sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Quando papai me desenhou



Diz o ditado que “coração de mãe não se engana”, e o de Priscila não se enganou, desde que soube que teria Guilherme, ela sentia que seria um menino muito, muito levado.
Como não queria ficar com os cabelos brancos antes da hora, decidiu tentar deixar “Gui” um pouco mais calmo ainda na barriga: comprou uma coleção de musiquinhas tranquilas, começou a respirar bem devagarzinho e sempre dizia: “Fica quietinho, Gui.”
Mas era como se Priscila estivesse pedindo: “faça bagunça”. Pois quanto mais ela pedia para ele ficar tranquilo, mas o menino parecia se divertir pulando e se agitando sem parar. Priscila, teimosa, não desistia. Sendo uma mulher bastante séria e comportada desde pequena ela queria fazer valer outro ditado: “Filho de peixe, peixinho é”.
Nos últimos três meses, contudo, o rapazinho estava exagerando. Não importava se sua mãe estivesse na sala de casa, na academia de dança ou no supermercado, Gui começava a pular, chutar para todos os lados e não parava mais. A agitação era tanta que Priscila não conseguia fazer mais nada e ficava repetindo “fica quietinho, Gui”, mas o sapeca não dava bola.
Sem que a mãe percebesse, Zenon, o pai do garoto, ria baixinho do jeito levado do filho e fechava os olhos imaginando-o mais velho, fazendo bagunça em todos os lugares.
Então, um dia, Guilherme despertou assustado porque em algum lugar sua mãe estava chorando e gritando de dor. Ao mesmo tempo, as paredes da barriga dela pareciam querer expulsá-lo dali. Já seu pai, pedia que ela se acalmasse, pois tudo acabaria bem, isso enquanto dizia palavras feias para que os outros os deixasse passar com o carro.
Já no hospital e sem entender o que estava acontecendo, o menino começou a pular e se agitar para ver se sua mãe falava com ele, mas ela ficou ainda mais nervosa e por fim gritou bem alto: “agora não, fica quieto, Gui, por favor!” Se até então os pedidos de sua mãe o deixavam com vontade de se mexer ainda mais, daquela vez, foi um baita susto. Priscila parecia brava com ele e de repente parou de dirigir-lhe a palavra! Assustado, pela primeira vez ele resolveu obedecer. Ao longe Gui ainda ouvia “amor, acorde, por favor”, mas magoado, resolveu tapar os ouvidos.
Depois de muito tempo amanheceu e o pai de Gui, espantado, acordou a mulher:
“Meu amor, venha ver isso!”
Na cômoda ao lado da cama em que estavam um livro grande, com um lápis ao seu lado, piscava liberando uma luz verde fosforescente. Nenhum dos dois tinha ideia de onde tais objetos tinham surgido. Indeciso, Zenon, logo sugeriu que talvez fosse melhor não tocar nele. Priscila, contudo, corajosa como sempre, apanhou o livro e quis ver o que havia nele, mas logo descobriu: estava em branco. Alguns instantes depois ele parou de piscar. Sem poder explicar o que estava acontecendo deixaram o livro onde o encontraram.
Na madrugada seguinte, Priscila ouviu um barulhinho de folhas sendo manuseadas, quando abriu os olhos, o misterioso livro estava aberto! Onde antes só existia uma página em branco, agora estava escrito “Guilherme. Além disso, embaixo do nome vários desenhos compondo uma história enchiam as páginas. Priscila e Zenon perceberam que já tinha visto o personagem daquele desenhos, era o Tímpano, uma famosa orelha mutante de um desenho animado muito visto por Gui e cuja força dependia dos barulhos da grande cidade. Guilherme gostava muito do tímpano.
A primeira página da história mostrava que o herói havia sido enganado por seu grande rival, o Girafa. Sem que Tímpano soubesse, o terrível vilão esvaziara a cidade dizendo para todo mundo que era feriado. Aproveitando a falta de barulho para enfraquecer Tímpano, Girafa o capturou e amarrou na linha do super silencioso metrô ecológico. O pobre herói seria amassado...
Então, na próxima cena, Zenon e Priscila, levaram um susto: enquanto o desenho mostrava o Girafa dizendo a Tímpano que aquele era o fim (como fazem todos os vilões que estão perto de acabar com  seus inimigos), Gui entrava em cena! Ele estava com a aparência de 4 ou 5 anos; curioso, Zenon não lembrava com quantos anos o filho estava agora.
   Surpreso o Girafa pegou caneta e lápis e mostrou um bilhete com os dizeres:
“Vá embora, Guilherme, você não pertence a essa história”.
Decidido, Gui ordenou que seu herói predileto, o pobre Tímpano, fosse solto imediatamente! Sem responder, o Girafa, sacou uma arma de raios e disparou. Com incrível agilidade, Gui se desviou daquele e de todos os outros raios lançados pela arma do vilão, mas não o fez quietinho, enquanto pulava e esperneava para não ser atingido, o menino cantava e gritava como só ele sabia fazer. Quanto mais barulho ele fazia, mais aumentava a fúria silenciosa do Girafa e o que era melhor, a força do Tímpano!
Quando o dedo do Girafa já estava quase dormente, ocorreu um estrondo! Era o Tímpano que graças à barulheira do agitado Gui conseguiu as forças necessárias para arrembentar as correntes de aço que o prendiam. Sem esforço o herói, capturou o Girafa; antes de levá-lo à delegacia, ele agradeceu:
_ Gui, você me salvou, muito obrigado. Por que você não fica aqui e me ajuda com os malfeitores? Seríamos uma dupla imbatível!
_ E mamãe e papai?
_  Oras, eles não o querem com seu super poder de fazer bagunça. Ficam sempre te pedindo para ficar quieto. Vem comigo!
De repente, a próxima página do livro estava em branco! Aquele tinha sido o último quadrinho. Zenon e Priscila se entreolharam e, de repente, ela deu um grito de horror. Ela ainda não tinha visto Gui naquele dia e pressentiu que caso seu filhinho ficasse na historinha, ela o perderia para sempre!
Então, uma luzinha acendeu lá no fundo da cabeça do pai de Gui. Apanhando o lápis que encontrara próximo ao livro, ele começou a desenhar o filho do jeito mais parecido que se lembrava. E as páginas do livro começaram a se preenchidas por outra história. Agora Gui não era só mais um menininho, e sim um adolescente que tinha assumido a identidade de um super herói, o Goela. Intrépido parceiro do Tímpano para juntos lutarem contra o mal!
Com o livro nas mãos, Zenon começou a chamar pelo filho. Contudo, por mais que gritasse não conseguia que o desenho de Guilherme o ouvisse. Então, também sem saber de onde vinha aquilo, foi a vez de Priscila ter sua ideia fantástica: pediu a Zenon que se desenhasse no caderno e fosse falar com o filho.
Desesperado para encontrar o filho seguiu o conselho da mulher. Contudo, diferente de Gui e do Tímpano cujos traços reproduziam aqueles de desenhos novos, os que passavam na televisão naqueles dias, Zenon só foi capaz de se desenhar com a aparência dos antigos desenhos de sua própria infância! Assim que terminou o esboço de si próprio, o pai de Gui acordou dentro da história. Ele começou a correr e gritar pelo filho e não demorou para encontrá-lo só que agora ele já era um adolescente. Quando se aproximou o pai percebeu que seu filho conversava com o Tímpano sobre sua próxima aventura dos dois.
Quando se viram, pai e filho trocaram um longo abraço e com lágrimas nos olhos Zenon pediu ao garoto que voltasse com ele para casa. Nessa hora, o Tímpano se aproximou e lembrou ao rapaz que os pais dele viviam dizendo para ficasse quieto. Segundo a orelha mutante, Gui não era querido por eles. Por outro lado, no papel de Goela ele seria sempre útil e amado. Por fim, Tímpano disse que depois de um tempo o casal acabaria tendo outro filho como queriam, isto é, mais quieto e seriam felizes sem nunca sentir a falta de Gui.
Então o Goela, ou melhor, Guilherme se afastou do abraço do pai e perguntou a ele se aquilo era verdade: se não gostavam de seu jeito ativo e levado. Sem querer demonstrar ao filho a raiva que estava sentindo pelas palavras daquela orelha, o desesperado Zenon disse que não e que tanto ele quanto Priscila o amavam mais que tudo!
De repente, Tímpano fez com que a história mudasse e as cenas dos natais que Gui passou com seus pais foram surgindo. Em nenhuma daquelas data o menino ganhara os presentes que tanto desejara: instrumentos musicais, carrinhos de controle remoto chineses luminosos e barulhentos, bolas de futebol para chutar dentro de casa. Nada disso! Ano após ano, o menino ganhava palavras cruzadas, apitos para chamar cachorros, quebra-cabeças, um contador de decibéis para controlar o próprio barulho.
À medida que ia vendo seus sucessivos natais, Guilherme afastava-se do pai e se aproximava de seu novo amigo. Zenon dizia ao filho que aquilo não era verdade; aqueles natais nunca tinham existido. Daí, o pai olhou para cima rumo ao céu branco e infinito do livro e disse: “não é verdade, amor?” Torcendo para que a esposa, em algum lugar o ouvisse, e respondesse. Os segundos se passaram e a voz de Priscila não se fez ouvir. Aproveitando-se Tímpano falou:
_ Não te disse que ela não liga pra você?
Então, puxando Gui pelo braço o herói sumiu num quadrinho qualquer da história.
Zenão não sabia mais o que fazer. Quem sempre tinha uma saída era Priscila, mas parecia que ela não estava vendo o que acontecia no livro. Mas quando ele começa a se achar mais desesperado que uma criança pequena ao perceber que se perdeu dos pais num supermercado gigante, vários personagens novos foram surgindo ao lado de Zenon; ele mal pôde acreditar, eram os mesmos dos desenhos que ele assistia quando criança. Era a mãe do garoto enviando uma ajuda ao marido.
Depois de abraçar todos seus desenhos prediletos da infância Zenon começou a gritar por Gui. Seus amigos começaram a fazer o mesmo. Logo a gritaria se tornou insuportável e ninguém naquele livro poderia deixar de ouvi-los. De fato, de um quadrinho lateral da história surgiu o Tímpano; ele estava sozinho.
Ele partiu em direção a Zenon tentando atacá-lo, mas os desenho antigos vieram defender o pai de Gui. Porém, um a um eles foram derrotados por Tímpano. Só então o pai de Gui percebeu seu erro: ao gritarem eles aumentaram incrivelmente as forças do desenho amigo de seu filho! Assim que derrotou o último desenho antigo a orelha e agora revelado falso herói disse:
_ Vou me livrar de você e Gui ficará aqui para sempre!
Ao mesmo tempo em que tentava se defender dos socos e pontapés de Tímpano Zenon gritava por seu filho. Quando ele finalmente que não tinha mais forças uma voz disse:
_ Tímpano, o que você está fazendo?
Era um jovem de uns 25 anos, um homem feito, mas entre seus olhos inchados Zenon conseguiu ver claramente que era Gui crescido.
Sem olhar para trás e segurando o pescoço de Zenon Tímpano respondeu que estava se livrando de uma praga. Gui disse que heróis não faziam aquilo e que deveriam libertar aquele homem para enfrentarem novas missões. Contudo, Tímpano já não o estava ouvindo e começou a apertar o pescoço de Zenon. Confuso, o rapaz não sabia o que fazer, achava que conhecia aquele homem, mas não se lembrava de onde.
Quando Zenon estava prestes a desmaiar novos desenhos surgiram entre ele e Gui. O curioso é que não eram nem os desenhos da época de Zenon nem os que Guilherme conhecia, mas eram desenhos sobre os dois. Eles iam surgindo um após o outro. Podia-se ver quando Gui fugia da cama de madrugada aos finais de semana para ficar assistindo televisão com seu pai que chegara do serviço. Noutro, Gui e Zenon apareciam na primeira vez que ambos foram ao estádio assistir a um jogo de futebol. Gui riu quando viu o desenho dele tomando uma bronca de sua mãe e seu pai, incapaz de ficar sério, começou rir fazendo com que todos caíssem na gargalhada. Desenho após desenho Gui foi se lembrando, então:
_ Tímpano, largue meu pai!
A ajuda dada por Priscila desenhando várias lembranças no livro tinha funcionado!
Surpresa a orelha mutante se voltou para Gui e perguntou como o jovem podia ficar ao lado de quem não o amava enquanto ele, Tímpano, tinha cuidado dele e o aceitado do jeito que era. Mas como resposta ouviu que tudo o que tinha feito foi enganá-lo, ninguém o amava mais que seus pais. Furioso, o ex-herói de Gui disse que se ele tentasse defender Zenon ele também seria atacado já que agora ele estava muito forte e não precisava de mais ninguém. Gui disse apenas:
_Você não é mais meu herói.
Tímpano começou a gargalhar, mas depois de alguns segundos parou e começou a perguntar o que estava acontecendo até que desapareceu da história; ele nunca soube mas sem Gui não tinha como existir.
De repente Priscila abriu os olhos. Estava numa mesa cirúrgica com vários médicos a sua volta e Zenon segurando sua mão. O que está acontecendo? Onde estou? Perguntava ela. Então, com lágrimas nos olhos, seu marido lhe disse que no meio do parto ela tinha desmaiado e o bebê deles havia parado de se mexer. Agora os médicos estavam preocupados com o que iria acontecer.
“Então tinha sido tudo um sonho?” se perguntava Priscila. E se tivesse sido? O importante era que seu Gui estava correndo perigo. Arrependida por querer moldar o jeito de seu futuro filho, num impulso um grito veio de seu coração de mãe:
_  Gui para de ficar quieto! Mamãe ama que você seja sapeca!
Todos na sala se entreolharam e um dos médicos se adiantou a dizer entre lábios para Zenon que aquilo era efeito da anestesia. Efeito do remédio ou não, um segundo após o grito de Priscila um dos doutores, aquele que estava com as mãos por cima da barriga da mulher, deu o alarme: o garoto tinha voltado a se mexer e estava terminando de sair!
Enquanto os médicos mais contidos respiravam aliviados, Zenon deu um beijo na esposa e, emocionada, uma enfermeira começou a bater palmas!
Quando puxaram Gui para fora, ele se mexia e pulava alegremente e assim que recebeu o famoso tapinha no bumbum resolveu fazer sua primeira travessura: ao invés de chorar, espirrou!

FIM

3 comentários:

  1. História dedicada ao Guilherme e seus pais, Priscila e Zenon. Gui, eu sei que vc já não é tão pequeno desde que eu prometi a história, mas espero que o cumprimento da promessa ainda lhe traga alegria.

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