Acordo em meu quarto e
me assusto ao ver Carolina com a cabeça sobre meu peito!
_ Mas você está…
Ela pós o indicador
direito sobre minha boca para que eu me calasse.
_ Amor – disse ela –
não se preocupe, nunca vou te abandonar. Só quero que fiquemos juntos.
_ Carol, eu não posso.
Ainda não estou pronto para um passo desses.
Então Carolina começou
a gargalhar abrindo a boca de forma tão exagerada que a parte de baixo com a
mandíbula formava um ângulo de 90o com a parte do maxilar
acima e, em meio a tudo isso, apenas ambas articulações temporomandibulares
mantinham juntas as duas metades de sua cabeça. Interrompendo seu riso
demoníaco ela disse:
_ Amor, você não vê?
Não está pronto agora e nem nunca mais estará para dar qualquer outro passo.
Ela baixou seus olhos
para minha perna direita e tocou-a de modo carinhoso e suave como sempre fazia
com minhas pernas; segundo Carolina aquelas eram as pernas mais lindas do
mundo. Assim que senti seu toque uma dor lancinante invadiu a parte interna dos
dedos de meu pé e começou a subir dividindo-se no perônio e na fíbula e
voltando a unir-se no fêmur parando no terço superior da coxa. Dos ossos a dor
passou a impregnar a carne, queimando-a, e tive a certeza que o tecido seria
assado.
Acordei com o som
de meu próprio grito. Carolina, suas palavras, o toque, tudo fora um sonho. Mas
não a dor insuportável, esta cruzara o portal entre o inconsciente gerador de
sonhos e a realidade da vigília. Eu podia sentir aquele tormento em cada célula
do meu membro inferior direito. Em cada célula de uma perna que eu não tinha
mais!
E foi dessa forma que
terminou a primeira noite na qual passei em casa depois de quatro meses
hospitalizado por causa de um sério acidente motociclístico que me deixara
aleijado.
Em agonia ligo para o
doutor Marcelo, um velho amigo de papai que tornou-se meu médico desde que vim
ao mundo e cuja relação era mais intensa que àquela que gozava com meu genitor.
Três toques depois ele atende. Sem ver importância naquilo, nada lhe digo sobre
o sonho, apenas sobre a dor violentíssima que começara de repente numa perna
que não estava lá. Ele pareceu surpreso, mas ao contrário do que eu supus não
pela ocorrência da dor num órgão inexistente, mas por tal fato ter ocorrido
somente agora.
Conforme ele me
explicou, cerca de 50% a 80% dos indivíduos que sofriam amputações apresentavam
uma dor de etiologia não muito bem conhecida na parte amputada com se ela ainda
ali estivesse e, por isso, a condição era chamada de “dor do membro fantasma”.
Os melhores palpites davam conta que a bizarrice surgisse por alterações na
função dos sistemas nervoso central e periférico. Contudo, o comum era que a
dor surgisse logo após o trauma e, não como no meu caso, meses depois do
incidente.
Por fim, ele me disse
que me enviaria remédios, na verdade seriam várias categorias deles já que o
desconhecimento sobre as causas da dor não tinha permitido até aquele momento
que a comunidade médica estabelecesse um protocolo de tratamento; nos apoiaríamos
na velha tentativa e erro para aplacar o mal. Por isso mesmo, eu deveria seguir
rigorosamente as instruções de como tomar cada tipo de fármaco e, assim que
pudesse, ele viria me consultar em casa. Enquanto isso, sugeriu que eu ficasse
na banheira com água quente para aliar a dor.
Acredite ou não, passei
o dia na banheira e adormeci lá apesar de a água eventualmente ter esfriado eu
sequer ter percebido indo direto até a manhã seguinte. Foi quando a campainha
do apartamento me acordou. Depois da ridícula cena de pular por todo o lugar
com apenas uma toalha presa à cintura, consegui abrir a porta com muita
dificuldade e vi uma caixa de um conhecido serviço de entregas expressas junto
a meu pé esquerdo; nada de precisar assinar ou mesmo de entregador. Tinha sido
enviada por Marcelo, conforme prometido.
Momentos antes de
fechar a porta para voltar a minha clausura, a velha senhora que morava no
apartamento do lado e não conseguia deslocar-se para onde quer que fosse sem um
cilindro de oxigênio e uma máscara, apareceu. Ela passou a alternar suas
profundas e sôfregas inspirações com a retirada da máscara durante as
expirações a fim de dirigir-me todos os impropérios que conhecia. Na essência,
tratava-se de uma reclamação por eu ter feito barulho a noite inteira com meus
passos arrastados pelo apartamento. Eu não costumava revidar a ataques como
aqueles, vindos de alguém que precisa de atenção e piedade. Contudo, parece que
com a perda da perna minha paciência também foi amputada e comecei dizendo que
ela estava louca e terminei por xingá-la de modo dão violento que ela
rapidamente desapareceu dentro de seu apartamento escuro.
Tornei a voltar minha
atenção para caixa e fechei a porta atrás de mim. No mesmo instante que abri o
pacote pensei que se a caixa de Pandora tivesse sua antítese esta última estava
em minhas mãos naquele momento. Lá dentro, uma diversidade de comprimidos de
vários formas e tamanhos: anticonvulsionantes, antidepressivos tricíclicos,
inibidores da recaptação de serotonina, anestésicos locais como lidocaína,
anti-inflamatórios não esteroides e até mesmo beta-bloqueadores. Como já estava
bem acostumado com os garranchos de meu médico, não tive dificuldade em ler o
bilhete no qual ele me advertia (mais uma vez!) para que consumisse os remédios
conforme ele prescrevera ali. Eram medicamentos perigosos. Podiam causar
sedação, confusão, queda de pressão dentre outras dezenas de efeitos colaterais
potencialmente danosos. Mas, acima de tudo, eu não deveria beber enquanto
tomasse aquelas coisas. Pobre doutor Marcelo, somente alguém que nos tem como
filho é capaz de fazer tudo, inclusive perder a objetividade para nos aliviar o
sofrimento. Era a única forma de entender como ele teria acreditado que eu iria
fazer o que ele me pedia. De qualquer modo, a encomenda não poderia ter chegado
num momento mais propício, pois a dor que parecia me dar trégua durante o sono
começava a sinalizar sua volta com todo seu vigor.
Tomei diversas pílulas
com um pouco de whisky para que tudo descesse melhor. Os medicamentos aliviaram
bastante a dor, mas ela ainda estava lá. Por isso, liguei a televisão para,
quem sabe, fazer com que eu me esquecesse daquilo que restava da dor original.
Algum tempo depois
estava jogado no sofá quando uma voz me chamou a atenção, era Carolina. Ela simplesmente
apareceu sentada ao meu lado e trazia o que fora minha perda direita, agora uma
massa de tecidos e ossos esmigalhados, sobre seu colo. Provavelmente vendo meu
espanto ela disse:
_ Eu a estou guardando
para você – referindo-se ao membro. Estamos lhe esperando – ela continuou
enquanto abria a mão direita e um minúsculo par de sapatos brancos de bebê
apareceu.
Também disse que eu não
me preocupasse com a velha ou qualquer outra pessoa, pois ela e “nossa
criança” por nascer não deixariam que ninguém me causasse mal. Nesse momento,
olhei para o corredor que dava acesso à porta principal do apartamento e me
lembrei que ali mesmo, quatro meses atrás, ela tinha me dito que estava cansada
de dormir de vez em quando no meu apartamento. Insistia que precisávamos ficar
juntos porque as coisas iriam mudar. Não quis saber o que ela quis dizer com
aquilo e peguei meu capacete para ir à faculdade de engenharia. Carolina, disse
que poderíamos conversar mais tarde, e que precisava de uma carona. Concordei
tendo como intenção secreta não mais procurá-la e proibir, junto aos porteiros,
seu acesso ao meu apartamento. Entretanto, uma caminhonete que não deu seta ao
mudar de faixa acertou minha Harley Davidson e mudou meus planos: levou
Carolina que, por sua vez, parece ter levado consigo tanto minha perna e agora
sei, quanto nossa cria sobre a qual eu nada quis saber.
Batidas violentas na
porta me fizeram pular no sofá, na teve a programação acusava que passara a
noite ali mesmo. Parecia que minha vida agora consistia em não perceber quando
dormia e ser acordado pela campainha ou por batidas na porta. Depois do
conhecido calvário para atingir a porta eu a abri. Na minha frente um policial
civil. Ele me olhou de cima a baixo como se estivesse olhando um troço.
Sinalizando com o nariz para frente e para trás indicou-me o coto que era a
única evidência que eu já possuíra uma perna ali. O curativo que logo não
precisaria mais ser feito posto que o coto estava quase completamente
cicatrizado, agora estava encharcado de sangue.
Parecendo menos
apressado que quando tinha batido em minha porta ele me perguntou se eu tinha
ouvido alguma coisa e onde passara a noite. Perguntei o motivo da questão
e o policial respondeu que minha vizinha do lado, Odete Moura (eu nunca soubera
que aquele era o nome da velha!) tinha sido encontrada pela diarista com uma
tesoura transpassada no pescoço. Eu disse que nada ouvira por ter passado a
noite completamente drogado por diversos analgésicos e antidepressivos (por
pudor omiti o whisky). Ele não pareceu chocado e também deve ter imaginado que
o homem incompleto que eu era agora não seria capaz de matar ninguém. Ele
agradeceu e disse que provavelmente tinha sido suicídio já que a diarista havia
lhe confidenciado que dona Odete era paciente terminal de um câncer qualquer e
não havia sinais de arrombamento; a infeliz fora enviada pelos médicos para
casa apenas para aguardar o inevitável. “Parece que ela não teve
paciência, não é?” disse o policial querendo-se engraçado.
Antes de se despedir
ele olhou por sobre meu ombro para dentro do apartamento. Voltou a me encarar e
tive a impressão de que além de me considerar um troço incompleto agora achava
que eu também era maluco. Em seguida, virou as costas e se foi. Apoiando-me na
porta com grande dificuldade consegui voltar o corpo para dentro do apartamento
e, então, entendi a expressão de incredulidade no último olhar do policial: as
muitas dezenas de pares de sapato que Carolina tinha e, que guardava num
armário embutido no closet de meu quarto, estavam alinhados em fila indiana
desde seu local de descanso até a sacada do apartamento! A visão me trouxe a
maldita dor do membro fantasma e me obrigou a consumir mais analgésicos,
antidepressivos e álcool. Ainda assim resolvi dar um jeito naquilo. Quando
acabei de colocar todos os pares de sapato em vários sacos de lixo e deixá-los
no corredor, meu joelho esquerdo estava inchado pelas centenas de saltos e a
axila direita estava bastante machucada pela pressão e atrito prolongados
causados pela muleta.
O telefone tocou.
Embora não quisesse, acabei atendendo. Era o doutor Marcelo se desculpando por
não poder vir naquela manhã, pois tinha surgido uma operação de emergência.
Talvez porquê eu estivesse com a capacidade de julgamento comprometida pelas
muitas drogas, acabei mencionando que estava tendo visões com Carolina; sobre a
velha vizinha cujo fim minha namorada morta apareceu sugerir de modo ameaçador;
sobre meus “apagões” e demais coisas estranhas que estavam acontecendo.
Complementei dizendo que já ouvira falar que, durante a carreira, um médico
acabava lidando muito com o “inexplicável”. Quis saber o que ele achava
daquilo. Marcelo me ouviu calmamente e perguntou:
_ Você está tomando
alguma bebida com os remédios que lhe passei?
Neguei obviamente.
Então, como hipóteses alternativas ele me disse que eu tinha passado por um
grave acidente e perdido a mulher que amava (eu nunca lhe confidenciara o que
realmente sentia por ela). Logo, os sonhos e a desconexão com a realidade eram
provavelmente resultado disso e, talvez, também dos remédios. Como se não
tivesse ouvido nada do que ele falou perguntei:
_ Marcelo, por favor,
me diga. A necropsia revelou se Carolina estava grávida?
A segurança com que o
doutor costumava explicar todos os eventos verificáveis pareceu sumir. Houve um
silêncio prolongado seguido de duas ou três tentativas de formular os
pensamentos em forma de frases. Por fim, não sei o motivo (afinal se ele
mentisse quem saberia?) acabou admitindo que sim; não me contara antes a pedido
de meu pai. Pai este que - conforme me dizia agora Marcelo – me
acompanhara no hospital durante todo o tempo que permaneci em coma, mas que por
orgulho preferiu continuar sem falar comigo (coisa que já estávamos fazendo há
mais de seis anos), e foi embora assim que dei sinais que recobraria a
consciência.
Mencionei que fora
Carolina quem me contara sobre o bebê em sonho e ele, com sua eloquência já
plenamente reestabelecida, disse que provavelmente eu já tivesse percebido
aquilo inconscientemente e o sonho nada mais foi que uma forma dessa parte de
minha mente revelar-se. Com essa tirada junguiana disse que precisa ir, mas
viria me ver tão logo terminasse a tal cirurgia, viria não importaria as horas.
Naquela terceira noite
nenhum remédio ou whisky foi capaz de aliviar minha dor de membro fantasma. Eu
tão pouco fui capaz de dormir. Por volta das nove da noite estava deitado em
minha cama quando ouvi um barulho muito sutil como o choro de uma criança.
Apanhei a muleta, mas ao invés de apoiar-me nela, carreguei-a na mão direita
como se fosse um porrete e fui pulando até a sala com meu joelho esquerdo
inchado. Embora eu não me lembrasse de ter deixado a porta de vidro que dava
acesso à sacada aberta, a mesma estava escancarada. Já no chão da sacada,
aquele minúsculo par de sapatos de bebê que eu vira antes, tinha sido
cuidadosamente depositado.
“Meu bebe” disse sem me
dar conta do despropósito daquilo que acontecia no momento ou do que eu dizia.
Deixe-me cair sentado
no chão e os apanhei. Agora eu tremia e chorava, mas não era pela dor, não sei
pelo que era. Foi quando um vapor frio atingiu minha nuca. Era como se o vapor
de água de alguém falando atrás de mim estivesse me alcançando.
_ Amor, venha, não nos
faça esperar – dizia a voz, a voz de minha namorada morta Carolina.
De algum modo eu soube
para onde deveria ir a fim de poder encontra-la: para além dos limites da
sacada; para um salto do décimo terceiro andar. Sem que eu movesse um músculo a
dor tornou-se muito, muito intensa assim como meu choro e minhas lamentações.
Pedi-lhe perdão por minha covardia. A covardia que a tinha matado e a nossa
criança. A fala de Carolina era doce e não tinha lugar para rancor, ela só
dizia que me aguardava e que eu precisava ir a seu encontro.
Nesse instante algo
começou a me empurrar em direção ao precipício à minha frente e comecei a
tentar segurar-me desesperadamente. Não havia ninguém atrás de mim só a pressão
que me empurrava. Ao mesmo tempo a voz de Carolina tinha aumentado tanto que eu
parecia sentir sangue sair por meus ouvidos machucados. “Dê o passo! Dê o
passo!”, ela ordenava. Minhas longas unhas por cortar quebravam deixando
rastros de sangue no chão e, com minha perna esquerda, eu fazia força contra a
murada que me separava da queda. Comecei a gritar por socorro.
Eu já havia lido que em
situações de perigo extremo as pessoas eram capazes de feitos incríveis como
arrancar portas de carros e levantar pesos descomunais. Acho que foi graças a
essa reserva de força oculta em alguma parte de mim que consegui me arrastar no
sentido oposto daquilo que me puxava e alcancei a porta do apartamento. Quanto
girei a maçaneta os gritos de Carolina bem como a misteriosa força de tração
desapareceram. Desesperado pulei para o machado de incêndio preso à parede e
quebrei o vidro que o separava de mim.
Passaram-se vários
minutos e fui me acalmando com o machado sobre o colo. Tomara a decisão de
esperar Marcelo ali. Não voltaria a entrar naquele maldito apartamento no qual
Carolina passara seus últimos dias comigo. Se fosse preciso, imploraria perdão
a meu pai e voltaria a morar com ele. Subitamente, percebi duas mãos me puxando
pela perna esquerda em grande velocidade para dentro do apartamento rumo à
sacada e, quase não consegui manter o machado comigo.
Não sei por quanto
tempo fiquei lutando antes de apagar. Então ouvi a voz conhecida:
_ Ricardo, oh meu Deus!
Acorde!
_ Doutor Marcelo? Acho
que a retalhei bem, mas não tive ângulo para cortar o osso. Fiz um torniquete
para estancar o sangue…Que bom que está aqui! Pode me ajudar a acabar de cortar
minha perna esquerda? Por favor? Eu ainda não estou pronto para o próximo passo…