domingo, 5 de maio de 2013

Conhece-te a ti mesmo






Justo agora? Faltando menos de um ano para aposentar-se! Durante toda sua carreira fora exemplar resolvendo os crimes dos quais o encarregavam e, como recompensa, tinha sido transferido para o trabalho burocrático, o que quase certamente era uma garantia de que não só sua esposa desfrutaria do dinheiro da aposentadoria; aquela era uma cidade violenta. Entretanto, embora não gostasse do pensamento, ele sabia que a recompensa não era tanto pelos bons números contra o crime quanto pela habilidade de livrar colegas de enrascadas.

Mas e dái?  Ele pouco se importava com os danos que isso tinha trazido à sua reputação em alguns setores do departamento. O que lhe interessava era que a família e população o vissem como um herói condecorado e bom policial. A impotância dessa “imagem” ganhava alturas exponenciais considerando-se que ele sempre fora alguém incapaz de manter-se focado em qualquer objetivo. Um sujeito cuja carreira bem sucedida era muito mais o resultado de sorte (destino talvez?) que de competência. Logo, sua trajetória como policial era a única coisa sólida que um sujeito espiritualmente insatisfeito podia exibir para ocultar a síndrome congênita de fracasso que parecia portar (às vezes estava certo de ter nascido com “partes” faltando).

Infelizmente, no final de sua carreira esse legado estava arriscado. Qual a razão para terem o colocado no, até então insolúvel, caso dos implantes? Nem aqueles receberam seus favores no passado e agora estavam em posições de poder souberam lhe explicar. “Ordens de cima”, um ou outro limitou-se a dizer.  Fosse qual fosse o motivo, sentia náuseas e uma dor no peito ao pensar que muito provavelmente num futuro não muito distante a família e a sociedade teriam esquecido suas vitórias e todos o lembrariam como mais um fracassado engolido pelo caso Rimane.

Nos últimos seis meses, desde que fora posto naquela arapuca, nem ia à sua mesa no distrito. Rumava direto para a sala de arquivos da Rimane aonde havia sido instalado. Deram-lhe uma moça bonita como auxiliar e muita comida e bebida de ótima qualidade; para ele poderiam ter dispensado a franguinha. Seria uma forma de consolá-lo quanto ao fracasso eminente? Afinal, o quê havia para descobrir? Revisara milhares de documentos e, juntos, os casos resumiam-se a um oceano de “coisa-nenhuma”, preenchido aqui e ali por ilhotas de fatos surreais!

 Em primeiro lugar era preciso dizer que todas as vítimas tinhma recebido o implante de eternização da Rimane. Funcionava assim. "Milhardários" e outros detentores de muito dinheiro tinham sua personalidade  preservadas num chip assim que morriam e, cento e quarenta e quatro anos depois, os dados eram colocados num novo corpo (cuja origem aliás ninguém sabia!).
Os técnicos da empresa diziam que os quase cento e cinquenta anos eram necessários para a que a pessoa começasse de novo, evitando que qualquer aspecto de sua antiga existência (como familiares diretos) viessem a pertubar a nova vida. “Quem não gostaria de morrer e voltar para a família?” ele se perguntava. Na verdade com todos aqueles anos a fortuna do “preservado em chip” ficava bloqueada na Justiça e ninguém de sua família tinha acesso. Ou seja, a resposta para sua questão era:uma gente egoísta que estava mais preocupada em ter uma boa vida quanto a tivesse de volta do que manter laços familiares. Por isso mesmo, ele pouco se importava com que vinha acontecendo com eles e que era o motivo pelo qual estava ali.

Além disso, a técnica tinha começado a ser usada no século XXII, isto é, há mais de 200 anos e, portanto, vinha sendo implantada há cerca de meio século. O problema era que dos primeiros preservados até hoje, vários tinham sofrido atentados e morrido. Os assassinos que em geral acabavam mortos pela segurança da vítima ou agentes da lei. Mas alguns criminosos não morreram e os interrogatórios desses eram especialmente interessantes!  Todos se diziam os indivíduos mais felizes do Universo e, que ainda que fosse condenados a perpétua, a "completude" que sentiam após assassinatos fazia tudo valer à pena. Outro fato curioso, isso tanto para os assassinos que eram mortos quanto para os que eram presos, todos, sem exceção, tiveram uma tira de papel encontrada consigo e na qual havia a  seguinte frase:

 “Estejam onde estiverem, falem a língua que falarem, tenham a cor que tiverem, duas almas gêmeas seguem para um ponto de encontro."

Fora isso, nenhum dos criminosos se conhecia entre si ou à suas vítimas. Mesmos aqueles que se declaravam ter encontrado a "iluminação" ao assassinar seu alvo diziam que até dias antes nunca tinha encontrado ou sabido da existência da pessoal; apenas tinha sentido um desejo incontrolável de dirigirem-se a um local e lá, eram incapazes de não atacar suas vítimas. Isso dito, o policial estava sem pistas e como diz o jargão "num beco sem saída". Isso fazia sem medo de fracassar converter-se em desespero. Quando o barril de suas neuroses estava para transbordar aconteceu...

Era quarta-feira, no fim do expediente que ele lhe auto impusera. Cruzou com um bando de seguranças na catraca de acesso às dependências da Rimane. O cortejo carrancudo protegia um sujeito muito mal vestido posicionado no centro do grupo. Parou. Embora em trinta anos de atividade policial ele tenha visto milhares de feições, era incapaz de esquecer um rosto, especialmente aqueles de criaturas do esgoto. Só não se lembrava o nome nem o motivo pelo qual o mal vestido tinha infringido o limite da Lei. Mas se o cidadão estava naquele lugar ele precisa saber o motivo; além das intuição feminina existe aquela intuição "anti-marginal" lhe velhos policiais são tem de  conviver a contragosto.

Pela primeira vez o trabalho na Rimane pareceu interessante! Nos dias que se seguiram, primeiro tentou descobrir o nome do sujeito por conta própria, mas não conseguiu. Talvez ele tivesse envelhecido, mudado de nome ou qualquer outra coisa. Resolveu mentir. 

Pediu a sua curvilínea auxiliar a fita de circuito interno de quando havia visto o rosto do meliante; sabia o horário exato, mas para não ser óbvio demais,  preferiu pedir as imagens do dia todo. Quando tudo começou meses atrás, seu superior do departamento de polícia e um executivo da Rimane, numa reunião, tinham lhe garantido que a moçoila obteria qualquer informação para resolver o caso. Contudo, o seu pedido das imagens a desconcertou e, com uma desculpa, ela disse que precisava sair. 

Voltou algum tempo depois tentando argumentar sobre o interesse do policial nas imagens e ele deu sua cartada: as imagens iriam ajudar a solucionar o caso dos implantes. Com hesitação a suposta auxiliar disse que no dia seguinte as imagens estariam à sua disposição e que ambos poderiam vê-las. 

Na hora do almoço do dia seguinte apontou o sujeito para a moça:

_ Quem é aquele cercado de seguranças?

De pronto a moça disse que não fazia ideia e ele sabia ser uma mentira. Ele sorriu com o canto do lábio, encarou-a  por alguns segundos e começou a falar. Disse que caso seus chefões quisessem brincar de paciente que paga fortunas ao médico e mente durante a consulta para esconder comportamentos reprováveis, tudo bem. Quem teria um “diagnóstico” e consequentemente um remédio errado, seriam eles. Reforçou dizendo que se até ele já tinha ouvido boatos sobre clientes da Rimane cancelando contratos  pela falta de garantia de que não teria seu chip destruído a coisa estava séria,  mas isso não era problema dele. Por fim, lembrou-a de que a escolha dele tinha sido provavelmente feita com base em seu histórico: sabiam que ele tinha muito a perder caso revelasse algo não autorizado; seu passado era condenável. Deixou a sala dizendo a ela que pensasse e pelo tempo de um cigarro; depois disso se ele continuasse no escuro abandonaria o caso com tudo que já tinha descoberto (claro que não confessou à garota que isso era igual a nada, blefou).

Um cigarro depois, a moça lhe entregou uma pasta tentando dizer que se ele revelasse, mas ele fez sinal para que ela não perdesse seu tempo: ele sabia que seria um homem a menos no mundo se aquilo, o que quer que fosse, vazasse. Apesar da curiosidade quase incontrolável, os anos de treinamento como investigador fizeram com que seus olhos e dedos manipulassem, uma a uma, cada uma das folhas. Mas nem era preciso procurar: o imponderável estava bem à vista! Corpos de presidiários serviam de hospedeiros aos bioimplantes da Rimane. De acordo com o relatório técnico em suas mãos a empresa tinha uma técnica para “matar” a personalidade do hospedeiro a fim de que a do preservado pudesse assumir sem problemas.

_ Mas como vocês convencem alguém a doar seu corpo para isso? – perguntou atônito.

_ Oferecendo dinheio para condenados a perpétuas – respondeu num tom tranquilo sua auxiliar. Como não sairiam vivos da prisão poderiam deixar a quantia para um ente querido ou gastar com qualquer idiotice, como prostitutas, drogas e outras coisas dentro da própria prisão.

“Dinheiro, claro” - pensou o investigador.

Voltou a concentrar-se nos documentos e dessa vez achou algo não surpreendente, uma informação que sabia estar ali: a identidade do homem com a qual cruzara há algumas semanas. Seu nome era Paolo Scorsa. Não o havia reconhecido de imediato, pois não tinha sido o responsável direto por sua prisão há cerca de 15 anos; o conhecera pela TV. A história do moço era como a de tantos outros carcamanos: para ascender na hierarquia de sua família, o na época jovem não se furtava em executar os serviços mais sujos guardando os olhos de suas vítimas antes de incinerar-lhes os restos mortais. Tinha algumas centenas de pares de globos oculares quando foi preso.

“Preciso falar com Paolo Scorsa”

Dessa vez ficou evidente que sua auxiliar não estava ali realmente para apoiá-lo, mas para vigiá-lo. Disse que aquilo estava fora de questão! "De jeito nenhum" foram suas palavras exatas. Agora foi a vez de Luis Antônio, esse era seu nome, manter-se tranquilo. Então para irritá-la, voltou à cantilena de que se quisesse uma solução para o caso ele precisa falar com Paolo Scorsa. Novamente teve seu pedido negado com o acréscimo da informação de que, naquele dia, o sujeito já não era Scorsa e sim algum bilionário preservado num implante. Fora com esse propósito que o presidiário fora trazido semana atrás à Rimane.

O policial disse que mesmo dessa forma poderia obter informações importantes e que a entrevista não precisa ser na forma de um interrogatório; ele seria capaz de obter as informações que precisa numa conversa qualquer. Surpreendida a auxiliar tentou argumentar que não teria desculpa para chamar quem quer que tivesse assumido o corpo de volta à Rimane. Luis Antônio disse-lhe que o perservado poderia ser trazido ali com a desculpa de receber orientações de como se prevenir de algum ataque. Ela deveria dizer que o detetive encarregado do caso sabia tudo sobre os atentados e lhe daria dicas importantes para sua segurança. O preservado, continuou dizendo o policial,  ficou “fora do ar” por um século e meio e obviamente não sabe do risco que corre, mas é melhor ser orientado por vocês que ouvir boatos de terceiros. 

A moça saiu dizendo que não tinha certeza se aquilo era correto, mas Luis Antônio sabia que em poucos dias estaria conversando com o ex-carcamano. Ainda que não tivesse a melhor ideia do que iria fazer no encontro…

De fato, duas semanas depois, soube que teria sua chance com Vito Minetti, esse era o nome do novo dono do corpo que fora de Paolo Scorza. "Que destino infeliz" pensou Luis Antonio "o corpo de um carcamano recebeu a consciência de outro!" 

No dia do apontamento foi revistado pela segurança do novo preservado e teve de concordar em deixar sua arma. Conduzido à uma sala isolada da Rimane pediram que aguardasse a chegada do "senhor Vito". Em torno da mesa retangular e comprida vários guarda-costas o encaravam, um em  especial posicionara-se às suas costas de modo que Luis Antônio não podia vê-lo. O policial não se importava que desconfiassem dele; já tinha feito muita coisa indecente para ter brios de homem de moral ilibada.

Cerca de oito minutos depois entrou Vito Minetti e Luis Antônio adiantou-se para ficar de pé ao que o segurança atrás de si tentou impedir segurando pelo ombro. O policial com um rápido giro puxou a mão do segurança imobilizando-a atrás de suas costas.

“Tire as mãos de mim, garoto” disse o policial enquanto os colegas do segurança imobilizado partiam para cima dele. Antes que isso ocorresse, porém, o empregador de todos, Vito Minetti, ordenou:

“Deixem o detetive em paz”

Passando direto pela cadeira na cabeceira da mesa, o novo preservado foi direto para a porta que dava acesso à sacada e com a cabeça fez um gesto para que um dos guarda-costas a abrisse. Mas não foi à sacada ficando diante da porta aberta de modo que os presentes na sala não podiam ver seu rosto. Sem apresentações ele se dirigiu a Luis Antônio:

“Muito bem, policial, estive dormindo por quase cento e cinquenta anos e tenho muitas coisa para ver. Por isso, seja muito breve. Meu único interesse aqui é que  que preservados como eu têm sido atacados e o senhor parece ter informações que podem garantir minha segurança.

Sem um plano prévio Luis Antônio disse que ambos já tinha se encontrado, pelo menos, ele e o antigo dono do corpo. Sem paciência, o novo administrador daquele organismo disse que não se interessava pelo que o antigo dono daquela carcaça tinha feito: sua existência tinha sido apagada e agora era ele quem estava ali. 

O policial fez mais duas ou três tentativas de extrair alguma informação do preservado, mas esse não quis responder. Aparentando frustração, Vito Minetti suspirou fundo e virou-se para a sala com a cabeça baixa. Depois de uma espera angustiante de alguns segundos levantou a cabeça e olhou diretamente para Luis Antônio:

“Não temos mais nada para conversar”

Nesse instante o policial viu a si próprio dizendo a frase e em seu próximo pensamento percebeu que estava agarrado a Vito Minetti empurrando-o em direção à sacada enquanto um segurança puxava-o pelo pescoço; caíram  todos. Deslocados em sua trajetória inicial, Luis Antônio e Milleti aterrisaram numa varanda cinco andares abaixo enquanto o responsável pelo desvio, o segurança, mais afortunado teve a coluna partida no patamar da mesma varanda e continuou sua descida até espatifar-se cinquenta andares abaixo.

Luis Antônio caiu de costas e conseguia ver o corpo de Vito Minetti retorcido, rosto e tronco de frente para o chão e pernas ao contrário, braços espamódicos. Então, enquanto o conteúdo da cabeça do preservado se espalhava pela varanda, o policial viu-se nascer num outro corpo, chorando séculos atrás pela perda de pais que não eram os que conhecia nessa vida e desejando um amor que nunca conhecera. Ele tinha certeza que aquelas lembranças eram da personalidade que fora implantada em Paolo Scorza; sua própria personalidade quando fora batizado como Vito Milleti, há mais de duzentos anos. Seus olhos ficaram sem luz, mas seus últimos traços de calor foram esconder-se em seu coração que ensaia os batimentos finais. Ele estava feliz, pois sua alma, na verdade, metade com a qual nascera e a metade complementar de Vito Milleti preservada a tanto, podiam voltar a ser uma…









sexta-feira, 3 de maio de 2013

O Convite





Douglas estava de costas para a rua fechando o portão de casa quando ouviu a voz que até uma semana atrás era desconhecida, mas que agora parecia sua sombra. Virou-se com calma para encarar o Delegado Mechior e ter com ele a quarta conversa da semana, ou poderia se dizer, participar de mais uma sessão de sopapos na delegacia da cidade. Sentiu que uma irritação começava a fermentar dentro de si, mas então lembrou-se que passava o dia vendo gente cujos estresses ao longo da vida não significavam mais nada. Esse pensamento levou a outro que o fez rir, imaginou parentes a enterrar seus entes queridos caso alguém mais tivesse de faltar ao trabalho naquela manhã.

Inflexível quanto a sua metodologia, o policial ordenou ao investigador-capanga que algemasse Douglas e o pusesse na viatura para que este fosse sendo convenientemente “amaciado” no trajeto até a delegacia. Lá chegando, o rapaz se não se conteve e riu mais uma vez para si: a delegacia era desproporcionalmente grande para a pequena cidade e ele ficava imaginando aonde Melchior encontraria ocupantes para aquele mausoléu. A face do investigador ruboreceu de ódio, provavelmente achando que o prisioneiro sem crime, iria dele ou de seu chefe e deu-lhe um forte tapa na nuca.

Sentando na sala de interrogatório que Douglas suspeitava ter inaugurado, as mesmas questões dos dias anteriores foram postas a ele pelo delegado. Embora a coleção de hematomas fosse maior que na primeira sessão de tortura, as respostas foram as mesmas.

“Onde você trabalhou antes de chegar à minha cidade?”

“No cemitério de Penápolis exercendo a mesma função de coveiro”.

Se a resposta já era irritante por não ser a que Melchior queria ouvir, ela tinha um efeito ainda mais nefasto ao ouvido do delegado por saber que aquele sujeito tinha trabalhando em sua cidade natal sem que ele jamais tenha ouvido falar dele.

A ladainha continuava com o chefe da delegacia querendo saber motivo Douglas tinha escolhido aquela cidade e como tinha conhecido a família de seu Laurindo Miranda, o fazendeiro mais rico da região. Tomando fôlego ele respondeu à primeira questão: soubera da vaga de coveiro na atual cidade onde o pagamento era melhor. Por outro lado, encontrou o referido patriarca da família Miranda pela primeira vez durante o sepultamento de uma tia centenária.

Melchior já tinha ouvido tudo aquilo e voltava a repetir sua cara de não convencimento. Tornava a indagar como Douglas poderia ter visto os membros da família Miranda há apenas poucas semanas, mas ter cortejado de forma tão impertinente a caçula da casa, Marília Miranda. Ao que calmante o rapaz respondeu:

“Me apaixonei à primeira vista.”

O coveiro também lembrou ao delegado que inicialmente seus galanteios tinham sido correspondidos com bilhetes carinhosos deixados nos mesmos locais nos quais ele deixava flores e lembranças para a garota. O Melchior retrucou aos berros que a aparente anuência da moça, contudo, não passou de um grande engano: pensando que o autor dos misteriosos presentes fosse um antigo namorado, pelo qual ainda era apaixonada, a moça agiu da maneira que agiu.

Infelizmente para Douglas, quando soube do engodo, a indignada foi direto a seu pai, Laurindo Miranda, relatar a ousadia do coveiro. Foi assim que o patriarca dos Miranda entrou na vida de Douglas.

Claro que uma paquera inocente não iria render tantas surras! Douglas sabia que nem um fóssil imbecil como Laurindo Mirana perderia seu tempo mandando seu delegado-capanga espancar quem quer que fosse. O que o Melchior realmente queria saber se o coveiro tramava algo. Afinal, desde o primeiro encontro com os Miranda, mais dois de seus parentes tinham morrido, sua mãe e filho mais novo! Obviamente, nada podia ser atribuido ao rapaz e o delegado sabia disso, afinal, a genitora do médico amanheceu morta (algo bem comum para idosos) enquanto seu filho de Melchior morrera aos quinze anos de um extenso derrame hemorrágico. Tudo num intervalo cinco dias!

Contudo, por mais irracional que pudesse parecer, o delegado perguntava ao rapaz qual seu envolvimento naquelas mortes. Sarcástico, o conveiro não pode privar-se de dizer que o autor das mortes era Deus, ele só enterrava. Esse novo gracejo foi premiado com um belo soco ao pé do ouvido como sempre dado pelo capanga-investigador do delegado-capanga.

Sabedor dos álibis do jovem, o delegado não deve alternativa senão liberá-lo pela quarta vez de um aprisionamento ilegal. Pouco tempo depois, sozinho em sua sala, ele revisava todos os passos da investigação que fez sobre Douglas. Toda a história contada por ele estava respaldada em fatos.

Tendo visitado o antigo cemitério no qual o coveiro trabalhara em sua cidade natal a cerca de cento e setenta quilômetros dali, foi ter com os antigos colegas do rapaz. Dois deles, confirmaram que ele havia trabalhado lá e que era um trabalhador exemplar. Embora ambos não fossem próximos do rapaz e na verdade dissessem que ele lhes causava arrepio. Fato que os dois funcionários do cemitério reconheceram ser estranho; não esperavam se assustar com nada considerando a natureza de seu ofício.

Acontece que eles contaram que como cidade não era muito grande, na maioria dos dias não havia serviço, mas que isso não impedia Douglas de limpar lápides e abrir jazigos familiares  para manter tudo organizado. Até aí tudo bem, mas ambos tiveram a impressão de que em algumas ocasiões o coveiro sob investigação havia deixado jazidos abertos pouco antes da morte repentina de algum membro da família dona da cova. Por isso, o medo que Douglas lhes inflingia, mas ambos admitiram que aquilo não passava de uma superstição boba.

Já de volta à cidade na qual era delegado titular, Melchior foi ao atual emprego de Douglas perguntou a um outro coveiro se ele tinha visto alguma coisa suspeita sobre o rapaz em relação a seu serviço no cemitério. O homem, um senhor alcóolatra de meia idade que se mantia sóbrio apenas o suficiente para ajudar na tarefa de descer os caixões na cova, fez cara de espanto.

“Que tipo de coisa estranha?”

Melchior não tinha como dizer ao homem se ele vira seu colega mexendo em túmulos de modo a causar mal a pessoas sem parecer débil mental e respondeu dizendo:

 “Qualquer coisa.”

Obteve um não como resposta e percebeu que o máximo que sua investigação fez foi sugerir que o rapaz era um trabalhador bom e honesto. Não que ele se importasse em dar-lhe quantas surras fossem necessárias, mas precisava de algo “sólido” para metê-lo a ferros por bastante tempo. O fato de Douglas ter cortejado a filha de Laurindo Miranda não era crime. Pedro Mendoça, o juiz da cidade, não autorizaria uma prisão de outra forma.

Melchior sabia que fora Douglas ser extremamente inteligente e articulado, algo que ficava ainda mais gritante quando se pensava em sua ocupação, o rapaz nada tinha digno de nota.

O delegado tinha marcado almoçar com Miranda para relatar o que havia descoberto sobre o investigado e sabia que o fazendeiro enlouqueceria ao ouvir aquilo que Melchior tinha para lhe contar: nada. O velho estava obcecado com a ideia de que a desgraça que se abatera sobre sua família era culpa do coveiro; dizia que era intuição e que ela nunca falhara.  

De repente o delegado sente a fibração do celular ao bolso e pensa “falando no diabo”. Inesperadamente quem tinha novidades era Miranda:

“Quero que você prenda esse maldito coveiro e perca a chave da cela. Ele teve a ousadia de surpreender minha filha na saída da escola! Está ouvindo, Melchior?”

E antes que este pudesse responder:

“Mas não ficou só nisso. Ele disse para Maristela que poderia protegê-la dessas mortes na minha família, caso ela o aceitasse. Se não, ela estaria por sua conta risco! Está ouvindo, seu palerma? Eis a sua maldita “prova”. Ele ameaçou minha filha”.

Dito isso, Miranda parou de falar…

O delegado entendeu o recado e desligou. Agora, como dizem, iria arrancar o couro do moço. Obviamente que o primeiro lugar no qual procurou Douglas foi o cemitério, mas só o pobre diabo do vigilante bêbado estava no local. Ele garantiu a Melchior que como não havia mais sepultamentos marcados para aquele dia, fora ele e os “moradores” do local, não havia ninguém ali; todos os outros funcionários já tinham ido.

Quando já havia virado as costas, o delegado ouviu uma ressalva curiosa feita pelo homem. Ele vira Douglas indo com pás e ferramentas para alguma parte do cemitério bem cedo, antes de amanhecer, e depois não o viu mais. Mechior não se considerava um sujeito dado a “frescuras”, mas um tremor percorreu todo seu corpo com aquela notícia. Perguntou ao vigia se podia dar uma olhada pelo cemitério e esse deu de ombros advertindo sobre o fato de estar quase totalmente escuro; não queria que alguém, muito menos o delegado da cidade, se machucasse em seu turno.

Com passos rápidos Melchior sabia para onde dirigir-se e novo calafrio percorreu seu corpo quando confirmou sua suspeita: o jazigo dos Mirandas estava aberto! Saiu furioso e ordenou ao vigia que fechasse o mesmo. Este arregalou os olhos e disse que não sabia como fazê-lo. Espargindo saliva para todos os lados o delegado ameaçou:

“Se aquele jazigo não estiver fechado quando eu voltar, o senhor estará preso!”

Não parou para ver a cara de horror do homem, mas por algum motivo arremessou-lhe 50 pratas antes de entrar em seu carro.

Na próxima parada, no bar onde o coveiro fazia suas refeições e queimava o restante de seu dinheiro com bebidas também não o tinham visto. Depois de procurar por toda a cidade desistiu, o rapaz havia desaparecido.

Estava sem alternativa, era quase hora do jantar e teria de encarar, mais uma vez, o mal humor de Miranda. Pegou o telefone e ligou para o fazendeiro para avisar que se atrasaria alguns minutos. Segundos depois um homem atendeu ao celular do fazendeiro.

 “Quem está falando?”  - perguntou o delegado.

Então, ouviu de Estáquio, um dos funcionários de Miranda contando que seu patrão tinha falecido enquanto falava ao telefone! Segundo o médico que foi chamado para atender o caso, o fazendeiro fora vítima de um AVC ou infarto fulminante; algo esperado para um hipertenso que fingia tomar a medicação.

Com o corpo todo trêmulo Melchior desligou o celular, mas segundos depois esse vibrou novamente. Apertou o botão para atender a chamada, mas um calafrio muito mais forte que os anteriores o fez ter a sensação de que iria desabar, mas teve determinação para dizer:

“Alô…”

“Doutor, Melchior – foi dizendo de sopetão a voz – o senhor pediu para ligar se o Douglas aparecesse. Pois então, ele chegou aqui antes de mim, por volta de quatro da tarde, deu uns trocados para meu colega dizendo queria ver algo. Assim que cheguei e percebi o expulsei daqui; não quero ninguém que não seja funcionário por aqui. A única coisa que ele fez foi abrir um jazigo, doutor, o de sua família, mas vou fechar tudo! Pode deixar, doutor. Doutor?…”

Inerte, o coração de Melchior já não batia pela falta do sangue que esvaia pelos nariz, olhos e boca dele…