terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Evolução



PP, sua cadela Pug de quinze anos o deixara há seis meses, mas Leandro ainda era incapaz de olhar-lhe a foto sem verter lágrimas. E, foi em meio a tais lágrimas que a atendente do restaurante o surpreendeu:

_ Pronto para pedir? A sugestão da casa é estrogonofe de frango!

Para Leandro a melhor resposta teria sido quebrar o nariz da mulher com um soco! Como poderia ter lhe oferecido restos de outro ser vivo? Por acaso ela não lia jornal e não sabia quem ele era? Mas a resposta do colunista do periódico de maior tiragem nacional e ferrenho defensor de direitos do animais foi bem mais comedida:

_ Ainda não, só uma água de garrafa, sim? Estou esperando alguém…

A senhora descabelada pareceu ter pressentido o perigo e continuou suas anotações enquanto se afastava. O colunista guardou a foto de PP no bolso do paletó e olhou mais uma vez ao redor; seu desprezo pela espelunca de um ponto afastado da zona leste da cidade crescia sem limites. Como tinha ido parar ali? Tinha enlouquecido? Alguém de seu nível? Os outros frequentadores do lugar também viam Leandro como um corpo estranho, mas diferente dele, estes o olhavam com curiosidade e admiração pelos hábitos e roupas refinados.

Estava ali para esperar um sujeito chamado Carlos Sampaio que fora indicado a ele por um amigo íntimo. Segundo este último, o tal Sampaio dizia ter uma matéria exclusivíssima na área de Leandro: direito dos animais. Como sua coluna andava “em baixa”, não restou ao jornalista aceitar o encontro, mas ele já tinha decidido que não daria mais de um minuto ao sujeito caso sua “matéria” fosse alguma imbecilidade. De qualquer forma, como fazia em qualquer situação, Leandro tinha chegado bem antes do combinado e era preciso ter paciência. Algum tempo depois, pontualmente na hora combinada, ele viu um sujeito entrando no recinto e vindo em sua direção; teve certeza que era quem esperava.

Carlos Sampaio era um homem maduro com cerca de cinquenta anos usando roupas caras, mas estava com uma aparência desagradável devido à barba por fazer e profundas olheiras.

 De modo nervoso agradeceu à oportunidade que lhe fora dada pelo colunista e deslizou um pequeno documento encadernado para Leandro. Era seu currículo. Na verdade, pensou Leandro, tudo naquele currículo era interessante, desde a foto de um Carlos Sampaio em dias melhores até as informações sobre suas experiências profissionais: ele era um geneticista especializado em melhoria de raças bovinas, mas também um acadêmico que publicara até ali mais de cem trabalhos internacionais em revistas extremamente conceituadas! Devido sua área de atuação, muitas vezes Leandro tinha de embrenhar-se nesses periódicos científicos para tentar rebater argumentos sobre a necessidade de utilizar animais em testes.

_  Então? – perguntou Carlos Sampaio

Leandro não chegou a ter certeza sobre o que ele estava questionando, mas supôs que fosse quanto à aprovação do currículo apresentado. O sorriso sem jeito do colunista foi suficiente para o, agora devidamente apresentado geneticista, iniciar sua história.

Segundo seu relato fora há dois anos a primeira vez que entrou em contato com os fatos da inacreditável história que iria contar. A palavra “inacreditável” fez com que a boa impressão que Leandro estava formando à respeito de Sampaio inclinasse um pouco para o lado do “maluco”, mas ficou quieto ouvindo.

Ele inicialmente trabalhara na conhecida empresa Embrapa até que, durante um congresso científico fora do país, um sujeito lhe fez uma oferta de trabalho que implicava em receber um salário com o qual jamais sonhara, com a possibilidade de viajar mundo afora e, o mais interessante, tendo um contrato inicial de 10 anos! Caso o novo empregador reincidisse o contrato, Carlos Sampaio receberia uma indenização milionária, obviamente o mesmo valia para o contratado...

Além disso, todo e qualquer gasto que fizesse pelo mundo a trabalho seria custeado por seus empregadores. Seguindo o famoso dito sobre a esmola demasiada, Carlos Sampaio duvidou que aquilo fosse sério e perguntou sobre quem teria de assassinar. Sem acusar o gracejo, o homem que estava ofertando trabalho em nome de uma organização desconhecida, um sujeito magro, alto e com um inglês impecável, apesar do “fundo francês”, respondeu-lhe que poucos pesquisadores do mundo vinham tendo resultados tão interessantes em melhoramento de espécies como Carlos Sampaio. Era verdade, e o geneticista o sabia. Isso junto ao mais profundo conhecimento do sujeito sobre as minúcias de sua pesquisa o deixaram abalado.

De volta ao Brasil, três semanas depois, recebeu um e-mail do mesmo homem perguntando-lhe se o adiantamento estava de acordo com as expectativas dele. Carlos Sampaio conferiu sua conta corrente e não pôde acreditar: havia sido depositado um ano do tal salário!

Não teve dúvidas e partiu para seu novo emprego! Nos primeiros seis meses ele não estranhou nada. Foram montados seminários para que apresentasse formalmente seus resultados de pesquisa aos superiores e colegas assim como participou de reuniões para que novos projetos de pesquisa fossem elaborados. Carlos Sampaio continuou dizendo que, na verdade, ficou muito bem surpreendido nesse período uma vez que esperava um ambiente hostil e competitivo por parte dos colegas.

Como sempre, tudo corre bem, até que passa a correr mal e isso aconteceu mais ou menos com oito meses no novo emprego. De uma hora para outra, Carlos Sampaio passou a trabalhar exclusivamente com um único pesquisador. Este, seu superior, por sinal, começou a exigir que ele empregasse seus conhecimentos para identificar formas de corromper geneticamente diferentes espécies de animais! De início Carlos Sampaio achou que fosse brincadeira, mas realmente queriam que ele identificasse genes capazes de desenvolver doenças ou diminuir a expectativa de vida animal. Apesar de ter feito uma tentativa de argumentar quanto aquilo ser uma loucura e que ele não iria fazê-lo, foi lembrado quanto ao não cumprimento dos termos de seu contrato assim como recebeu uma ameaça de que dinheiro era o mínimo que ele tinha a perder caso não cooperasse.

A seriedade das palavras intimidadoras ficou evidente quando Carlos Sampaio foi proibido de sair de onde estivesse sem supervisão ou de telefonar! Além disso, a partir daquele dia, ele passou a viajar com seu superior cujo nome verdadeiro nunca lhe fora revelado; este último dizia que deveria ser chamado de senhor “T”. Ao ser questionado “T do quê?” ele apenas riu.

Se até então as viagens tinham sido para diferentes filiais da organização, na nova etapa, o senhor T o levava ao redor do mundo a lugares tão inesperados como  fazendas, zoológicos, granjas, enfim, qualquer instalação que possuísse um número razoável de animais.

Interrompendo seu relato, Carlos Sampaio voltou os olhos similares aos de um portador de hipertiroidismo grave para Leandro e disse:

“Foi então que as coisas se tornaram realmente bizarras!”

Continuando a história, relatou que, sem exceção, em todos esses lugares assistiu, sobre as ordens do senhor T, a morte de dezenas, centenas e até milhares de animais conforme a espécie e/ou local. A maior mortandade foi a de bovinos mortos com artilharia pesada numa fazenda da Inglaterra por militares do exército, supostamente, por serem portadoras da doença da vaca louca. Em outra ocasião dezenas de chimpanzés de um laboratório foram mortos com monóxido de carbono. Teve...

“Espere” – interrompeu Leandro – “você disse que as vacas foram mortas por supostamente estarem com a doença da vaca louca?” “Vi isso nos jornais e, infelizmente, foi necessário sacrificá-las.”

“Acontece que elas não estavam doentes.”

Diante de um Leandro confuso, Carlos Sampaio contou ter descoberto que a organização era na realidade uma grupo internacional cujo propósito exclusivo era assassinar animais das mais diversas espécies, domésticos ou selvagens, ao redor do globo!

O colunista viu naquilo a grande reportagem pela qual esperara toda a vida: revelar em primeira mão a existência de pessoas dedicadas simplesmente ao prazer torpe e cruel de assassinar animais. Então foi logo perguntando se ele tinha como provar o que dizia.

“Sim, tenho. Mas o massacre de animais não é o mais importante, não é o que você está pensando...”

O que Carlos Sampaio começou a contar fez com que o jornalista mudasse da alegria da plena realização profissional para um ódio irracional por estar sendo enganado por seu interlocutor. Quando Leandro levantou-se ele foi seguro pelo braço por um homem determinado que lhe pediu que continuasse ouvindo.

“Sei que parece absurdo, loucura, mas o motivo de meus empregadores matarem animais é o que realmente conta: impedir que animais inteligentes comecem a se disseminar pelo planeta.”

A evolução proposta por Darwin – continuou – não teria acontecido em termos máximos, até o momento, apenas conosco. Ela estaria em pleno progresso pelo reino animal há milhares de anos, mas os seres humanos vinham sistematicamente eliminado os espécimes que passavam a mostrar um “desenvolvimento anormalmente acima da média”. Não era por outro motivo que rebanhos inteiros de gado foram mortos como desculpa de estarem com doenças tais como a da vaca louca. O mesmo explicava a hecatombe de golfinhos por pescadores japoneses ou os rituais tibetanos onde milhares de animais são sacrificados.

Segundo Carlos Sampaio, no geral, a evolução não acontece de forma homogênea, mas em “saltos”, seja entre as espécies ou dentro de uma espécie particular. Assim, embora em algumas épocas, espécies inteiras tiveram de ser eliminadas, o mais comum era monitor animais dentro de uma dada espécie em buscas de indivíduos que “davam o salto” e eliminá-los.

Quando ele próprio duvidou e exigiu uma prova por parte do senhor T, este lhe apresentou cachorros, vacas ou corvos capazes de fazerem complicadas operações de raciocínio; golfinhos que eram capazes de se comunicar com linguagem própria e avançada bem como inúmeras outras demonstrações inquestionáveis de diversos animais atingiam um nível de inteligência semelhante ao nosso. No caso dos macacos a coisa era ainda pior já que a anatomia favorecia a criação e o uso de ferramentas complexas assim como uma fonação básica! Por isso, todas essas criaturas eram mortas segundo o senhor T.

Aliás, em outra ocasião, enquanto uma porção de cães era afogada entre risadas ele revelou que T vinha de “Thanatos” e se Carlos Sampaio não achava aquele apelido bacana! Thanatos revelou ainda que a “organização” para qual trabalhavam estava em busca de formas mais eficazes e menos perceptíveis de eliminar animais quando necessário; o custo de se inventar um surto de gripe aviária ou suína era astronômico, segundo ele. Daí precisarem dos conhecimentos de Carlos Sampaio.

“Você espera que eu acredite nisso? Que existe um organização toda poderosa e transnacional que se dedica a exterminar animais evoluídos, pois esses são uma ameaça a nossa supremacia na Terra!”  interrompeu Leandro.

“Não, quero que veja as filmagens e documentos que estão nesse envelope. Há cerca de dois meses, uma brecha na segurança do senhor Thanatos me permitiu escapar com essas provas. Sei que estão me seguindo e que provavelmente darão um jeito em mim. Mas você é uma pessoa pública, reconhecida em todo o país, e tem um grande jornal em suas mãos. Será que o perigo não vale à pena? Pense no que isso faria por sua carreira...”

Sem se despedir, Carlos Sampaio se levantou e saiu da espelunca. Leandro estava tão excitado com tudo aquilo que apanhou a primeira nota que viu em sua carteira, uma de cem reais, jogou-a na mesa e foi para sua casa para examinar tudo o que lhe fora entregue.

Meia hora depois de o jornalista ter chegado em sua casa, um celular toca dentro de um carro parado no quarteirão seguinte.

“Sim, ele já está vendo os filmes e documentos que o Carlos Sampaio passou para ele. Não se preocupe, o paspalho do Sampaio não notou que trocamos o material dele por um mais “cruento”, não que tal fato importe agora que nossa equipe de apoio já deve ter dado um jeito nele. Entendido. Seguiremos conforme o combinado: já enviamos o animal devidamente instruído e a arma para dentro da casa do Leandro; se o colunista reagir conforme desejamos, ele será cooptado como um de nossos homens na mídia, mas se ele preferir ir contra os interesses da humanidade, mandamos ele para junto do Sampaio. Até...”

Na sala de sua casa, Leandro estava ensopado de suor e limpava a boca com a manga da camisa após vomitar pela terceira vez vendo os vídeos entregues a ele. As filmagens apresentavam animais realizando proezas só possíveis a seres com inteligência acima daquela normalmente apresentada por animais, infelizmente, todo o prodígio apresentado invariavelmente terminava com animais e humanos numa sangrenta contenta de vida ou morte. Como que confirmando o mito prometeico, uma vez eliminada a vantagem da inventividade humana simbolizada pelo fogo, via de regra as imagens mostravam humanos sendo massacrados.

Nesse instante, Leandro ouviu um barulho vindo de seu escritório. Lá chegando deparou com um pequeno macaco em cima de sua mesa imerso em folhas e pincéis enquanto que num móvel ao lado repousava uma pistola nunca vista antes. Ao vê-lo, o animal começou a berrar de satisfação e passou a escrever freneticamente para em seguida mostrar-lhe uma mensagem escrita em letra infantil:

Leandro! Me mostraram sua foto e disseram que você cuidaria de mim!

Com tudo girando à sua volta o jornalista intercalava incessantemente o olhar entre o animal que ansiava por uma resposta e a arma a seu lado.

FIM