Detesto
quando o aniversário de Marcela cai numa de minhas folgas. Não que nos demais
dias do ano não pense nela. Certamente penso. Pela manhã, por exemplo, é
impossível não fazê-lo todas vezes que, antes de ir para o trabalho, guardo
comigo a carta que retirei de seu tarô. Há também os ataques de memórias que
surgem sem aviso, mas em todas essas ocasiões é fácil encobrir a saudade com
tarefas imbecilizantes que, aliás, são fartas em meu serviço. Nas folgas,
contudo, tanto as pequenas lembranças quanto as datas marcantes me açoitam sem
pausa.
Engraçado
como a lembrança que mais me assola não é aquela do dia de seu enterro nem a da
súbita e chocante revelação de que minha
melhor amiga e paixão secreta havia se suicidado por enforcamento. Na verdade,
sempre que começo a pensar em Marcela, é a imagem de minha mãe com uma caixa na
mão que inicia todo o processo.
Era uma
manhã ensolarada de Domingo cerca de um mês depois do suicídio quando ouvi uma
batida na porta de meu quarto, contava com quinze anos e tinha muita
dificuldade de levantar da cama. Eu estava piorando. Então minha mãe entrou,
pôs uma caixa negra sobre meu colo e disse chorando:
_ “Ela”
(sabe-se lá o motivo até muitos anos depois do ocorrido, minha mãe ficou sem
pronunciar o nome de minha amiga) me entregou isso alguns dias antes de...e,
com tudo o que aconteceu, acabei esquecendo, me desculpe. Isto dito, saiu
correndo de meu quarto tentando esconder as lágrimas.
Tinha
certeza de que a perda de Marcela fez minha mãe abandonar a pouca esperança quanto
a eu sobreviver a um grave linfoma. Na verdade, no íntimo, eu também achava que
estava acabado e que, se Deus não fosse tão severo em seu julgamento enviando a
suicida direto ao inferno, não demoraria eu iria revê-la.
Não
abri a caixa de imediato; não esperava por ela. Marcela e eu andávamos
afastados nos meses que antecederam sua morte. Recebia ligações e torpedos seus
todos os dias, mas ela aparecia cada vez menos. Escrevia que estava ocupada
buscando uma solução para a minha doença. Bem, preciso dizer que ela sempre se
considerou uma bruxa, sim isso mesmo. Não uma dessas bruxas malvadas com
verruga na ponta do nariz, mas alguém que usava os poderes da Natureza para
fazer magia. Era o que ela dizia. Sempre achei isso engraçado e indiretamente,
em meus raros surtos de coragem dando a entender o que sentia por ela, até
aproveitava para dizer que queria ser seu bruxo. Ela ria respondendo que eu
queria dizer “mago” e que bruxas e magos tinham suas diferenças. “Nunca leu
sobre o rei Artur?” brincava.
Foi
a partir do momento que minha doença foi diagnosticada que Marcela tornou-se
obsessiva com sua fantasia e isso foi piorando conforme minha condição se
agravava. Daí o motivo de estarmos afastados antes de sua morte. Faltava-lhe
tempo para estar comigo, mesmo porquê – ela dizia – estaríamos juntos por
muitos anos depois que ela me curasse. Em meio a essa loucura toda, ela passou
a andar com umas garotas estranhas e que todos diziam na escola estarem
envolvidas com magia negra. Numa sexta-feira de lua cheia ela me ligou e estava
empolgada como há muito eu não a sentia. Disse que tinha mentido aos pais quanto
a ir a um acantonamento naquela final de semana, mas que, na verdade, iria a um
encontro de bruxas em busca de “poder”. A última vez que ela me escreveu uma
mensagem de texto esta dizia “consegui”.
Nos
dias seguintes vieram as notícias sobre as desgraças que se abateram sobre seus
pais e sobre ela própria. E depois de tudo isso, naquele domingo, lá estava eu
com a caixa preta na mão. Sei lá quanto tempo se passou até que decidi abri-la.
Encontrei uma folha de caderno
caprichosamente dobrada. Mas o que primeiro prendeu minha atenção foram algumas
cartas. Na verdade, elas me chamaram a atenção pelo mal estar e inexplicável
sensação de angústia que geraram em mim.
Nos
anos em que passei tentando impressionar Marcela, li muita coisa sobre
misticismo e, pelos nomes nos rodapés das cartas, não tive dificuldade para
entender que eram parte de uma espécie de tarô. Parte uma vez que na caixa só
estavam os arcanos maiores e espécie porquê aquele não era nenhum tipo de tarô
conhecido por mim.
Cada
lâmina tinha sido feita a partir da fotografia de uma pessoa famosa! Havia
celebridades do cinema, música, esporte, literatura e tantas outras áreas. A
sétima carta, o carro foi feita a partir da foto do piloto Ayrton Sena. Os Mamonas assassinas, J.D. Salinger (demorei
a reconhecê-lo pela antiga foto em preto e branco), Charles Chaplin, Angelina
Jolie e Arnold Schwarzenegger respectivamente, encarnavam A Torre, O Eremita, O
Louco, A Imperatriz e A Força. Dos vinte e dois arcanos maiores, três não
estavam soltos dentro da caixa, mas numa pequena sacola de pano vermelho com
feixe de cordão. Para nenhuma dessas três lâminas pude saber qual era a
celebridade; no caso do Imperador e de O Mundo, no lugar das cabeças das
celebridades originais foram coladas, respectivamente, a foto do rosto do pai e
da mãe de Marcela. Para o enforcado não havia foto colada apenas a feição da
antiga personagem arrancada. Um mal estar embrulhou-me o estômago quando
lembrei-me a forma com que Marcela cometeu suicídio.
Então
voltei minha atenção para a folha em branco. Era uma carta de Marcela para mim:
“Meu querido Mago,
desculpe pela decisão terrível que irei tomar
(ou já terei tomado quando estiver lendo isso), mas não consigo conviver com o
que fiz a você e `a minha família. Se um dia puder me perdoar saiba que fiz
tudo na tentativa de salvá-lo e poder tê-lo comigo para sempre (é, eu sei sobre
seus sentimentos! Sou uma bruxa, lembra? Saiba que em outras condições se eu
tivesse que escolher entre você e qualquer outra paixão, teríamos ficado juntos!).
Preciso que preste muita atenção ao que tenho a lhe dizer. Sempre li sobre
feitiçaria e pratiquei rituais que supostamente evocavam as forças da Natureza.
Mas a verdade é que jamais coisa alguma aconteceu e apenas por vergonha do
fracasso eu simplesmente continuava dizendo ser uma bruxa. Mas as coisas
mudaram quando conheci algumas garotas; por várias ocasiões as vi parando a
chuva, influenciando pessoas a fazerem seus desejos, prevendo o futuro a partir
de informações “assopradas” por fumaças de incensos e outras coisas piores que
deveriam ter me alertado para afastar-me delas. Mas agora é tarde...
Quando disse a elas que queria ser capaz de mudar o destino das pessoas, me disseram que aquilo era magia poderosa, coisa que só se aprendia em ocasiões especiais, mas que podia ser feito! Para isso, me aconselharam dizendo que toda bruxa de verdade tem seu objeto de poder. Fiquei muito excitada, pois acreditei que poderia salvá-lo. Então, como sempre tive um dom especial com o tarô, resolvi montar meu próprio jogo, esse que você deve ter em mãos agora. Daí surgiu o convite para que eu fosse àquele encontro no qual menti para meus pais como sendo um acantonamento.
Lá fui obrigada a ficar nua com centenas de
outras mulheres de todas as idades. Também tentei justificar que era menor e
não podia beber e mesmo assim acabei embebedada. Daí em diante, não me lembro
bem das coisas, mas sei que num dado momento estive diante de um grande livro
no qual, após escrever seu nome, apareceu do nada o ritual para que meu tarô
não fosse um simples instrumento de orientação, mas de determinação do destino
alheio! Enquanto eu copia, uma silhueta acomodada num trono me vigiava sob as
sombras. Ela me lembrava um homem, um ancião que conhecida todos os segredos
daquele livro, mas que de relance achei ter visto como sendo outra coisa...você
acredita no diabo?
Depois que voltei do encontro não vi mais
minhas “amigas bruxas de verdade” e resolvi realizar o tal ritual. Foi difícil,
pois nunca tinha feito nada com usasse sangue, especialmente de um ser querido.
Mas pensei em você e consegui sacrificar minha gata Estela.
Apesar de ter feito o tarô em seu nome, não
resisti e decidi testá-lo usando-o para melhorar os negócios de papai e vida
depressiva de minha mãe. Colei a foto de dele no Imperador e a dela no Mundo. E
sabe o que descobri alguns dias depois? As lâminas funcionavam! Mas não do
jeito que eu esperava, meu querido. Como fui tão estúpida? Papai passou a ter
prejuízos seguidos e voltou a beber muito mais que antes; estou certa que logo
ele se acabará. Minha mãe, até o momento que escrevo essa carta, está internada
e não reconhece a mais ninguém, nem a mim.
O pior contudo é que como escrevi seu nome no
livro de rituais temo que se você não usar o tarô, a morte possa não ser o pior
que lhe espera. Escolha uma das lâminas (apenas uma!) e destrua o restante! Não
posso dizer-lhe por qual optar. Seu destino deve ser escolhido por sua própria
energia pessoal. Amor, mais uma vez eu lhe peço desculpas.
Era tudo o que tinha a dizer. Tomara que
aprenda com meu exemplo! Eu que gostava tanto do tarô deveria ter aprendido que
a jornada descrita nele, em geral, é a da responsabilidade pessoal que temos em
nossas vidas e sobre nossos destinos. Por não perceber isso, fui enganada pela
criatura no trono: ela mudou para pior o significado desses arcanos tornando
todas as ações pessoais um decreto de dor e sofrimento. Mas de uma coisa eu sempre
soube. Nem o criador desrespeita as leis por ele impostas e, por mais
trapaceira que seja, qualquer criatura é proibida de interferir com o fato de
que nossa vida também é feita de sorte, oportunidades, do acaso, enfim.
E eu espero sinceramente que o acaso esteja com
você quando escolher sua carta.
Sua bruxa XXX.”
Quando
acabei de ler aquilo tive certeza que Marcela cometera suicídio por estar
completamente louca. Contudo, à medida que as semanas se passavam meu linfoma ia
ganhado a batalha sobre mim. E, conforme eu piorava, algo me dizia que eu
precisa destruir aquele maldito tarô e escolher um arcano. Por fim, com ajuda
de mamãe fui até o quintal onde escolhi uma carta e queimei as demais numa
fogueira.
Não
sei se foi o acaso que, ao me permitir que eu escolhesse a única carta não
influenciada pela tal criatura, ajudou-me a viver meu próprio destino. Ou se
tudo não passou de uma grande coincidência. De qualquer forma, lá se vão quinze
anos!
Ah,
maldita folga! Deixa eu tirar esse arcano do bolso porque hoje eu não quero nem
saber, vou me entregar à gula e à bebida até esquecer...