quarta-feira, 9 de setembro de 2015
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
Evolução
PP, sua cadela Pug de quinze anos o deixara há
seis meses, mas Leandro ainda era incapaz de olhar-lhe a foto sem verter
lágrimas. E, foi em meio a tais lágrimas que a atendente do restaurante o surpreendeu:
_ Pronto para pedir? A sugestão da casa é estrogonofe
de frango!
Para Leandro a melhor resposta teria sido quebrar
o nariz da mulher com um soco! Como poderia ter lhe oferecido restos de outro
ser vivo? Por acaso ela não lia jornal e não sabia quem ele era? Mas a resposta
do colunista do periódico de maior tiragem nacional e ferrenho defensor de
direitos do animais foi bem mais comedida:
_ Ainda não, só uma água de garrafa, sim? Estou
esperando alguém…
A senhora descabelada pareceu ter pressentido o
perigo e continuou suas anotações enquanto se afastava. O colunista guardou a
foto de PP no bolso do paletó e olhou mais uma vez ao redor; seu desprezo pela
espelunca de um ponto afastado da zona leste da cidade crescia sem limites. Como
tinha ido parar ali? Tinha enlouquecido? Alguém de seu nível? Os outros
frequentadores do lugar também viam Leandro como um corpo estranho, mas
diferente dele, estes o olhavam com curiosidade e admiração pelos hábitos e
roupas refinados.
Estava ali para esperar um sujeito chamado Carlos
Sampaio que fora indicado a ele por um amigo íntimo. Segundo este último, o tal
Sampaio dizia ter uma matéria exclusivíssima na área de Leandro: direito dos
animais. Como sua coluna andava “em baixa”, não restou ao jornalista aceitar o
encontro, mas ele já tinha decidido que não daria mais de um minuto ao sujeito
caso sua “matéria” fosse alguma imbecilidade. De qualquer forma, como fazia em
qualquer situação, Leandro tinha chegado bem antes do combinado e era preciso
ter paciência. Algum tempo depois, pontualmente na hora combinada, ele viu um
sujeito entrando no recinto e vindo em sua direção; teve certeza que era quem
esperava.
Carlos Sampaio era um homem maduro com cerca de
cinquenta anos usando roupas caras, mas estava com uma aparência desagradável
devido à barba por fazer e profundas olheiras.
De modo
nervoso agradeceu à oportunidade que lhe fora dada pelo colunista e deslizou um
pequeno documento encadernado para Leandro. Era seu currículo. Na verdade,
pensou Leandro, tudo naquele currículo era interessante, desde a foto de um
Carlos Sampaio em dias melhores até as informações sobre suas experiências
profissionais: ele era um geneticista especializado em melhoria de raças
bovinas, mas também um acadêmico que publicara até ali mais de cem trabalhos
internacionais em revistas extremamente conceituadas! Devido sua área de
atuação, muitas vezes Leandro tinha de embrenhar-se nesses periódicos
científicos para tentar rebater argumentos sobre a necessidade de utilizar
animais em testes.
_ Então? –
perguntou Carlos Sampaio
Leandro não chegou a ter certeza sobre o que ele
estava questionando, mas supôs que fosse quanto à aprovação do currículo
apresentado. O sorriso sem jeito do colunista foi suficiente para o, agora
devidamente apresentado geneticista, iniciar sua história.
Segundo seu relato fora há dois anos a primeira
vez que entrou em contato com os fatos da inacreditável história que iria contar.
A palavra “inacreditável” fez com que a boa impressão que Leandro estava
formando à respeito de Sampaio inclinasse um pouco para o lado do “maluco”, mas
ficou quieto ouvindo.
Ele inicialmente trabalhara na conhecida empresa
Embrapa até que, durante um congresso científico fora do país, um sujeito lhe
fez uma oferta de trabalho que implicava em receber um salário com o qual
jamais sonhara, com a possibilidade de viajar mundo afora e, o mais interessante,
tendo um contrato inicial de 10 anos! Caso o novo empregador reincidisse o
contrato, Carlos Sampaio receberia uma indenização milionária, obviamente o
mesmo valia para o contratado...
Além disso, todo e qualquer gasto que fizesse pelo
mundo a trabalho seria custeado por seus empregadores. Seguindo o famoso dito
sobre a esmola demasiada, Carlos Sampaio duvidou que aquilo fosse sério e perguntou
sobre quem teria de assassinar. Sem acusar o gracejo, o homem que estava
ofertando trabalho em nome de uma organização desconhecida, um sujeito magro,
alto e com um inglês impecável, apesar do “fundo francês”, respondeu-lhe que
poucos pesquisadores do mundo vinham tendo resultados tão interessantes em
melhoramento de espécies como Carlos Sampaio. Era verdade, e o geneticista o
sabia. Isso junto ao mais profundo conhecimento do sujeito sobre as minúcias de
sua pesquisa o deixaram abalado.
De volta ao Brasil, três semanas depois, recebeu
um e-mail do mesmo homem perguntando-lhe se o adiantamento estava de acordo com
as expectativas dele. Carlos Sampaio conferiu sua conta corrente e não pôde
acreditar: havia sido depositado um ano do tal salário!
Não teve dúvidas e partiu para seu novo emprego!
Nos primeiros seis meses ele não estranhou nada. Foram montados seminários para
que apresentasse formalmente seus resultados de pesquisa aos superiores e
colegas assim como participou de reuniões para que novos projetos de pesquisa fossem
elaborados. Carlos Sampaio continuou dizendo que, na verdade, ficou muito bem
surpreendido nesse período uma vez que esperava um ambiente hostil e
competitivo por parte dos colegas.
Como sempre, tudo corre bem, até que passa a
correr mal e isso aconteceu mais ou menos com oito meses no novo emprego. De
uma hora para outra, Carlos Sampaio passou a trabalhar exclusivamente com um
único pesquisador. Este, seu superior, por sinal, começou a exigir que ele
empregasse seus conhecimentos para identificar formas de corromper
geneticamente diferentes espécies de animais! De início Carlos Sampaio achou
que fosse brincadeira, mas realmente queriam que ele identificasse genes
capazes de desenvolver doenças ou diminuir a expectativa de vida animal. Apesar
de ter feito uma tentativa de argumentar quanto aquilo ser uma loucura e que ele
não iria fazê-lo, foi lembrado quanto ao não cumprimento dos termos de seu
contrato assim como recebeu uma ameaça de que dinheiro era o mínimo que ele
tinha a perder caso não cooperasse.
A seriedade das palavras intimidadoras ficou
evidente quando Carlos Sampaio foi proibido de sair de onde estivesse sem
supervisão ou de telefonar! Além disso, a partir daquele dia, ele passou a
viajar com seu superior cujo nome verdadeiro nunca lhe fora revelado; este
último dizia que deveria ser chamado de senhor “T”. Ao ser questionado “T do
quê?” ele apenas riu.
Se até então as viagens tinham sido para
diferentes filiais da organização, na nova etapa, o senhor T o levava ao redor
do mundo a lugares tão inesperados como fazendas, zoológicos, granjas, enfim, qualquer
instalação que possuísse um número razoável de animais.
Interrompendo seu relato, Carlos Sampaio voltou
os olhos similares aos de um portador de hipertiroidismo grave para Leandro e
disse:
“Foi então que as coisas se tornaram realmente
bizarras!”
Continuando a história, relatou que, sem exceção,
em todos esses lugares assistiu, sobre as ordens do senhor T, a morte de
dezenas, centenas e até milhares de animais conforme a espécie e/ou local. A
maior mortandade foi a de bovinos mortos com artilharia pesada numa fazenda da
Inglaterra por militares do exército, supostamente, por serem portadoras da
doença da vaca louca. Em outra ocasião dezenas de chimpanzés de um laboratório
foram mortos com monóxido de carbono. Teve...
“Espere” – interrompeu Leandro – “você disse que
as vacas foram mortas por supostamente estarem com a doença da vaca louca?” “Vi
isso nos jornais e, infelizmente, foi necessário sacrificá-las.”
“Acontece que elas não estavam doentes.”
Diante de um Leandro confuso, Carlos Sampaio
contou ter descoberto que a organização era na realidade uma grupo
internacional cujo propósito exclusivo era assassinar animais das mais diversas
espécies, domésticos ou selvagens, ao redor do globo!
O colunista viu naquilo a grande reportagem pela
qual esperara toda a vida: revelar em primeira mão a existência de pessoas
dedicadas simplesmente ao prazer torpe e cruel de assassinar animais. Então foi
logo perguntando se ele tinha como provar o que dizia.
“Sim, tenho. Mas o massacre de animais não é o
mais importante, não é o que você está pensando...”
O que Carlos Sampaio começou a contar fez com que
o jornalista mudasse da alegria da plena realização profissional para um ódio
irracional por estar sendo enganado por seu interlocutor. Quando Leandro
levantou-se ele foi seguro pelo braço por um homem determinado que lhe pediu
que continuasse ouvindo.
“Sei que parece absurdo, loucura, mas o motivo de
meus empregadores matarem animais é o que realmente conta: impedir que animais
inteligentes comecem a se disseminar pelo planeta.”
A evolução proposta por Darwin – continuou – não
teria acontecido em termos máximos, até o momento, apenas conosco. Ela estaria
em pleno progresso pelo reino animal há milhares de anos, mas os seres humanos
vinham sistematicamente eliminado os espécimes que passavam a mostrar um
“desenvolvimento anormalmente acima da média”. Não era por outro motivo que
rebanhos inteiros de gado foram mortos como desculpa de estarem com doenças tais
como a da vaca louca. O mesmo explicava a hecatombe de golfinhos por pescadores
japoneses ou os rituais tibetanos onde milhares de animais são sacrificados.
Segundo Carlos Sampaio, no geral, a evolução não
acontece de forma homogênea, mas em “saltos”, seja entre as espécies ou dentro
de uma espécie particular. Assim, embora em algumas épocas, espécies inteiras
tiveram de ser eliminadas, o mais comum era monitor animais dentro de uma dada espécie
em buscas de indivíduos que “davam o salto” e eliminá-los.
Quando ele próprio duvidou e exigiu uma prova por
parte do senhor T, este lhe apresentou cachorros, vacas ou corvos capazes de
fazerem complicadas operações de raciocínio; golfinhos que eram capazes de se
comunicar com linguagem própria e avançada bem como inúmeras outras
demonstrações inquestionáveis de diversos animais atingiam um nível de
inteligência semelhante ao nosso. No caso dos macacos a coisa era ainda pior já
que a anatomia favorecia a criação e o uso de ferramentas complexas assim como
uma fonação básica! Por isso, todas essas criaturas eram mortas segundo o
senhor T.
Aliás, em outra ocasião, enquanto uma porção de
cães era afogada entre risadas ele revelou que T vinha de “Thanatos” e se Carlos
Sampaio não achava aquele apelido bacana! Thanatos revelou ainda que a “organização”
para qual trabalhavam estava em busca de formas mais eficazes e menos
perceptíveis de eliminar animais quando necessário; o custo de se inventar um
surto de gripe aviária ou suína era astronômico, segundo ele. Daí precisarem
dos conhecimentos de Carlos Sampaio.
“Você espera que eu acredite nisso? Que existe um
organização toda poderosa e transnacional que se dedica a exterminar animais
evoluídos, pois esses são uma ameaça a nossa supremacia na Terra!” interrompeu Leandro.
“Não, quero que veja as filmagens e documentos
que estão nesse envelope. Há cerca de dois meses, uma brecha na segurança do
senhor Thanatos me permitiu escapar com essas provas. Sei que estão me seguindo
e que provavelmente darão um jeito em mim. Mas você é uma pessoa pública,
reconhecida em todo o país, e tem um grande jornal em suas mãos. Será que o
perigo não vale à pena? Pense no que isso faria por sua carreira...”
Sem se despedir, Carlos Sampaio se levantou e
saiu da espelunca. Leandro estava tão excitado com tudo aquilo que apanhou a
primeira nota que viu em sua carteira, uma de cem reais, jogou-a na mesa e foi
para sua casa para examinar tudo o que lhe fora entregue.
Meia hora depois de o jornalista ter chegado em
sua casa, um celular toca dentro de um carro parado no quarteirão seguinte.
“Sim, ele já está vendo os filmes e documentos
que o Carlos Sampaio passou para ele. Não se preocupe, o paspalho do Sampaio
não notou que trocamos o material dele por um mais “cruento”, não que tal fato
importe agora que nossa equipe de apoio já deve ter dado um jeito nele.
Entendido. Seguiremos conforme o combinado: já enviamos o animal devidamente
instruído e a arma para dentro da casa do Leandro; se o colunista reagir
conforme desejamos, ele será cooptado como um de nossos homens na mídia, mas se
ele preferir ir contra os interesses da humanidade, mandamos ele para junto do
Sampaio. Até...”
Na sala de sua casa, Leandro estava ensopado de
suor e limpava a boca com a manga da camisa após vomitar pela terceira vez
vendo os vídeos entregues a ele. As filmagens apresentavam animais realizando
proezas só possíveis a seres com inteligência acima daquela normalmente apresentada
por animais, infelizmente, todo o prodígio apresentado invariavelmente
terminava com animais e humanos numa sangrenta contenta de vida ou morte. Como
que confirmando o mito prometeico, uma vez eliminada a vantagem da
inventividade humana simbolizada pelo fogo, via de regra as imagens mostravam
humanos sendo massacrados.
Nesse instante, Leandro ouviu um barulho vindo de
seu escritório. Lá chegando deparou com um pequeno macaco em cima de sua mesa
imerso em folhas e pincéis enquanto que num móvel ao lado repousava uma pistola
nunca vista antes. Ao vê-lo, o animal começou a berrar de satisfação e passou a
escrever freneticamente para em seguida mostrar-lhe uma mensagem escrita em
letra infantil:
Leandro! Me mostraram sua foto e disseram que
você cuidaria de mim!
Com tudo girando à sua volta o jornalista
intercalava incessantemente o olhar entre o animal que ansiava por uma resposta
e a arma a seu lado.
FIM
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