O velho lixão de
Flora do Sul ia mudar de nome, aliás, passaria a ter um não tão fácil assim:
aterro sanitário. Depois de quase três anos trabalhando ali, seu João Antunes e
a associação de catadores tinham mudado a paisagem do antigo lixão: não havia
mais restos de alimentos ou qualquer outro tipo de lixo jogado a céu aberto.
Daniel achava que no lugar de aterro sanitário o lixão poderia começar a ser
chamado de arco-íris, afinal, tudo era guardado num cesto com a cor certa.
O menino tinha
certeza que se Sapeca soubesse falar até ele teria a cor de cada cesto na ponta
da língua, como sua professora dona Esperança costumava dizer que deveria
acontecer com a tabuada: tê-la na ponta da língua.
_ Vamos lá, Sapeca
– ele dizia brincando. Papel?
_ Au, au –
respondia o cachorrinho.
_ Azul, isso mesmo!
– confirma Daniel rindo. Plástico?
_ Auuuuuu.
_ Isso vermelho!
Para cada pergunta
do dono, Sapeca respondia com um gostoso au, au. Teve latido para verde dos
vidros, preto dos cestos para depositar madeira, amarelo para metal e marrom
para o resto de alimentos. O menino achava que seu cachorro estava tão afiado
que até perguntou brincando sobre as cores usadas para guardar lixo vindo de
hospitais, fábricas e para lixos que não podiam ser reaproveitados. Os latidos
na ordem que Daniel perguntou seriam branco, laranja e cinza.
É, o lixão tinha
se transformado mesmo num arco-íris. A parceria entre a prefeitura e a
associação de moradores tinha crescido tanto que depois de algum tempo os hospitais
vieram pedir para que eles coletassem seu lixo. Bem, lixo de hospital não podia
ser guardado junto a papel, plástico, metal, madeira ou vidro. Por isso, Daniel
sugeriu que se usassem cestos brancos iguais aos jalecos dos médicos.
Após os hospitais,
foi a vez das fábricas, essas importantes empresas usavam produtos que se
fossem jogados a céu aberto contaminariam a natureza. Para esse tipo de lixo
foi criada uma cor especial, o laranja, cor surgida da mistura do vermelho dos
plásticos e do amarelo dos metais.
De tanto trabalhar
com lixo, o pai de Daniel aprendeu que tinha alguns tipos de materiais que não
podia ser reaproveitados e por isso precisavam ser adequadamente guardados para
não contaminar a água, o solo ou o ar. Esse tipo de lixo era depositado em
cestos de cor cinza. Quando seu João Antunes perguntou ao filho o porquê
daquela cor para o lixo que não podia ser reaproveitado, Daniel deu uma
explicação que mostrava que ele estava cada vez mais esperto. Sua professora,
dona Esperança, tinha lhe ensinado que a palavra lixo derivava de uma antiga
língua, o latim, e significava cinza porque os povos antigos queimavam seu
lixo. Admirado, o pai aceitou feliz o cinza como cor dos materiais não
recicláveis. Dentro dos cestos cinza eram colocados pregos, tachinhas,
guardanapos, porcelanas, cabos de panela e tudo o mais que não podia ser
reaproveitado.
Daniel gostava de
brincar com o nome arco-irís, mas sabia que o melhor nome para o lixão era
aterro sanitário. Afinal, agora, o terreno do lixão estava sofrendo um monte de
reformas para causar menos danos à natureza. A mudança que deixou o menino mais
aliviado foi a colocação de um material no chão que não deixava que o Chorume e
outros materiais perigosos penetrasse no chão e contaminasse as águas subterrâneas.
Mas o lixão era
apenas um dos lugares da cidade de Flora do Sul que tinha sofrido um monte de
mudanças. A escola, por exemplo, também se transformara. As palestras sobre
coleta seletiva e outras informações para sobre o aproveitamento do lixo não aconteciam
mais só nas emergências, quando da vez que pobres cães e gatos quase viraram
monstros devido ao Chorume, todo mês o senhor Engenho dava várias aulas para
ensinar as pessoas. A primeira coisa que ele ensinava era que todos precisavam
ver o lixo de modo diferente. Em vez de pensar nele como uma coisa inútil,
descartável e indesejável, as pessoas precisavam aprender a conseguir o melhor
proveito dele, por exemplo, reaproveitando materiais.
Outra novidade da escola era a feira do lixo;
nela todos os alunos eram convidados a mostrar ideias criativas de como lidar
com o lixo. Todos os participantes recebiam um broche no formato de latinha de
lixo feito com metal reciclado pela associação de catadores. As ideias eram
divididas em três grupos: aquelas para reduzir
a produção de lixo, o segundo grupo era os das ideias para reutilizar coisas que normalmente iam para o lixo e por último,
vinha o grupo das ideias para reciclar
o lixo. Antes de aprender a palavra reciclar Daniel falava reaproveitar; era o
que a empresa de seu pai fazia.
Além dos lugares,
as pessoas também estavam se transformando. Todo mundo depositava o lixo, nos
cestos com diferentes cores da coleta seletiva. Quem quisesse podia até
procuar, mas não iria encontrar mais lixo a céu aberto. Até ir ao supermercado
em Flora do Sul mudou, as pessoas levavam sacolas de pano para carregar as
compras e não se usava mais as famosas sacolinhas de plástico; que se jogadas
no lugar errado demoravam até cem anos para desaparecerem.
Logo, Flora do Sul
ficou famosa no mundo inteiro. Tinha cidade que era famosa pelo melhor sorvete,
outra pelas uvas mais roxinhas, algumas pelas coisas mais pequenas, e a cidade
de Daniel ficou conhecida com a capital do lixo; aonde se produzia menos lixo e
mais se reaproveitava aquele lixo que não tinha como ser evitado (afinal, é
impossível para as pessoas viverem sem produzir pelo menos um pouquinho de
lixo).
No meio de tantas
transformações positivas, uma, Daniel não considerava nada boa: PP, seu amigo
urubu tinha desaparecido! Durante várias semanas, o menino tinha dado seu
assobio segredo que só os urubus escutam e nada, nem PP nem nenhum de seus
parentes respondia ao chamado. Claro que PP tinha ido embora por causa das
melhorias no lixão, agora não havia mais sujeira a céu aberto vindo das casas,
fábricas ou hospitais e o urubu deve ter ido procurar suas fontes de comida na
natureza. Era ótimo que PP agora se alimentasse de comida natural, mas ele
fazia tanta falta.
A saudade imensa
fazia Daniel lembrar-se do dia em que encontrou o amigo de penas. Ele e Sapeca
estavam andando pelo lixão e viram um ninho sob o Sol. Ao lado de um ovo
quebrado havia uma coisinha careca e depenada que fazia um enorme barulho.
Depois de encontrarem a avezinha, o menino e seu cachorrinho ficaram escondidos
esperando que os pais daquele estranho pássaro voltassem. O tempo foi passando,
passando até que chegou de noite. Daniel foi para casa e pediu ao Sapeca que
passasse a noite viagiando o filhote e não deixasse que nada lhe acontecesse.
Pela manhã, o fiel cachorro estava lá e também o pássaro recém-nascido; só os
pais deste é que não estavam.
Então, Daniel
tomou uma decisão e levou o pássaro para casa. Sua mãe, dona Fátima, quando viu
o filhote disse que aquilo era um urubu e que Daniel deveria devolvê-lo à
natureza pois aqueles animais não podiam ser capturados, mantinham o ambiente
limpo. Seu João Antunes se ofereceu para voltar ao ninho do filhote com o filho
para devolver o pequeno urubu a seus pais. Mas se passou uma semana, na qual
pai, filho e cachorro iam todo dia ao lugar, deixavam o bichinho lá e
esperavam, esperavam. Por fim, o pai de Daniel percebeu que se eles não
cuidassem da ave órfã, ela morreria.
Nos primeiros
dias, embora não tivessem dito isso para o filho, os pais de Daniel acharam que
o pássaro não iria sobreviver. Eles não sabiam direito como alimentar um urubu
filhote em casa, mas o bichinho parecia mágico, comia banana, mamão, pão e
qualquer outra coisa que colocavam na sua boca. Em pouco tempo eles descobriram
que não seria por falta de alimento que o animal não conseguiria crescer.
Depois muita coisa
aconteceu enquanto o urubuzinho era cuidado por Daniel e Sapeca. Primeiro, foi
a dificuldade de escolher um nome bacana até que dona Fátina disse que aquele
bicho de tão pequeno era até bonitinho para um urubu; ficou sendo PP de
pequeninho, pequenino. Engraçado foi Daniel tentando ensinar PP a cantar. O
menino colocava o rádio ao lado do pássaro, mas não tinha jeito, ele não
cantava. Só fazia um barulho estranho. Dona Esperança, a professora de Daniel,
disse que a culpa da ave não cantar não era dela: urubus não tinham uma uma tal
siringe, o órgão vocal das aves. PP não cantava, mas Daniel e Sapeca se
divertiam ouvindo ele crocitar, esse de acordo com a professora era o som dos
urubus.
Três meses depois,
o urubuzinho pequenino, pequenino transformou-se no carinhoso PP. Assim que
aprendeu a voar, o urubu encontrou outros de sua espécie e passou a caçar
alimentos com eles. Mas sempre respondia a um assobio o menino criou enquanto
cuidava do PP órfão. O assobio foi batizado de assobio secreto que só os urubus
escutam.
Tudo isso foi há
quase três anos, antes do aparecimento dos bichinhos do lixo, do Chorume e todas
as transformações no jeito de cuidar do lixo que melhoraram Flora do Sul e a
vida de seus moradores. Agora PP tinha ido embora. O senhor Engenho disse que
talvez ele tivesse ido formar sua própria família; era assim que as coisas
aconteciam na natureza. Podia ser, mas Daniel e até Sapeca, sentia uma falta
danada de PP.
Quando já estavam
de férias da escola, quase no natal, Daniel, Cezinha e os meninos do
Educandário estavam brincando com Sapeca. Depois de correr atrás do próprio
rabo a coisa que o cachorrinho mais gostava era perseguir alguma bolinha
arremessada para longe. Era a vez de Porfírio Pé Ligeiro jogar a bolinha de
tênis. Pensando em fazer o Sapeca ir bem longe e ver a velocidade das quatro
patinhas que corriam como oito, o menino mandou a bola bem alto. Ninguém viu
direito para onde ela foi porque Porfírio Pé Ligeiro mandou a pelota em direção
ao Sol.
Sapeca correu,
correu, mas a bolinha não caiu em lugar algum. A garotada toda começou a
procurar pela bolinha de tênis pensando que ela poderia ter caído numa árvore,
estranho era que no meio do campinho de futebol não tinha árvore alguma! Então,
Daniel ouviu aquele barulho para alguns que não passava de um grito estranho de
um pássaro, mas que para ele era uma música tão bonita que fez seu coração
acelerar: era PP crocitando. No pico, trazia a bolinha de tênis que soltou e
Sapeca logo pegou, depois claro de dar umas belas lambidas de saudade no amigo.
Daniel abraçou seu
amigo e como sempre fazia acariciou sua careca. Mas PP estava diferente: maior,
tinha a cabeça e o pescoço pintados de vermelho, amarelo e laranja. Tinha a
parte superior amarelo-claro e a cauda e asas pretas. PP tinha se transformado
num rei, num urubu-rei. Daniel e todos os outros meninos ficaram impressionados
com a beleza de PP. Depois de receber mais alguns carinhos daquele que o
criara. Ele deu bicadas carinhosas e seu amigo, crocitou três vezes e voou.
Daniel sentia que
era a última vez que veria seu amigo, mas agora não estava mais triste parecia
que uma mágica preenchia seu coração e ele sabia que seu amigo seria sempre
feliz. PP foi voando, em círculos, cada vez mais alto até que por fim
desapareceu.
Trezentos anos de
Daniel nascer, uma fadinha penteava os cabelos na margem de um rio enquanto
segurava um espelho na mão. Olhando para o céu ela viu algo chegando, era seu
amigo pássaro. Quando o animal pousou ele o saudou:
_ Que bom que
voltou, meu amigo. Como é mesmo que o Daniel o chamava, PP? Eu gosto desse
nome. Bem, agora que você já foi ao futuro já sabemos que nosso plano vai dar
certo. O urubu crocitou concordando.
Então a fadinha
disse algumas palavras mágicas e seu espelho deixou de refletir seu rosto,
começou a mostrar todas as árvores e plantas que estavam por perto. Em seguida
ela enterrou o objeto no chão e disse:
_ Você irá
ajudá-los a se lembrar como a natureza é bela.
Próximo dali, do
outro lado do rio, algumas famílias tinham acabado de construir suas casas: as
primeiras de muitas que iriam formar a bela cidade de Flora do Sul.
FIM