quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O Tarô de Marcela



Detesto quando o aniversário de Marcela cai numa de minhas folgas. Não que nos demais dias do ano não pense nela. Certamente penso. Pela manhã, por exemplo, é impossível não fazê-lo todas vezes que, antes de ir para o trabalho, guardo comigo a carta que retirei de seu tarô. Há também os ataques de memórias que surgem sem aviso, mas em todas essas ocasiões é fácil encobrir a saudade com tarefas imbecilizantes que, aliás, são fartas em meu serviço. Nas folgas, contudo, tanto as pequenas lembranças quanto as datas marcantes me açoitam sem pausa.

Engraçado como a lembrança que mais me assola não é aquela do dia de seu enterro nem a da súbita e chocante revelação de que  minha melhor amiga e paixão secreta havia se suicidado por enforcamento. Na verdade, sempre que começo a pensar em Marcela, é a imagem de minha mãe com uma caixa na mão que inicia todo o processo.

Era uma manhã ensolarada de Domingo cerca de um mês depois do suicídio quando ouvi uma batida na porta de meu quarto, contava com quinze anos e tinha muita dificuldade de levantar da cama. Eu estava piorando. Então minha mãe entrou, pôs uma caixa negra sobre meu colo e disse chorando:

_ “Ela” (sabe-se lá o motivo até muitos anos depois do ocorrido, minha mãe ficou sem pronunciar o nome de minha amiga) me entregou isso alguns dias antes de...e, com tudo o que aconteceu, acabei esquecendo, me desculpe. Isto dito, saiu correndo de meu quarto tentando esconder as lágrimas.

Tinha certeza de que a perda de Marcela fez minha mãe abandonar a pouca esperança quanto a eu sobreviver a um grave linfoma. Na verdade, no íntimo, eu também achava que estava acabado e que, se Deus não fosse tão severo em seu julgamento enviando a suicida direto ao inferno, não demoraria eu iria revê-la.

Não abri a caixa de imediato; não esperava por ela. Marcela e eu andávamos afastados nos meses que antecederam sua morte. Recebia ligações e torpedos seus todos os dias, mas ela aparecia cada vez menos. Escrevia que estava ocupada buscando uma solução para a minha doença. Bem, preciso dizer que ela sempre se considerou uma bruxa, sim isso mesmo. Não uma dessas bruxas malvadas com verruga na ponta do nariz, mas alguém que usava os poderes da Natureza para fazer magia. Era o que ela dizia. Sempre achei isso engraçado e indiretamente, em meus raros surtos de coragem dando a entender o que sentia por ela, até aproveitava para dizer que queria ser seu bruxo. Ela ria respondendo que eu queria dizer “mago” e que bruxas e magos tinham suas diferenças. “Nunca leu sobre o rei Artur?” brincava.

Foi a partir do momento que minha doença foi diagnosticada que Marcela tornou-se obsessiva com sua fantasia e isso foi piorando conforme minha condição se agravava. Daí o motivo de estarmos afastados antes de sua morte. Faltava-lhe tempo para estar comigo, mesmo porquê – ela dizia – estaríamos juntos por muitos anos depois que ela me curasse. Em meio a essa loucura toda, ela passou a andar com umas garotas estranhas e que todos diziam na escola estarem envolvidas com magia negra. Numa sexta-feira de lua cheia ela me ligou e estava empolgada como há muito eu não a sentia. Disse que tinha mentido aos pais quanto a ir a um acantonamento naquela final de semana, mas que, na verdade, iria a um encontro de bruxas em busca de “poder”. A última vez que ela me escreveu uma mensagem de texto esta dizia “consegui”.

Nos dias seguintes vieram as notícias sobre as desgraças que se abateram sobre seus pais e sobre ela própria. E depois de tudo isso, naquele domingo, lá estava eu com a caixa preta na mão. Sei lá quanto tempo se passou até que decidi abri-la.  Encontrei uma folha de caderno caprichosamente dobrada. Mas o que primeiro prendeu minha atenção foram algumas cartas. Na verdade, elas me chamaram a atenção pelo mal estar e inexplicável sensação de angústia que geraram em mim.

Nos anos em que passei tentando impressionar Marcela, li muita coisa sobre misticismo e, pelos nomes nos rodapés das cartas, não tive dificuldade para entender que eram parte de uma espécie de tarô. Parte uma vez que na caixa só estavam os arcanos maiores e espécie porquê aquele não era nenhum tipo de tarô conhecido por mim.

Cada lâmina tinha sido feita a partir da fotografia de uma pessoa famosa! Havia celebridades do cinema, música, esporte, literatura e tantas outras áreas. A sétima carta, o carro foi feita a partir da foto do piloto Ayrton Sena.  Os Mamonas assassinas, J.D. Salinger (demorei a reconhecê-lo pela antiga foto em preto e branco), Charles Chaplin, Angelina Jolie e Arnold Schwarzenegger respectivamente, encarnavam A Torre, O Eremita, O Louco, A Imperatriz e A Força. Dos vinte e dois arcanos maiores, três não estavam soltos dentro da caixa, mas numa pequena sacola de pano vermelho com feixe de cordão. Para nenhuma dessas três lâminas pude saber qual era a celebridade; no caso do Imperador e de O Mundo, no lugar das cabeças das celebridades originais foram coladas, respectivamente, a foto do rosto do pai e da mãe de Marcela. Para o enforcado não havia foto colada apenas a feição da antiga personagem arrancada. Um mal estar embrulhou-me o estômago quando lembrei-me a forma com que Marcela cometeu suicídio.

Então voltei minha atenção para a folha em branco. Era uma carta de Marcela para mim:

“Meu querido Mago,
desculpe pela decisão terrível que irei tomar (ou já terei tomado quando estiver lendo isso), mas não consigo conviver com o que fiz a você e `a minha família. Se um dia puder me perdoar saiba que fiz tudo na tentativa de salvá-lo e poder tê-lo comigo para sempre (é, eu sei sobre seus sentimentos! Sou uma bruxa, lembra? Saiba que em outras condições se eu tivesse que escolher entre você e qualquer outra paixão, teríamos ficado juntos!). Preciso que preste muita atenção ao que tenho a lhe dizer. Sempre li sobre feitiçaria e pratiquei rituais que supostamente evocavam as forças da Natureza. Mas a verdade é que jamais coisa alguma aconteceu e apenas por vergonha do fracasso eu simplesmente continuava dizendo ser uma bruxa. Mas as coisas mudaram quando conheci algumas garotas; por várias ocasiões as vi parando a chuva, influenciando pessoas a fazerem seus desejos, prevendo o futuro a partir de informações “assopradas” por fumaças de incensos e outras coisas piores que deveriam ter me alertado para afastar-me delas. Mas agora é tarde...
 
Quando disse a elas que queria ser capaz de mudar o destino das pessoas, me disseram que aquilo era magia poderosa, coisa que só se aprendia em ocasiões especiais, mas que podia ser feito!  Para isso, me aconselharam dizendo que toda bruxa de verdade tem seu objeto de poder. Fiquei muito excitada, pois acreditei que poderia salvá-lo. Então, como sempre tive um dom especial com o tarô, resolvi montar meu próprio jogo, esse que você deve ter em mãos agora. Daí surgiu o convite para que eu fosse àquele encontro no qual menti para meus pais como sendo um acantonamento.

Lá fui obrigada a ficar nua com centenas de outras mulheres de todas as idades. Também tentei justificar que era menor e não podia beber e mesmo assim acabei embebedada. Daí em diante, não me lembro bem das coisas, mas sei que num dado momento estive diante de um grande livro no qual, após escrever seu nome, apareceu do nada o ritual para que meu tarô não fosse um simples instrumento de orientação, mas de determinação do destino alheio! Enquanto eu copia, uma silhueta acomodada num trono me vigiava sob as sombras. Ela me lembrava um homem, um ancião que conhecida todos os segredos daquele livro, mas que de relance achei ter visto como sendo outra coisa...você acredita no diabo?

Depois que voltei do encontro não vi mais minhas “amigas bruxas de verdade” e resolvi realizar o tal ritual. Foi difícil, pois nunca tinha feito nada com usasse sangue, especialmente de um ser querido. Mas pensei em você e consegui sacrificar minha gata Estela.

Apesar de ter feito o tarô em seu nome, não resisti e decidi testá-lo usando-o para melhorar os negócios de papai e vida depressiva de minha mãe. Colei a foto de dele no Imperador e a dela no Mundo. E sabe o que descobri alguns dias depois? As lâminas funcionavam! Mas não do jeito que eu esperava, meu querido. Como fui tão estúpida? Papai passou a ter prejuízos seguidos e voltou a beber muito mais que antes; estou certa que logo ele se acabará. Minha mãe, até o momento que escrevo essa carta, está internada e não reconhece a mais ninguém, nem a mim.

O pior contudo é que como escrevi seu nome no livro de rituais temo que se você não usar o tarô, a morte possa não ser o pior que lhe espera. Escolha uma das lâminas (apenas uma!) e destrua o restante! Não posso dizer-lhe por qual optar. Seu destino deve ser escolhido por sua própria energia pessoal. Amor, mais uma vez eu lhe peço desculpas.

Era tudo o que tinha a dizer. Tomara que aprenda com meu exemplo! Eu que gostava tanto do tarô deveria ter aprendido que a jornada descrita nele, em geral, é a da responsabilidade pessoal que temos em nossas vidas e sobre nossos destinos. Por não perceber isso, fui enganada pela criatura no trono: ela mudou para pior o significado desses arcanos tornando todas as ações pessoais um decreto de dor e sofrimento. Mas de uma coisa eu sempre soube. Nem o criador desrespeita as leis por ele impostas e, por mais trapaceira que seja, qualquer criatura é proibida de interferir com o fato de que nossa vida também é feita de sorte, oportunidades, do acaso, enfim.

E eu espero sinceramente que o acaso esteja com você quando escolher sua carta.
Sua bruxa XXX.”
  
Quando acabei de ler aquilo tive certeza que Marcela cometera suicídio por estar completamente louca. Contudo, à medida que as semanas se passavam meu linfoma ia ganhado a batalha sobre mim. E, conforme eu piorava, algo me dizia que eu precisa destruir aquele maldito tarô e escolher um arcano. Por fim, com ajuda de mamãe fui até o quintal onde escolhi uma carta e queimei as demais numa fogueira.
Não sei se foi o acaso que, ao me permitir que eu escolhesse a única carta não influenciada pela tal criatura, ajudou-me a viver meu próprio destino. Ou se tudo não passou de uma grande coincidência. De qualquer forma, lá se vão quinze anos!

Ah, maldita folga! Deixa eu tirar esse arcano do bolso porque hoje eu não quero nem saber, vou me entregar à gula e à bebida até esquecer...


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O Próximo passo



Acordo em meu quarto e me assusto ao ver Carolina com a cabeça sobre meu peito!

_ Mas você está…

Ela pós o indicador direito sobre minha boca para que eu me calasse.

_ Amor – disse ela – não se preocupe, nunca vou te abandonar. Só quero que fiquemos juntos.

_ Carol, eu não posso. Ainda não estou pronto para um passo desses.

Então Carolina começou a gargalhar abrindo a boca de forma tão exagerada que a parte de baixo com a mandíbula formava um ângulo de 90o  com a parte do maxilar acima e, em meio a tudo isso, apenas ambas articulações temporomandibulares mantinham juntas as duas metades de sua cabeça. Interrompendo seu riso demoníaco ela disse:

_ Amor, você não vê? Não está pronto agora e nem nunca mais estará para dar qualquer outro passo.

Ela baixou seus olhos para minha perna direita e tocou-a de modo carinhoso e suave como sempre fazia com minhas pernas; segundo Carolina aquelas eram as pernas mais lindas do mundo. Assim que senti seu toque uma dor lancinante invadiu a parte interna dos dedos de meu pé e começou a subir dividindo-se no perônio e na fíbula e voltando a unir-se no fêmur parando no terço superior da coxa. Dos ossos a dor passou a impregnar a carne, queimando-a, e tive a certeza que o tecido seria assado.

Acordei  com o som de meu próprio grito. Carolina, suas palavras, o toque, tudo fora um sonho. Mas não a dor insuportável, esta cruzara o portal entre o inconsciente gerador de sonhos e a realidade da vigília. Eu podia sentir aquele tormento em cada célula do meu membro inferior direito. Em cada célula de uma perna que eu não tinha mais!

E foi dessa forma que terminou a primeira noite na qual passei em casa depois de quatro meses hospitalizado por causa de um sério acidente motociclístico que me deixara aleijado.

Em agonia ligo para o doutor Marcelo, um velho amigo de papai que tornou-se meu médico desde que vim ao mundo e cuja relação era mais intensa que àquela que gozava com meu genitor. Três toques depois ele atende. Sem ver importância naquilo, nada lhe digo sobre o sonho, apenas sobre a dor violentíssima que começara de repente numa perna que não estava lá. Ele pareceu surpreso, mas ao contrário do que eu supus não pela ocorrência da dor num órgão inexistente, mas por tal fato ter ocorrido somente agora.

Conforme ele me explicou, cerca de 50% a 80% dos indivíduos que sofriam amputações apresentavam uma dor de etiologia não muito bem conhecida na parte amputada com se ela ainda ali estivesse e, por isso, a condição era chamada de “dor do membro fantasma”. Os melhores palpites davam conta que a bizarrice surgisse por alterações na função dos sistemas nervoso central e periférico. Contudo, o comum era que a dor surgisse logo após o trauma e, não como no meu caso, meses depois do incidente.

Por fim, ele me disse que me enviaria remédios, na verdade seriam várias categorias deles já que o desconhecimento sobre as causas da dor não tinha permitido até aquele momento que a comunidade médica estabelecesse um protocolo de tratamento; nos apoiaríamos na velha tentativa e erro para aplacar o mal. Por isso mesmo, eu deveria seguir rigorosamente as instruções de como tomar cada tipo de fármaco e, assim que pudesse, ele viria me consultar em casa. Enquanto isso, sugeriu que eu ficasse na banheira com água quente para aliar a dor.

Acredite ou não, passei o dia na banheira e adormeci lá apesar de a água eventualmente ter esfriado eu sequer ter percebido indo direto até a manhã seguinte. Foi quando a campainha do apartamento me acordou. Depois da ridícula cena de pular por todo o lugar com apenas uma toalha presa à cintura, consegui abrir a porta com muita dificuldade e vi uma caixa de um conhecido serviço de entregas expressas junto a meu pé esquerdo; nada de precisar assinar ou mesmo de entregador. Tinha sido enviada por Marcelo, conforme prometido.

Momentos antes de fechar a porta para voltar a minha clausura, a velha senhora que morava no apartamento do lado e não conseguia deslocar-se para onde quer que fosse sem um cilindro de oxigênio e uma máscara, apareceu. Ela passou a alternar suas profundas e sôfregas inspirações com a retirada da máscara durante as expirações a fim de dirigir-me todos os impropérios que conhecia. Na essência, tratava-se de uma reclamação por eu ter feito barulho a noite inteira com meus passos arrastados pelo apartamento. Eu não costumava revidar a ataques como aqueles, vindos de alguém que precisa de atenção e piedade. Contudo, parece que com a perda da perna minha paciência também foi amputada e comecei dizendo que ela estava louca e terminei por xingá-la de modo dão violento que ela rapidamente desapareceu dentro de seu apartamento escuro.

Tornei a voltar minha atenção para caixa e fechei a porta atrás de mim. No mesmo instante que abri o pacote pensei que se a caixa de Pandora tivesse sua antítese esta última estava em minhas mãos naquele momento. Lá dentro, uma diversidade de comprimidos de vários formas e tamanhos: anticonvulsionantes, antidepressivos tricíclicos, inibidores da recaptação de serotonina, anestésicos locais como lidocaína, anti-inflamatórios não esteroides e até mesmo beta-bloqueadores. Como já estava bem acostumado com os garranchos de meu médico, não tive dificuldade em ler o bilhete no qual ele me advertia (mais uma vez!) para que consumisse os remédios conforme ele prescrevera ali. Eram medicamentos perigosos. Podiam causar sedação, confusão, queda de pressão dentre outras dezenas de efeitos colaterais potencialmente danosos. Mas, acima de tudo, eu não deveria beber enquanto tomasse aquelas coisas. Pobre doutor Marcelo, somente alguém que nos tem como filho é capaz de fazer tudo, inclusive perder a objetividade para nos aliviar o sofrimento. Era a única forma de entender como ele teria acreditado que eu iria fazer o que ele me pedia. De qualquer modo, a encomenda não poderia ter chegado num momento mais propício, pois a dor que parecia me dar trégua durante o sono começava a sinalizar sua volta com todo seu vigor.

Tomei diversas pílulas com um pouco de whisky para que tudo descesse melhor. Os medicamentos aliviaram bastante a dor, mas ela ainda estava lá. Por isso, liguei a televisão para, quem sabe, fazer com que eu me esquecesse daquilo que restava da dor original.

Algum tempo depois estava jogado no sofá quando uma voz me chamou a atenção, era Carolina. Ela simplesmente apareceu sentada ao meu lado e trazia o que fora minha perda direita, agora uma massa de tecidos e ossos esmigalhados, sobre seu colo. Provavelmente vendo meu espanto ela disse:

_ Eu a estou guardando para você – referindo-se ao membro. Estamos lhe esperando – ela continuou enquanto abria a mão direita e um minúsculo par de sapatos brancos de bebê apareceu.

Também disse que eu não me preocupasse com a  velha ou qualquer outra pessoa, pois ela e “nossa criança” por nascer não deixariam que ninguém me causasse mal. Nesse momento, olhei para o corredor que dava acesso à porta principal do apartamento e me lembrei que ali mesmo, quatro meses atrás, ela tinha me dito que estava cansada de dormir de vez em quando no meu apartamento. Insistia que precisávamos ficar juntos porque as coisas iriam mudar. Não quis saber o que ela quis dizer com aquilo e peguei meu capacete para ir à faculdade de engenharia. Carolina, disse que poderíamos conversar mais tarde, e que precisava de uma carona. Concordei tendo como intenção secreta não mais procurá-la e proibir, junto aos porteiros, seu acesso ao meu apartamento. Entretanto, uma caminhonete que não deu seta ao mudar de faixa acertou minha Harley Davidson e mudou meus planos: levou Carolina que, por sua vez, parece ter levado consigo tanto minha perna e agora sei, quanto nossa cria sobre a qual eu nada quis saber.

Batidas violentas na porta me fizeram pular no sofá, na teve a programação acusava que passara a noite ali mesmo. Parecia que minha vida agora consistia em não perceber quando dormia e ser acordado pela campainha ou por batidas na porta. Depois do conhecido calvário para atingir a porta eu a abri. Na minha frente um policial civil. Ele me olhou de cima a baixo como se estivesse olhando um troço. Sinalizando com o nariz para frente e para trás indicou-me o coto que era a única evidência que eu já possuíra uma perna ali. O curativo que logo não precisaria mais ser feito posto que o coto estava quase completamente cicatrizado, agora estava encharcado de sangue.

Parecendo menos apressado que quando tinha batido em minha porta ele me perguntou se eu tinha ouvido alguma coisa e onde passara a noite.  Perguntei o motivo da questão e o policial respondeu que minha vizinha do lado, Odete Moura (eu nunca soubera que aquele era o nome da velha!) tinha sido encontrada pela diarista com uma tesoura transpassada no pescoço. Eu disse que nada ouvira por ter passado a noite completamente drogado por diversos analgésicos e antidepressivos (por pudor omiti o whisky). Ele não pareceu chocado e também deve ter imaginado que o homem incompleto que eu era agora não seria capaz de matar ninguém. Ele agradeceu e disse que provavelmente tinha sido suicídio já que a diarista havia lhe confidenciado que dona Odete era paciente terminal de um câncer qualquer e não havia sinais de arrombamento; a infeliz fora enviada pelos médicos para casa apenas para  aguardar o inevitável. “Parece que ela não teve paciência, não é?”  disse o policial querendo-se engraçado.

Antes de se despedir ele olhou por sobre meu ombro para dentro do apartamento. Voltou a me encarar e tive a impressão de que além de me considerar um troço incompleto agora achava que eu também era maluco. Em seguida, virou as costas e se foi. Apoiando-me na porta com grande dificuldade consegui voltar o corpo para dentro do apartamento e, então, entendi a expressão de incredulidade no último olhar do policial: as muitas dezenas de pares de sapato que Carolina tinha e, que guardava num armário embutido no closet de meu quarto, estavam alinhados em fila indiana desde seu local de descanso até a sacada do apartamento! A visão me trouxe a maldita dor do membro fantasma e me obrigou a consumir mais analgésicos, antidepressivos e álcool. Ainda assim resolvi dar um jeito naquilo. Quando acabei de colocar todos os pares de sapato em vários sacos de lixo e deixá-los no corredor, meu joelho esquerdo estava inchado pelas centenas de saltos e a axila direita estava bastante machucada pela pressão e atrito prolongados causados pela muleta.

O telefone tocou. Embora não quisesse, acabei atendendo. Era o doutor Marcelo se desculpando por não poder vir naquela manhã, pois tinha surgido uma operação de emergência. Talvez porquê eu estivesse com a capacidade de julgamento comprometida pelas muitas drogas, acabei mencionando que estava tendo visões com Carolina; sobre a velha vizinha cujo fim minha namorada morta apareceu sugerir de modo ameaçador; sobre meus “apagões” e demais coisas estranhas que estavam acontecendo. Complementei dizendo que já ouvira falar que, durante a carreira, um médico acabava lidando muito com o “inexplicável”. Quis saber o que ele achava daquilo. Marcelo me ouviu calmamente e perguntou:

_ Você está tomando alguma bebida com os remédios que lhe passei?

Neguei obviamente. Então, como hipóteses alternativas ele me disse que eu tinha passado por um grave acidente e perdido a mulher que amava (eu nunca lhe confidenciara o que realmente sentia por ela). Logo, os sonhos e a desconexão com a realidade eram provavelmente resultado disso e, talvez, também dos remédios. Como se não tivesse ouvido nada do que ele falou perguntei:

_ Marcelo, por favor, me diga. A necropsia revelou se Carolina estava grávida?

A segurança com que o doutor costumava explicar todos os eventos verificáveis pareceu sumir. Houve um silêncio prolongado seguido de duas ou três tentativas de formular os pensamentos em forma de frases. Por fim, não sei o motivo (afinal se ele mentisse quem saberia?) acabou admitindo que sim; não me contara antes a pedido de meu pai. Pai este que  - conforme me dizia agora Marcelo – me acompanhara no hospital durante todo o tempo que permaneci em coma, mas que por orgulho preferiu continuar sem falar comigo (coisa que já estávamos fazendo há mais de seis anos), e foi embora assim que dei sinais que recobraria a consciência.

Mencionei que fora Carolina quem me contara sobre o bebê em sonho e ele, com sua eloquência já plenamente reestabelecida, disse que provavelmente eu já tivesse percebido aquilo inconscientemente e o sonho nada mais foi que uma forma dessa parte de minha mente revelar-se. Com essa tirada junguiana disse que precisa ir, mas viria me ver tão logo terminasse a tal cirurgia, viria não importaria as horas.

Naquela terceira noite nenhum remédio ou whisky foi capaz de aliviar minha dor de membro fantasma. Eu tão pouco fui capaz de dormir. Por volta das nove da noite estava deitado em minha cama quando ouvi um barulho muito sutil como o choro de uma criança. Apanhei a muleta, mas ao invés de apoiar-me nela, carreguei-a na mão direita como se fosse um porrete e fui pulando até a sala com meu joelho esquerdo inchado. Embora eu não me lembrasse de ter deixado a porta de vidro que dava acesso à sacada aberta, a mesma estava escancarada. Já no chão da sacada, aquele minúsculo par de sapatos de bebê que eu vira antes, tinha sido cuidadosamente depositado.

“Meu bebe” disse sem me dar conta do despropósito daquilo que acontecia no momento ou do que eu dizia.

Deixe-me cair sentado no chão e os apanhei. Agora eu tremia e chorava, mas não era pela dor, não sei pelo que era. Foi quando um vapor frio atingiu minha nuca. Era como se o vapor de água de alguém falando atrás de mim estivesse me alcançando.

_ Amor, venha, não nos faça esperar – dizia a voz, a voz de minha namorada morta Carolina.

De algum modo eu soube para onde deveria ir a fim de poder encontra-la: para além dos limites da sacada; para um salto do décimo terceiro andar. Sem que eu movesse um músculo a dor tornou-se muito, muito intensa assim como meu choro e minhas lamentações. Pedi-lhe perdão por minha covardia. A covardia que a tinha matado e a nossa criança. A fala de Carolina era doce e não tinha lugar para rancor, ela só dizia que me aguardava e que eu precisava ir a seu encontro.

Nesse instante algo começou a me empurrar em direção ao precipício à minha frente e comecei a tentar segurar-me desesperadamente. Não havia ninguém atrás de mim só a pressão que me empurrava. Ao mesmo tempo a voz de Carolina tinha aumentado tanto que eu parecia sentir sangue sair por meus ouvidos machucados. “Dê o passo! Dê o passo!”, ela ordenava. Minhas longas unhas por cortar quebravam deixando rastros de sangue no chão e, com minha perna esquerda, eu fazia força contra a murada que me separava da queda. Comecei a gritar por socorro.

Eu já havia lido que em situações de perigo extremo as pessoas eram capazes de feitos incríveis como arrancar portas de carros e levantar pesos descomunais. Acho que foi graças a essa reserva de força oculta em alguma parte de mim que consegui me arrastar no sentido oposto daquilo que me puxava e alcancei a porta do apartamento. Quanto girei a maçaneta os gritos de Carolina bem como a misteriosa força de tração desapareceram. Desesperado pulei para o machado de incêndio preso à parede e quebrei o vidro que o separava de mim.

Passaram-se vários minutos e fui me acalmando com o machado sobre o colo. Tomara a decisão de esperar Marcelo ali. Não voltaria a entrar naquele maldito apartamento no qual Carolina passara seus últimos dias comigo. Se fosse preciso, imploraria perdão a meu pai e voltaria a morar com ele. Subitamente, percebi duas mãos me puxando pela perna esquerda em grande velocidade para dentro do apartamento rumo à sacada e, quase não consegui manter o machado comigo.

Não sei por quanto tempo fiquei lutando antes de apagar. Então ouvi a voz conhecida:

_ Ricardo, oh meu Deus! Acorde!

_ Doutor Marcelo? Acho que a retalhei bem, mas não tive ângulo para cortar o osso. Fiz um torniquete para estancar o sangue…Que bom que está aqui! Pode me ajudar a acabar de cortar minha perna esquerda? Por favor? Eu ainda não estou pronto para o próximo passo…