terça-feira, 17 de agosto de 2010

Barbeiro



Roseana Pacheco estava curiosa. Em dois anos como psicológica da polícia era a primeira vez que pediam sua colaboração numa situação como aquela; invariavelmente os brucutus preferiam entrar e fuzilar os bandidos, se os reféns escapassem, tanto melhor.

Veio a seqüência de fatos inusitados . No local, já haviam lhe reservado uma vaga para o carro. Seu chefe, comandante do grupo de operações especiais, que até então nunca se dignara a cumprimentá-la, veio em sua direção como um cachorrinho abandonado em casa por todo um dia.

O superior informou-lhe ser ela a melhor opção para lidar com o caso já que se tratava de um evidente episódio de loucura: um homem exigia que seu habitual barbeiro devolvesse todo o cabelo que já lhe cortara! Roseana sabia que a natureza de um crime, fosse ela derivada de desajustes psicológicos ou qualquer outra coisa, nunca foi motivo para conter a tropa, então veio a teve a resposta. O “louco” não era outro senão Otávio Ribeiro, empresário respeitado em todo o país; seu nome e fortuna trouxeram consigo aquilo que nenhum pé-rapado conseguiria: centenas de câmeras de televisão acompanhando cada passo da polícia. Roseana conteve o riso ao descobrir o motivo de estar sendo tratada com tanta exceção.

Assim, de acordo com as gentis palavras do chefe a situação tinha tudo para colocar a polícia numa grande “merda” e isso não era nada bom especialmente porque as eleições estaduais ocorreriam em duas semanas. Natural pois que o governador e candidato à reeleição o tivesse intimado a solucionar o episódio de modo pacífico. Concluindo sua exposição o comandante disse que não estava impressionado por todos a considerarem uma menina prodígio ou por ela ter sido a primeira colocada do estado no concurso da polícia. Aquela seria a verdadeira oportunidade de provar que sua contratação tinha sido de alguma valia para o departamento.

Por meio de um megafone discutiu-se com o empresário a possibilidade de um negociador ser enviado à casa. Seria uma policial desarmada e pronta para antender à suas reivindicações. Intransigente e confuso de início, o agressor acabou respondendo aos gritos que a mulher poderia entrar, pois ele também queria acabar logo com aquilo. Não desejava ferir ninguém, apenas ter sua vida de volta.

Enquanto era preparada para entrar, a moça foi advertida por um colega para que não se deixasse enganar pelas boas intenções do empresário; para dar um toque de excentricidade ao evento, além da arma de fogo onipresente em casos como aquele, ele tinha um isqueiro com o qual ameaçava incendiar a barbearia.

Algum tempo depois a mulher foi autorizada a entrar na barbearia, e assim que o fez, o empresário que estava oculto atrás da porta, empurrou-a. Em seguida, bastante sem jeito, tentou revistá-la. O insucesso em encontrar qualquer tipo de arma, ou mesmo o ponto de rádio que a mulher trazia sob o capacete, tranqüilizou-o um pouco.

Mesmo assim, em sua mão, o isqueiro assemelhava-se a um objeto empunhado por um paciente com Parkinson avançado; a pistola tinha-a na cintura. Seu rosto pálido e sem cor apresentava várias perfurações com o diâmetro de uma queimadura de cigarro nas bochechas e entre os olhos; sem dúvida sinais de auto-flagelação, pensou a recém-chegada.

O lugar era surpreendentemente pequeno e só comportava uma cadeira de barbeiro na qual um homem já idoso estava amarrado com fita adesiva; no mais, uma porta parecia levar a outro cômodo. Acima da cabeça do prisioneiro, um recipiente tinha sido preso ao teto e furado para que seu conteúdo, gasolina, pudesse vazar aos poucos banhando o dono da barbearia.

_ Então? – gritou o empresário retirando Roseana de sua inspeção mental. Peça, convença-o logo! Não é para isso que você está aqui?

_ Convencer de quê, senhor Otávio?

_ Não tente ganhar tempo comigo, não sou idiota! – respondeu-lhe apontando o isqueiro em direção ao barbeiro. Eles já explicaram tudo!

_ Desculpe, não foi essa minha intenção. Está bem? Só me explique um pouco melhor, por favor. Lá fora eles me disseram apenas que o senhor queria seus cabelos de volta...

Então, com o olhar perdido entre as cenas de suas memórias, Otávio Ribeiro passou a recapitular os acontecimentos como se o fizesse para si mesmo. Em seu delírio, o ”monstro”, cujo nome “Augustinho″ o empresário se recusava a nomear, deveria devolver-lhe a vitalidade. Narrava que começara a freqüentar o estabelecimento por este funcionar à noite o que era perfeito para seus horários de homem ocupadíssimo.

O barbeiro gostava de contar que tinha uma clientela bastante grande composta de pessoas “muito ocupadas” assim como Otávio Ribeiro. Por coincidência, o empresário nunca encontrou outro cliente lá, supôs que fosse devido ao agendamento de horários. De qualquer modo, tornou-se frequentador assíduo retornando sem falta a cada quinze dias.

A partir daí, sem nenhuma explicação passou a sentir-se muito fraco e a envelhecer. No começo não associou as mudanças físicas às visitas periódicas ao monstro, mas aos poucos notou que nunca se lembrava de nada que ocorria enquanto cortava o cabelo; sabia que chegava ao salão vazio e recuperava a consciência apenas em casa, com eles cortados e um pouco mais brancos. Sem mencionar o cansaço e estranhas feridas no rosto e entre os olhos.

Enquanto Otávio Ribeiro desfiava suas fantasias, o nervosismo da psicóloga atingiu ápice. A boca do homem dava testemunho de que ele estava fora de si e por experiência ela sabia a inutilidade de argumentar com alguém tão dominando pelo irreal; tinha de se acalmar e aproveitar a distração dele para enganá-lo.

Um dia – continuava – sua intuição o fez perceber que tudo aquilo era devido ao barbeiro: ele estava sugando sua vida! Hoje, estava ali para tê-la de volta; felizmente ainda conseguia pensar um pouco e invadiu o lugar durante o dia, afinal, somente durante o sono, aquele monstro se encontrava vulnerável.

Pedindo que se acalmasse ela disse que iria pedir ao senhor Augustinho que lhe devolvesse os cabelos. Ao se aproximar do desventurado barbeiro, a psicóloga percebeu que o empresário parecia ainda mais nervoso e vacilante. Na realidade, ele parecia apavorado em manter-se próximo à sua vítima.

Aproximando-se lado esquerdo de Augustinho ela sussurrou-lhe ao ouvido:

_ Não se preocupe, vamos sair daqui! Aonde está o lixo com os restos de cabelo?

A resposta foram murmúrios initeligíveis, por certo os maus tratos recebidos tinham lhe confundido a mente, concluiu a moça. Enquanto Augustinho balbuciava sua novena indecifrável, ela teve a impressão que ele tentava lamber-lhe o rosto. Insistindo em sua pergunta a psicóloga teve a impressão de ouvir a palavra “não”.

“Que tipo de barbearia não tem algum resto de cabelo?” – pensou.

Pelo menos ela conseguiu subtrair um tesoura do velho sem que Otávio percebesse. Sem a ajuda do barbeiro, decidiu mudar de tática:

_ Senhor, Otávio, me ouça. Os cabelos estão no fundo da barbearia. Preciso do barbeiro para que ele me mostre o lugar onde se encontram.

_ Que tipo de idiota você pensa que eu sou? Você vai, ele fica.

Satisfeita, Roseana passou pela porta no fundo da barbearia, descobrindo que ela dava acesso a um anexo que servia de moradia para seu Augustinho.

Pouco depois ela retorna com uma sacola de plástico branca com diversos tufos de cabelo bem negro em seu interior. Tentando demonstrar sinceridade apresenta seu achado a Otávio Ribeiro.

Ainda que evidentemente satisfeito, ela foi questionada quanto ao o resto. Afinal, segundo ele, durante aqueles últimos meses seu cabelo fora cortado diversas vezes. Com uma desenvoltura que desconhecia ter, disse que o restante não importava; bastava uma pequena quantidade do cabelo perdido para restituir a energia do dono. Não era verdade que em filmes de magia negra um único fio era capaz de afetar a pessoa? No confuso cérebro de Otávio Ribeiro tal argumento pareceu dotado de uma lógica inequívoca.

Então, o seqüestrador deu à psicóloga a oportunidade de realizar o mais ousado movimento da noite. Questionada quanto ao que era preciso para que sua vitalidade fosse restituída por aqueles cabelos, a moça respondeu que apenas quem roubou-a poderia devolvê-la: Augustinho.

Otávio Ribeiro afastou-se bruscamente para o canto oposto da sala enquanto aos berros dizia que sob hipótese alguma o monstro seria solto; ele era muito perigoso. A psicóloga tentou acalmar o empresário dizendo que a vítima não passava de um senhor franzino e assustado; incapaz de fazer mal. O cada vez mais assustado empresário disse que aquela era a intenção do predador: fazer com que acreditassem que ele fosse frágil e indefeso para roubar-lhes a vida.

Indiferente às imprecações do empresário, a mulher aproximou-se das costas do barbeiro e tocou-lhe os ombros com ambas as mãos. No outro canto do cômodo o seqüestrador lhe implorava que não fizesse aquilo porque o monstro atacaria. Ousando ainda mais, ela envolveu por completo o velho encostando o próprio rosto ao dele; desesperado, Otávio Ribeiro evitava olhar para o barbeiro e gritava como se estivesse sofrendo a mais dolorosa das torturas.

Aproveitando o desespero do empresário e tentando evitar as investidas de Augustinho, que teimava em querer lamber-lhe o rosto, ela usou a tesoura pela segunda vez.

Quando baixou os olhos e viu o barbeiro com as mãos desamarradas a poucos metros de si, Otávio Ribeiro passou a amaldiçoá-lo a toda voz. Curiosamente, a pistola continuava em sua cintura, ele parecia crer que só o fogo era capaz de lidar com o monstro posto que o isqueiro estava apontando em direção ao velho que continuava avançando.

Temendo o pior, a psicóloga havia se posicionado na frente de seu Augustinho tentando barrar-lhe a caminhada. Ainda que a mulher tivesse os dois braços contra o peito do velho e as pernas estendidas para manter-se no lugar, a força do barbeiro era algo anormal já que ele não precisava inclinar-se nem mesmo um centímetro buscando uma alavanca mais favorável a fim de se opor à psicóloga, uma mulher grande de mais de setenta quilos.

A cada centímetro que Augustinho a empurrava para mais perto do empresário, Roseana imaginava sentir as chamas se espalhando pelo cômodo, mas ao invés de atear fogo ao local, Otávio Ribeiro encolhia-se mais e mais em seu canto e lamentava:

_ Eu não devia ter concordado com a sua entrada...agora não posso acabar com tudo...

Pelo parecer dela, o empresário ainda parecia ser capaz de distinguir que o assassínio de qualquer outro que não o barbeiro era algo condenável. A alternativa era arriscar a vida por seu palpite.

Em meio à crescente confusão, ela ouvia o constante questionamento do comandante se aquele era o momento para invadir o lugar; em meio a gritaria de Otávio e aos resmungos inconpreensivos de Augustinho ela respondia pelo rádio: “ainda não!”.

Por fim, quando só o corpo da psicóloga separava o empresário de sua vítima, o desespero de Otávio Ribeiro foi substituído por uma patética submissão. Às lágrimas, ele implorava para que Roseana Pacheco fosse embora e lhe deixasse dar fim ao monstro para que a criatura não pudesse mais vitimar ninguém.

Cada vez com mais dificuldade para conter o velho que fazia questão de se aproximar do empresário, Roseana Pacheco prometeu a Otávio Ribeiro que se ele lhe entregasse o isqueiro e a pistola, ela cuidaria pessoalmente para que o barbeiro não atacasse mais ninguém.

A situação já se encaminhava para o seu melhor desfecho quando Augustinho, talvez dando vazão ao medo e frustração experimentados nas últimas horas, decidiu agredir o empresário. Deixando o isqueiro cair e aparentemente esquecido de portar uma pistola, o seqüestrador lutava com selvageria para manter o barbeiro atrás da psicóloga. Já esta, era empurrada de um lado pelo empresário e de outro pelo idoso que ora tentava desferir socos no adversário, ora lamber-lhe o rosto ferido e pálido. Em meio à luta, Roseana era atingida por ambos. Prestes a perder a consciência ela conseguiu dar a ordem pelo rádio: “agora, invada agora”...

Alguns dias depois, a psicóloga foi elogiada em público por seu comandante. Segundo ele, todos do grupo deveriam admirar sua astúcia que lhe permitiu cortar o próprio cabelo para enganar o seqüestrador e concluir a operação sem baixas. Para satisfação da moça, este foi coerente ao próprio conselho e passou a cumprimentá-la todas as manhãs.

Quanto aos personagens do evento que promoveu-a em celebridade, soube que Augustinho se recuperou bem e, menos de um mês depois, fechou o salão para viver com familiares no interior. Já para Otávio Ribeiro, as coisas foram mais complicadas: não retornou ao trabalho acabando recolhido a um luxuoso sanatório.

Segundo o parecer da doutora Roseana Pacheco, o excesso de trabalho levou o homem a se desconectar da vida e das transformações físicas decorrentes do próprio envelhecimento. Ela suponha que os momentos quinzenais de relaxamento na barbearia permitiram que emergisse do torpor. Infelizmente, a retomada de consciência ocorreu numa versão concentrada e violenta de crise da meia-idade sendo o barbeiro o objeto de sua frustração.

Por tudo que havia descoberto, ela acreditava que poderia ajudar Otávio Ribeiro a experimentar um retorno ao convívio social. Assim, pediu uma autorização a seus parentes para poder visitá-lo. Organizava suas folgas na polícia para ir ao sanatório de quinze em quinze dias, ocasiões nas quais o empresário costumava ter suas crises. Mas seria um trabalho árduo. A condição mental do paciente era tão delicada que ele definhava continuamente e ainda se mutilava. O pior era que as crises quinzenais eclodiam devido às visitas à barbearia das instituição.

O parecer da doutora era de que, melhor que interromper os cortes, o empresário deveria continuar tendo a oportunidade de enfrentar seus medos; só assim melhoraria. Por isso, de costume ela chegava um pouco antes que Otávio Ribeiro cortasse o cabelo numa tentativa de tentar fazê-lo entender que ninguém lhe faria mal; muito mesmo o barbeiro da instituição psiquiátrica; sem confessar a doutora o achava um jovem profissional até bastante interessante.

Infelizmente, a visita de hoje corria o risco de perder o propósito, o trânsito estava pior do que ela imaginara e não se podia fazer muita coisa com o empresário após seu cabelo ter sido cortado; ele perdia o controle pro completo e precisa inclusive ser amarrado para não mutilar o próprio rosto.

Longe dali, na barbearia de uma certa instituição psiquiátrica um envelhecido empresário imobilizado por uma camisa de força recebia um conselho:

_ Pare de gritar, meu caro. Depois de tanto tempo, você já devia estar acostumado ao maior apreciador de seu delicioso tipo O negativo.


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