora. Por isso, mesmo confrontado pela possibilidade de visitar qualquer época, Ronaldo não hesitou decidir-se por usar sua máquina do tempo para detectar as origens do homem, pelo menos do ser humano racional, já que rastrearia o primeiro pensamento. Apostava consigo que as primeiras energias produzidas pelo pensamento e detectadas seriam de por volta de dois milhões e trezentos mil anos, época de surgimento do primeiro ser pertencente ao gênero Homo, o Homo habilis.

Uma coisa importante revelada pelas investigações de Ronaldo foi que qualquer pensamento, sobre eventos do mundo real ou sobre fatos imaginários, geravam energia. Tentar voltar no tempo em busca de uma fantasia qualquer seria desastroso (isso provavelmente explicava o motivo de alguns animais não terem voltado das viagens de teste). Então, como saber que determinada energia de pensamento era sobre um evento histórico? Foi quando percebeu que se queria ter certeza de voltar a um cenário real, devia investigar o quanto objetos antigos tinham sido impregnados com energia de pensamento. Isso significava que algum ser racional esteve perto deles.

Claro que nenhum local reunia mais trastes antigos que um museu. Um arqueólogo que conhecera na época do doutorado era o atual encarregado do museu de História Natural da cidade. Afirmando ter criado uma metodologia de datação mais precisa que o carbono-14 Ronaldo consultou-o sobre a possibilidade de ter acesso aos artefatos de antigos homídios. Aparentemente alheio a qualquer relato sobre os dissabores acadêmicos pregressos e da área de pesquisa do solicitante, o tal conhecido aceitou o pedido com grande entusiasmo.

O museu era o maior do gênero no país, mas para o deleite de Ronaldo toda a parte de pesquisa ficava no subsolo e ele não tinha de modo algum que ficar em contato com a multidão de turistas que lotava o local todos os dias com exceção das terças, dia no qual ficava fechado para manutenção. Por isso, ele decidiu-se por chegar naquele dia. Graças ao entusiasmo de seu conhecido, uma sala foi especialmente montada para que trabalhasse com tranquilidade. Sérgio, esse era o nome do antropólogo do museu, garantiu a Ronaldo que qualquer coisa que ele precisasse, era só pedir. Sérgio dizia só fazer questão de ter acesso às novas datações que supostamente seriam obtidas.

Os dias seguintes foram dedicados ao exame de ferramentas e outros artefatos atribuídos aos Homo habilis, mas na maioria das vezes nenhuma energia de pensamento era detectada. Na tentativa de saber algo mais sobre o aparelho de Ronaldo, Sérgio usava de qualquer pretexto para ir à sala na qual este trabalhava. Numa dessas idas, trouxe uma caixa cheia de estranhas criaturas fossilizadas. Perguntado se aquelas eram novas peças a serem examinadas, o arqueólogo soltou uma estrondosa risada e respondeu que aqueles eram trilobitas, artrópodes que viveram há mais de 490 milhões de anos; portanto, muito antes de qualquer antepassado direto do Homem. Na verdade, completou, eles tinham desaparecido mais ou menos nessa época durante a primeira, de cinco grandes extinções em massa, a do Ordoviciano-Siluriano. Eram mesmo fósseis raros já que a instabilidade das placas tectônicas tinha levado quase tudo do período rumo ao centro do planeta

Ronaldo lembrou-se que estudara sobre que seu colega dizia e que naqueles períodos de extinção, a maioria das espécies vivas morreu. Embora soubesse que certamente não houvesse qualquer criatura pensante na época dos trilobitas, uma curiosidade tão inútil como a que impulsiona meninos a queimarem fios de cabelo em velas, levou-o a perguntar se podia datá-las. Seria bom para verificar os limites do aparelho, afirmou. De boa vontade Sérgio disse que a catalogação das peças podia esperar e deixou a caixa para ir cuidar de seus afazeres.

Enquanto as análises nas peças de dois milhões de anos demoravam alguns minutos, a máquina do tempo indicou uma grande quantidade de energia de pensamento no primeiro fóssil  em apenas alguns segundos! Claro que aquilo só podia estar errado! Ronaldo decidiu repetir a análise e o fez diversas vezes. Então, conferiu a máquina repetidas vezes. Nada estava errado! Indiferente ao que se esperava como “certo”, as novas mensurações confirmando a primeira!

Logo, Ronaldo percebeu que só lhe restava concluir que alguém emitiu pensamentos próximos daquele fóssil, muito antes do que se acreditava homídio estivesse vivo na Terra! Afirmando que ainda precisa avaliar mais algumas peças, ele recebeu a autorização para ficar trabalhando ao longo da madrugada. Tinha tudo o que precisa e esperaria apenas para ter certeza que ninguém mais estaria no museu para partir. Meia hora depois, ligou sua máquina do tempo e um clarão verde foi o último sinal de sua presença no laboratório.

Ronaldo abriu os olhos sobressaltado como quem acorda após cochilar um instante. Sua máquina realmente funcionava (ao menos ele não estava mais no laboratório)! À sua volta havia uma sucessão de enormes trechos de solo irregular cercado por porções de água igualmente grandes. De repente, sentiu algo raspando em suas pernas, mergulhadas até o joelho nas águas, e saltou assustado. Então percebeu que a água estava infestada de pequenos animais: dentre os quais muitos trilobitas iguais aos do fóssil! Caminhou até a terra firme. Ali, gramíneas de várias tipos eram a espécie dominante enquanto em alguns trechos também se viam pequenas plantas similares a espinheiros cujos frutos lembravam bolas de natal laranja. Um forte tremor do solo o fez cair e rolar de costas de volta para a água.

Praguejando enquanto se levantava começou a ouvir gritos humanos do outro lado da porção de terra à sua frente. Sem poder acreditar correu em direção a origem do barulho e, após superar a lama com muito esforço, chegou a uma elevação. De lá, teve a certeza que os autores dos gritos eram serem racionais, mas com certeza não eram humanos.

Um grupo com cerca de vinte ou vinte e cinco seres humanoides de pele dourada e pelo menos uma vez e meia o tamanho de um homem alto corria numa velocidade superior a de qualquer velocista olímpico. Vestiam uma roupa colante que deixava em evidência os corpos bem proporcionais. Alguns, gritavam em desespero embora nada os parecesse perseguir. No instante em que Ronaldo os viu, o grupo parou e seus membros olharam diretamente para onde ele estava! O susto de que pudesse ser atacado não se confirmou, pois da mesma forma que o viram, todos, à exceção do maior dos humanoides dourados, mantiveram sua fuga.

À distância, Ronaldo e o ser ficaram se examinando com igual espanto até que o primeiro sentiu alguém dizendo algo dentro de sua cabeça! Ele soube imediatamente que era o humanoide e, apesar de não saber o significado do que ouvia, teve a sensação de que o outro queria vê-lo longe dali. Um novo tremor, agora mais forte, fez o viajante do tempo lembrar-se que em alguns minutos a programação automática de sua máquina o levaria de volta. Disposto a tudo para conhecer as origens da vida inteligente na Terra, ignorou seu medo e correu o mais rápido que pôde até alcançar o estranho.

Quando estavam próximos, o gigante deu um passo adiante e ao mesmo tempo que o viajante ouviu dentro de sua cabeça a palavra “gondwana”, viu que ela também era proferida pelos lábios daquele ser numa aparente tentativa de reforçar a mensagem. De qualquer modo, Ronaldo continuava não entendendo. Foi então que homem dourado deu mais um passo a frente e com as duas mãos segurou com delicadeza a cabeça do estranho e fechou os olhos. Este último, por mais que tentasse, não conseguiu impedir que o gigante invadisse seu cérebro com ainda mais força do que antes.

Instantes depois, as delicadas, porém, invencíveis mãos soltaram Ronaldo por vontade própria e o gigante disse algo parecido com “vá”. Ter obtido algum vocábulo na cabeça do viajante não permitia que o ser dourado conseguisse dizer bem fonemas do idioma português; disso advinha a dificuldade em se expressar. Irritado pela ineficácia do esforço, o gigante voltou à estratégia inicial e a palavra “vá” ecoou clara na mente de Ronaldo.

Eram tantas as perguntas que não conseguia decidir-se por qual, mas diante da insistência do homem dourado Ronaldo acabou por dizer “por que?”. Como se não tivesse ouvido, o homem dourado continuava a insistir que o recém chegado fosse embora e, além do “vá”, acrescentou a palavra “fome” à suas súplicas. Enquanto permaneciam nesse cabo de guerra, mais seres dourados passaram correndo pelos dois e quando um novo tremor foi sentido, o gigante parou de falar dentro da cabeça de Ronaldo. Olhando ao redor ele andou alguns passos para a direita até uma porção de solo mais arenosos e menos encharcado. Então, com o indicador da mão esquerda, começou a desenhar no chão. Os rabiscos mostravam que alguma coisa que vivia embaixo da terra devorava gigantes e animais.

Por paradoxal que fosse, a profusão de gritos e tremores, pareciam ter anestesiado Ronaldo que não ficou assustado a ponto de sair correndo dali como esperava o gigante. Este ainda tinha seis minutos do tempo previamente programado para permanecer no passado. No mais, ele precisava descobrir como homens avançados tinham surgido num período que se acreditava não ter nenhum tipo de forma de vida complexa e o que acontecera para que nunca tivessem deixado qualquer pista de sua existência.

Indiferente às divagações do viajante e percebendo que este não iria obedecê-lo, o gigante pegou Ronaldo pela mão direita e falou dentro de sua cabeça “vamos”. Era impossível acompanhar o gigante por isso este ergueu Ronaldo como uma boneca de pano e começou a correr tão rápido quando os demais e como se sua carga não existisse. Por fim, Ronaldo foi posto no chão e avistou uma enorme redoma metálica e prateada. Ela era mais alta e maior que as construções que já vira no futuro. Aquele era o local para o qual todos, inclusive eles, estavam se dirigindo.

Quando faltavam quinhentos metros para entrarem, um grande tremor, superior a todos os anteriores, começou a partir o solo por toda a parte, fazendo inclusive, a redoma colapsar. Instantes depois, ela começou afundar no solo, contudo, o mais apavorante era que o tremor vinha acompanhado de um rugido ensurdecedor que parecia oriundo do próprio chão.

As muitas centenas de humanoides dourados que não tinham entrado nela ou escapado de ser engolidos com a redoma corriam agora em total desespero para todos os lados. Mas, pouco a pouco, aquilo que antes eram charcos com água foi cedendo espaço a um líquido que vinha das profundezas da Terra e, ao entrar em contato com alguém, o dissolvia como uma espécie de suco gástrico. Finalmente, depois de feita a digestão, o líquido e seu novo conteúdo nutritivo eram estranhamente drenados pelo solo.

Ronaldo sabia que em poucos minutos tudo seria dissolvido e tragado para as profundezas. O apavorante grito continuava sempre mais forte e, na impossibilidade de manter qualquer diálogo ele segurou no braço de seu companheiro e pensou “por que?”. Desde que todos começaram a ser mortos este último tinha permanecido alheio assistindo o fim. Ao ser tocado seus olhos repletos de lágrimas fitaram o viajante antes com a ternura de um pai que tenta poupar seu filho de um grande sofrimento que por tristeza quanto a sua própria tragédia.

Foi quando do estranho suco digestivo começar a extravasar do solo sob os pés de ambos. Urrando de dor, o gigante apanhou Ronaldo pela segunda vez e encostou sua testa na dele para segundos depois arremessa-lo para cima. Antes que Ronaldo pudesse cair de volta e ser dissolvido como seu amigo já morto, um clarão esverdeado decretou que era de voltar para sua própria época.

Um novo sobressalto e quando abriu os olhos Ronaldo viu-se mais uma vez no laboratório do museu. Sentando-se numa cadeira disse em voz alta para si mesmo que jamais saberia qual fora o primeiro pensamento ou até mesmo a razão para ter sido atraído para aquele instante específico, mas graças à última mensagem telepática do gigante dourado podia sentir-se satisfeito. Afinal, havia acertado sobre o que vinha acontecendo na Terra: havia algo mais! Descobrira que aquela que os homens modernos chamavam de Gaia e acreditavam ser uma mãe amorosa maltratada por seus filhos ingratos já fora conhecida como “Godwana” há milhões de anos por uma raça superior que desapareceu nas entranhas do planeta. Sim, antigos e modernos estavam certos em acreditar que a Terra era um ser vivo, mas só os primeiros descobriram tarde demais que ela era uma mãe monstruosa que, de tempos em tempos, saciava sua fome devorando quase todas suas crias e deixando os sobreviventes para que recomeçassem, evoluíssem, na ilusão de um pretenso amor materno. Um fortíssimo tremor acompanhado de um conhecido grito monstruoso fez o solo do museu abrir-se e Ronaldo sabia o que viria de lá: o sexto grande extermínio em massa.


domingo, 5 de maio de 2013

Conhece-te a ti mesmo






Justo agora? Faltando menos de um ano para aposentar-se! Durante toda sua carreira fora exemplar resolvendo os crimes dos quais o encarregavam e, como recompensa, tinha sido transferido para o trabalho burocrático, o que quase certamente era uma garantia de que não só sua esposa desfrutaria do dinheiro da aposentadoria; aquela era uma cidade violenta. Entretanto, embora não gostasse do pensamento, ele sabia que a recompensa não era tanto pelos bons números contra o crime quanto pela habilidade de livrar colegas de enrascadas.

Mas e dái?  Ele pouco se importava com os danos que isso tinha trazido à sua reputação em alguns setores do departamento. O que lhe interessava era que a família e população o vissem como um herói condecorado e bom policial. A impotância dessa “imagem” ganhava alturas exponenciais considerando-se que ele sempre fora alguém incapaz de manter-se focado em qualquer objetivo. Um sujeito cuja carreira bem sucedida era muito mais o resultado de sorte (destino talvez?) que de competência. Logo, sua trajetória como policial era a única coisa sólida que um sujeito espiritualmente insatisfeito podia exibir para ocultar a síndrome congênita de fracasso que parecia portar (às vezes estava certo de ter nascido com “partes” faltando).

Infelizmente, no final de sua carreira esse legado estava arriscado. Qual a razão para terem o colocado no, até então insolúvel, caso dos implantes? Nem aqueles receberam seus favores no passado e agora estavam em posições de poder souberam lhe explicar. “Ordens de cima”, um ou outro limitou-se a dizer.  Fosse qual fosse o motivo, sentia náuseas e uma dor no peito ao pensar que muito provavelmente num futuro não muito distante a família e a sociedade teriam esquecido suas vitórias e todos o lembrariam como mais um fracassado engolido pelo caso Rimane.

Nos últimos seis meses, desde que fora posto naquela arapuca, nem ia à sua mesa no distrito. Rumava direto para a sala de arquivos da Rimane aonde havia sido instalado. Deram-lhe uma moça bonita como auxiliar e muita comida e bebida de ótima qualidade; para ele poderiam ter dispensado a franguinha. Seria uma forma de consolá-lo quanto ao fracasso eminente? Afinal, o quê havia para descobrir? Revisara milhares de documentos e, juntos, os casos resumiam-se a um oceano de “coisa-nenhuma”, preenchido aqui e ali por ilhotas de fatos surreais!

 Em primeiro lugar era preciso dizer que todas as vítimas tinhma recebido o implante de eternização da Rimane. Funcionava assim. "Milhardários" e outros detentores de muito dinheiro tinham sua personalidade  preservadas num chip assim que morriam e, cento e quarenta e quatro anos depois, os dados eram colocados num novo corpo (cuja origem aliás ninguém sabia!).
Os técnicos da empresa diziam que os quase cento e cinquenta anos eram necessários para a que a pessoa começasse de novo, evitando que qualquer aspecto de sua antiga existência (como familiares diretos) viessem a pertubar a nova vida. “Quem não gostaria de morrer e voltar para a família?” ele se perguntava. Na verdade com todos aqueles anos a fortuna do “preservado em chip” ficava bloqueada na Justiça e ninguém de sua família tinha acesso. Ou seja, a resposta para sua questão era:uma gente egoísta que estava mais preocupada em ter uma boa vida quanto a tivesse de volta do que manter laços familiares. Por isso mesmo, ele pouco se importava com que vinha acontecendo com eles e que era o motivo pelo qual estava ali.

Além disso, a técnica tinha começado a ser usada no século XXII, isto é, há mais de 200 anos e, portanto, vinha sendo implantada há cerca de meio século. O problema era que dos primeiros preservados até hoje, vários tinham sofrido atentados e morrido. Os assassinos que em geral acabavam mortos pela segurança da vítima ou agentes da lei. Mas alguns criminosos não morreram e os interrogatórios desses eram especialmente interessantes!  Todos se diziam os indivíduos mais felizes do Universo e, que ainda que fosse condenados a perpétua, a "completude" que sentiam após assassinatos fazia tudo valer à pena. Outro fato curioso, isso tanto para os assassinos que eram mortos quanto para os que eram presos, todos, sem exceção, tiveram uma tira de papel encontrada consigo e na qual havia a  seguinte frase:

 “Estejam onde estiverem, falem a língua que falarem, tenham a cor que tiverem, duas almas gêmeas seguem para um ponto de encontro."

Fora isso, nenhum dos criminosos se conhecia entre si ou à suas vítimas. Mesmos aqueles que se declaravam ter encontrado a "iluminação" ao assassinar seu alvo diziam que até dias antes nunca tinha encontrado ou sabido da existência da pessoal; apenas tinha sentido um desejo incontrolável de dirigirem-se a um local e lá, eram incapazes de não atacar suas vítimas. Isso dito, o policial estava sem pistas e como diz o jargão "num beco sem saída". Isso fazia sem medo de fracassar converter-se em desespero. Quando o barril de suas neuroses estava para transbordar aconteceu...

Era quarta-feira, no fim do expediente que ele lhe auto impusera. Cruzou com um bando de seguranças na catraca de acesso às dependências da Rimane. O cortejo carrancudo protegia um sujeito muito mal vestido posicionado no centro do grupo. Parou. Embora em trinta anos de atividade policial ele tenha visto milhares de feições, era incapaz de esquecer um rosto, especialmente aqueles de criaturas do esgoto. Só não se lembrava o nome nem o motivo pelo qual o mal vestido tinha infringido o limite da Lei. Mas se o cidadão estava naquele lugar ele precisa saber o motivo; além das intuição feminina existe aquela intuição "anti-marginal" lhe velhos policiais são tem de  conviver a contragosto.

Pela primeira vez o trabalho na Rimane pareceu interessante! Nos dias que se seguiram, primeiro tentou descobrir o nome do sujeito por conta própria, mas não conseguiu. Talvez ele tivesse envelhecido, mudado de nome ou qualquer outra coisa. Resolveu mentir. 

Pediu a sua curvilínea auxiliar a fita de circuito interno de quando havia visto o rosto do meliante; sabia o horário exato, mas para não ser óbvio demais,  preferiu pedir as imagens do dia todo. Quando tudo começou meses atrás, seu superior do departamento de polícia e um executivo da Rimane, numa reunião, tinham lhe garantido que a moçoila obteria qualquer informação para resolver o caso. Contudo, o seu pedido das imagens a desconcertou e, com uma desculpa, ela disse que precisava sair. 

Voltou algum tempo depois tentando argumentar sobre o interesse do policial nas imagens e ele deu sua cartada: as imagens iriam ajudar a solucionar o caso dos implantes. Com hesitação a suposta auxiliar disse que no dia seguinte as imagens estariam à sua disposição e que ambos poderiam vê-las. 

Na hora do almoço do dia seguinte apontou o sujeito para a moça:

_ Quem é aquele cercado de seguranças?

De pronto a moça disse que não fazia ideia e ele sabia ser uma mentira. Ele sorriu com o canto do lábio, encarou-a  por alguns segundos e começou a falar. Disse que caso seus chefões quisessem brincar de paciente que paga fortunas ao médico e mente durante a consulta para esconder comportamentos reprováveis, tudo bem. Quem teria um “diagnóstico” e consequentemente um remédio errado, seriam eles. Reforçou dizendo que se até ele já tinha ouvido boatos sobre clientes da Rimane cancelando contratos  pela falta de garantia de que não teria seu chip destruído a coisa estava séria,  mas isso não era problema dele. Por fim, lembrou-a de que a escolha dele tinha sido provavelmente feita com base em seu histórico: sabiam que ele tinha muito a perder caso revelasse algo não autorizado; seu passado era condenável. Deixou a sala dizendo a ela que pensasse e pelo tempo de um cigarro; depois disso se ele continuasse no escuro abandonaria o caso com tudo que já tinha descoberto (claro que não confessou à garota que isso era igual a nada, blefou).

Um cigarro depois, a moça lhe entregou uma pasta tentando dizer que se ele revelasse, mas ele fez sinal para que ela não perdesse seu tempo: ele sabia que seria um homem a menos no mundo se aquilo, o que quer que fosse, vazasse. Apesar da curiosidade quase incontrolável, os anos de treinamento como investigador fizeram com que seus olhos e dedos manipulassem, uma a uma, cada uma das folhas. Mas nem era preciso procurar: o imponderável estava bem à vista! Corpos de presidiários serviam de hospedeiros aos bioimplantes da Rimane. De acordo com o relatório técnico em suas mãos a empresa tinha uma técnica para “matar” a personalidade do hospedeiro a fim de que a do preservado pudesse assumir sem problemas.

_ Mas como vocês convencem alguém a doar seu corpo para isso? – perguntou atônito.

_ Oferecendo dinheio para condenados a perpétuas – respondeu num tom tranquilo sua auxiliar. Como não sairiam vivos da prisão poderiam deixar a quantia para um ente querido ou gastar com qualquer idiotice, como prostitutas, drogas e outras coisas dentro da própria prisão.

“Dinheiro, claro” - pensou o investigador.

Voltou a concentrar-se nos documentos e dessa vez achou algo não surpreendente, uma informação que sabia estar ali: a identidade do homem com a qual cruzara há algumas semanas. Seu nome era Paolo Scorsa. Não o havia reconhecido de imediato, pois não tinha sido o responsável direto por sua prisão há cerca de 15 anos; o conhecera pela TV. A história do moço era como a de tantos outros carcamanos: para ascender na hierarquia de sua família, o na época jovem não se furtava em executar os serviços mais sujos guardando os olhos de suas vítimas antes de incinerar-lhes os restos mortais. Tinha algumas centenas de pares de globos oculares quando foi preso.

“Preciso falar com Paolo Scorsa”

Dessa vez ficou evidente que sua auxiliar não estava ali realmente para apoiá-lo, mas para vigiá-lo. Disse que aquilo estava fora de questão! "De jeito nenhum" foram suas palavras exatas. Agora foi a vez de Luis Antônio, esse era seu nome, manter-se tranquilo. Então para irritá-la, voltou à cantilena de que se quisesse uma solução para o caso ele precisa falar com Paolo Scorsa. Novamente teve seu pedido negado com o acréscimo da informação de que, naquele dia, o sujeito já não era Scorsa e sim algum bilionário preservado num implante. Fora com esse propósito que o presidiário fora trazido semana atrás à Rimane.

O policial disse que mesmo dessa forma poderia obter informações importantes e que a entrevista não precisa ser na forma de um interrogatório; ele seria capaz de obter as informações que precisa numa conversa qualquer. Surpreendida a auxiliar tentou argumentar que não teria desculpa para chamar quem quer que tivesse assumido o corpo de volta à Rimane. Luis Antônio disse-lhe que o perservado poderia ser trazido ali com a desculpa de receber orientações de como se prevenir de algum ataque. Ela deveria dizer que o detetive encarregado do caso sabia tudo sobre os atentados e lhe daria dicas importantes para sua segurança. O preservado, continuou dizendo o policial,  ficou “fora do ar” por um século e meio e obviamente não sabe do risco que corre, mas é melhor ser orientado por vocês que ouvir boatos de terceiros. 

A moça saiu dizendo que não tinha certeza se aquilo era correto, mas Luis Antônio sabia que em poucos dias estaria conversando com o ex-carcamano. Ainda que não tivesse a melhor ideia do que iria fazer no encontro…

De fato, duas semanas depois, soube que teria sua chance com Vito Minetti, esse era o nome do novo dono do corpo que fora de Paolo Scorza. "Que destino infeliz" pensou Luis Antonio "o corpo de um carcamano recebeu a consciência de outro!" 

No dia do apontamento foi revistado pela segurança do novo preservado e teve de concordar em deixar sua arma. Conduzido à uma sala isolada da Rimane pediram que aguardasse a chegada do "senhor Vito". Em torno da mesa retangular e comprida vários guarda-costas o encaravam, um em  especial posicionara-se às suas costas de modo que Luis Antônio não podia vê-lo. O policial não se importava que desconfiassem dele; já tinha feito muita coisa indecente para ter brios de homem de moral ilibada.

Cerca de oito minutos depois entrou Vito Minetti e Luis Antônio adiantou-se para ficar de pé ao que o segurança atrás de si tentou impedir segurando pelo ombro. O policial com um rápido giro puxou a mão do segurança imobilizando-a atrás de suas costas.

“Tire as mãos de mim, garoto” disse o policial enquanto os colegas do segurança imobilizado partiam para cima dele. Antes que isso ocorresse, porém, o empregador de todos, Vito Minetti, ordenou:

“Deixem o detetive em paz”

Passando direto pela cadeira na cabeceira da mesa, o novo preservado foi direto para a porta que dava acesso à sacada e com a cabeça fez um gesto para que um dos guarda-costas a abrisse. Mas não foi à sacada ficando diante da porta aberta de modo que os presentes na sala não podiam ver seu rosto. Sem apresentações ele se dirigiu a Luis Antônio:

“Muito bem, policial, estive dormindo por quase cento e cinquenta anos e tenho muitas coisa para ver. Por isso, seja muito breve. Meu único interesse aqui é que  que preservados como eu têm sido atacados e o senhor parece ter informações que podem garantir minha segurança.

Sem um plano prévio Luis Antônio disse que ambos já tinha se encontrado, pelo menos, ele e o antigo dono do corpo. Sem paciência, o novo administrador daquele organismo disse que não se interessava pelo que o antigo dono daquela carcaça tinha feito: sua existência tinha sido apagada e agora era ele quem estava ali. 

O policial fez mais duas ou três tentativas de extrair alguma informação do preservado, mas esse não quis responder. Aparentando frustração, Vito Minetti suspirou fundo e virou-se para a sala com a cabeça baixa. Depois de uma espera angustiante de alguns segundos levantou a cabeça e olhou diretamente para Luis Antônio:

“Não temos mais nada para conversar”

Nesse instante o policial viu a si próprio dizendo a frase e em seu próximo pensamento percebeu que estava agarrado a Vito Minetti empurrando-o em direção à sacada enquanto um segurança puxava-o pelo pescoço; caíram  todos. Deslocados em sua trajetória inicial, Luis Antônio e Milleti aterrisaram numa varanda cinco andares abaixo enquanto o responsável pelo desvio, o segurança, mais afortunado teve a coluna partida no patamar da mesma varanda e continuou sua descida até espatifar-se cinquenta andares abaixo.

Luis Antônio caiu de costas e conseguia ver o corpo de Vito Minetti retorcido, rosto e tronco de frente para o chão e pernas ao contrário, braços espamódicos. Então, enquanto o conteúdo da cabeça do preservado se espalhava pela varanda, o policial viu-se nascer num outro corpo, chorando séculos atrás pela perda de pais que não eram os que conhecia nessa vida e desejando um amor que nunca conhecera. Ele tinha certeza que aquelas lembranças eram da personalidade que fora implantada em Paolo Scorza; sua própria personalidade quando fora batizado como Vito Milleti, há mais de duzentos anos. Seus olhos ficaram sem luz, mas seus últimos traços de calor foram esconder-se em seu coração que ensaia os batimentos finais. Ele estava feliz, pois sua alma, na verdade, metade com a qual nascera e a metade complementar de Vito Milleti preservada a tanto, podiam voltar a ser uma…