
Ainda que ninguém confesse, a maioria das pessoas recebe a morte alheia
com alívio. É comum que entre os que se encontram na presença do defunto alguém
lamente: “pobre coitado(a)! Mas em seu íntimo o suposto piedoso quase sempre
comemora: “graças a Deus que não foi comigo!” É um alívio tolo, pois a qualquer
vivente me farei conhecer e, cedo ou tarde, cada um será tocado. Não poderia
ser diferente já que uma das leis fundamentais da criação é que nada deve estar
livre de mim!
Engana-se, contudo, quem pensa que meu trabalho é simples; na verdade,
nem mesmo a mim é dado conhecer o momento exato do fim de um homem; não até que
tal momento chegue! Não há destino, nada está escrito! Sou auxiliada apenas por
um insight de que a hora se aproxima.
E, quando uma sensação irresistível me domina, é o instante final.
Na hipótese improvável de o toque não ocorrer no momento exato, a vítima
estaria livre de minha influência uma vez que cada vida tem apenas uma
oportunidade de ser tocada. Embora a probabilidade seja ínfima, a ocasião na
qual um homem tem mais chance de escapar de mim é aquela em que o evento
causador da fatalidade dá-se pela primeira vez. Quando não sei como determinada
situação destruirá o organismo de um ser tornando sua vida insustentável, devo
confiar cegamento no já mencionado insight
para cumprir minha tarefa.
Por tudo isso, devo confessar um segredo: toda vez que um ser
experimenta o que se poderia chamar de “um novo tipo de morte” temo que a
pessoa escape de mim por não conseguir tocá-la no instante específico. Então, a
fim de evitar que aberrações incapazes de morrer venham a existir, tenho o
hábito de criar regras: nessas ocasiões inéditas tomo nota de todas as características
do evento e, assim que um segundo humano tiver de passar pela mesma
experiência, passo a contar com, além de meu insight, informações preciosas.
Graças a essa coleta de informações tenho me tornado mais e mais
experiente ao longo da História humana. No início da Pré-história, basicamente,
morria-se por lesões induzidas por armas de pedra, ataque de animais ou das
infecções decorrentes de tudo isso; não havia novidades. Mas a curiosidade
humana levou a novas maneiras de matar e morrer. Comecei a ter trabalho
aprendendo como instrumentos de bronze ou ferro exterminam uma vida.
Como se pode ver, nunca tive motivos para gostar da curiosidade humana,
contudo, minha tranquilidade passou a ser particularmente ameaçada depois que a
Ciência tornou-se o modelo para explicar o mundo. Eis que fui obrigada a
entender sobre a letalidade de milhares de coisas novas como armas de fogo e
dos acidentes aéreos. Muito embora os humanos possam justificar sua busca por
conhecimentos como uma tentativa de melhorar sua qualidade de vida, tudo não passa
de um desejo inconsciente de escapar aos designíos da criação. Nada mais que
aprender para brincarem de gato e rato comigo…
Mas por que lhe conto tudo isso? Deve ser ansiedade, afinal, me parece
que hoje é um dos dias tensos: meu insight
me trouxe a um lugar que não conheço. Pelo que ouvi, os humanos o chamam de
emissora de TV. Alguém irá morrer hoje aqui; sinto que é um jovem e ele está
próximo. Ah, ei-lo de frente àquele estranho instrumento o qual me lembra as primeiras
máquinas fotográficas. Alguém grita para ele “em 30 segundos você entra, assim
que acabar o trecho que já gravamos”. Não sei o que isso significa e não me
interessa, preciso apenas estar atento, pois algo inédito oriundo deste local
deve comprometer de modo irreversível o corpo de meu alvo.
Sem aviso, o escolhido surgiu dentro do instrumento estranho para o qual
estava de frente. Espere, o insight
está se intensificando; será em segundos! O mesmo humano que havia gritado
volta a dizer “vamos entrar, veja seu microfone”. Eis que a sensação torna-se
insuportável! Será agora. Meu alvo toca o objeto chamado microfone e recebe uma
descarga elétrica letal que lhe paralisa o coração e queima outros tecidos
internos.
A eletricidade não me é estranha; já levei centenas de pessoas por causa
dela. Sei exatamente como tocar alguém atingido por essa forma de energia! Não
seria um evento inédito? Espere, enquanto um corpo jaz danificado logo ali, o
homem continua falando dentro do aparelho!!! Talvez o instrumento parecido com
uma máquina fotográfica tenha permitido à eletricidade dividir o homem em dois!
Esse deve ser o evento desconhecido! Mas qual dos dois homens deve tocar?
Na infinitesimal existência de minha dúvida acontece o impensado: o
momento do toque passa! Pouco depois, a metade do homem que falava na máquina
sumiu ao mesmo tempo que a atingida pelo choque mortal levantou-se para o
espanto dos presentes.
Foi a primeira vez que alguém a ser tocado deveria estar de frente para
aquela estranha máquina e acabei cometendo um erro. Agora que percebi como ela
funciona, guardando fotografias animadas das pessoas, é tarde demais. Não
importa! Os humanos terão sua paga por me induzirem ao erro. Aquele que acaba
de escapar de mim, experimentará nos braços da eternidade a dor de não poder
mais ter relações duradouras. Já os que ousarem deixar imagens gravadas depois
de serem tocados por mim, sofrerão enquanto os vivos puderem vê-los como se
ainda estivem caminhando nesse mundo. Para estes, a eterna jornada espiritual
só continuará quando todas as gravações tiverem sido destruídas, até lá eu os
deixarei no meio do caminho entre essa etapa e a próxima.