Justo agora? Faltando
menos de um ano para aposentar-se! Durante toda sua carreira fora exemplar
resolvendo os crimes dos quais o encarregavam e, como recompensa, tinha sido
transferido para o trabalho burocrático, o que quase certamente era uma
garantia de que não só sua esposa desfrutaria do dinheiro da aposentadoria;
aquela era uma cidade violenta. Entretanto, embora não gostasse do pensamento,
ele sabia que a recompensa não era tanto pelos bons números contra o crime
quanto pela habilidade de livrar colegas de enrascadas.
Mas e dái? Ele
pouco se importava com os danos que isso tinha trazido à sua reputação em
alguns setores do departamento. O que lhe interessava era que a família e
população o vissem como um herói condecorado e bom policial. A impotância dessa
“imagem” ganhava alturas exponenciais considerando-se que ele sempre fora
alguém incapaz de manter-se focado em qualquer objetivo. Um sujeito cuja
carreira bem sucedida era muito mais o resultado de sorte (destino talvez?) que
de competência. Logo, sua trajetória como policial era a única coisa sólida que
um sujeito espiritualmente insatisfeito podia exibir para ocultar a síndrome
congênita de fracasso que parecia portar (às vezes estava certo de ter nascido
com “partes” faltando).
Infelizmente, no
final de sua carreira esse legado estava arriscado. Qual a razão para terem o
colocado no, até então insolúvel, caso dos implantes? Nem aqueles receberam
seus favores no passado e agora estavam em posições de poder souberam lhe explicar.
“Ordens de cima”, um ou outro limitou-se a dizer. Fosse qual fosse o
motivo, sentia náuseas e uma dor no peito ao pensar que muito provavelmente num
futuro não muito distante a família e a sociedade teriam esquecido suas
vitórias e todos o lembrariam como mais um fracassado engolido pelo caso
Rimane.
Nos últimos seis
meses, desde que fora posto naquela arapuca, nem ia à sua mesa no distrito.
Rumava direto para a sala de arquivos da Rimane aonde havia sido instalado.
Deram-lhe uma moça bonita como auxiliar e muita comida e bebida de ótima
qualidade; para ele poderiam ter dispensado a franguinha. Seria uma forma de
consolá-lo quanto ao fracasso eminente? Afinal, o quê havia para
descobrir? Revisara milhares de documentos e, juntos, os casos resumiam-se
a um oceano de “coisa-nenhuma”, preenchido aqui e ali por ilhotas de fatos
surreais!
Em primeiro
lugar era preciso dizer que todas as vítimas tinhma recebido o implante de
eternização da Rimane. Funcionava assim. "Milhardários" e outros
detentores de muito dinheiro tinham sua personalidade preservadas num
chip assim que morriam e, cento e quarenta e quatro anos depois, os dados eram
colocados num novo corpo (cuja origem aliás ninguém sabia!).
Os técnicos da
empresa diziam que os quase cento e cinquenta anos eram necessários para a que
a pessoa começasse de novo, evitando que qualquer aspecto de sua antiga
existência (como familiares diretos) viessem a pertubar a nova vida. “Quem não
gostaria de morrer e voltar para a família?” ele se perguntava. Na verdade com
todos aqueles anos a fortuna do “preservado em chip” ficava bloqueada na
Justiça e ninguém de sua família tinha acesso. Ou seja, a resposta para sua
questão era:uma gente egoísta que estava mais preocupada em ter uma boa vida
quanto a tivesse de volta do que manter laços familiares. Por isso mesmo, ele
pouco se importava com que vinha acontecendo com eles e que era o motivo pelo
qual estava ali.
Além disso, a técnica
tinha começado a ser usada no século XXII, isto é, há mais de 200 anos e, portanto,
vinha sendo implantada há cerca de meio século. O problema era que dos
primeiros preservados até hoje, vários tinham sofrido atentados e morrido. Os
assassinos que em geral acabavam mortos pela segurança da vítima ou agentes da
lei. Mas alguns criminosos não morreram e os interrogatórios desses eram
especialmente interessantes! Todos se diziam os indivíduos mais felizes
do Universo e, que ainda que fosse condenados a perpétua, a
"completude" que sentiam após assassinatos fazia tudo valer à pena.
Outro fato curioso, isso tanto para os assassinos que eram mortos quanto para
os que eram presos, todos, sem exceção, tiveram uma tira de papel encontrada
consigo e na qual havia a seguinte frase:
“Estejam onde
estiverem, falem a língua que falarem, tenham a cor que tiverem, duas almas
gêmeas seguem para um ponto de encontro."
Fora isso, nenhum dos
criminosos se conhecia entre si ou à suas vítimas. Mesmos aqueles que se
declaravam ter encontrado a "iluminação" ao assassinar seu alvo
diziam que até dias antes nunca tinha encontrado ou sabido da existência da
pessoal; apenas tinha sentido um desejo incontrolável de dirigirem-se a um
local e lá, eram incapazes de não atacar suas vítimas. Isso dito, o policial
estava sem pistas e como diz o jargão "num beco sem saída". Isso
fazia sem medo de fracassar converter-se em desespero. Quando o barril de suas
neuroses estava para transbordar aconteceu...
Era quarta-feira, no
fim do expediente que ele lhe auto impusera. Cruzou com um bando de seguranças
na catraca de acesso às dependências da Rimane. O cortejo carrancudo protegia
um sujeito muito mal vestido posicionado no centro do grupo. Parou. Embora em
trinta anos de atividade policial ele tenha visto milhares de feições, era
incapaz de esquecer um rosto, especialmente aqueles de criaturas do esgoto. Só
não se lembrava o nome nem o motivo pelo qual o mal vestido tinha infringido o
limite da Lei. Mas se o cidadão estava naquele lugar ele precisa saber o
motivo; além das intuição feminina existe aquela intuição "anti-marginal"
lhe velhos policiais são tem de conviver a contragosto.
Pela primeira vez o
trabalho na Rimane pareceu interessante! Nos dias que se seguiram, primeiro
tentou descobrir o nome do sujeito por conta própria, mas não conseguiu. Talvez
ele tivesse envelhecido, mudado de nome ou qualquer outra coisa. Resolveu
mentir.
Pediu a sua
curvilínea auxiliar a fita de circuito interno de quando havia visto o rosto do
meliante; sabia o horário exato, mas para não ser óbvio demais, preferiu
pedir as imagens do dia todo. Quando tudo começou meses atrás, seu superior do
departamento de polícia e um executivo da Rimane, numa reunião, tinham lhe
garantido que a moçoila obteria qualquer informação para resolver o caso.
Contudo, o seu pedido das imagens a desconcertou e, com uma desculpa, ela disse
que precisava sair.
Voltou algum tempo
depois tentando argumentar sobre o interesse do policial nas imagens e ele deu
sua cartada: as imagens iriam ajudar a solucionar o caso dos implantes. Com
hesitação a suposta auxiliar disse que no dia seguinte as imagens estariam à
sua disposição e que ambos poderiam vê-las.
Na hora do almoço do
dia seguinte apontou o sujeito para a moça:
_ Quem é aquele
cercado de seguranças?
De pronto a moça
disse que não fazia ideia e ele sabia ser uma mentira. Ele sorriu com o canto
do lábio, encarou-a por alguns segundos e começou a falar. Disse que caso
seus chefões quisessem brincar de paciente que paga fortunas ao médico e mente
durante a consulta para esconder comportamentos reprováveis, tudo bem. Quem
teria um “diagnóstico” e consequentemente um remédio errado, seriam eles.
Reforçou dizendo que se até ele já tinha ouvido boatos sobre clientes da Rimane
cancelando contratos pela falta de garantia de que não teria seu chip
destruído a coisa estava séria, mas isso não era problema dele. Por fim,
lembrou-a de que a escolha dele tinha sido provavelmente feita com base em seu
histórico: sabiam que ele tinha muito a perder caso revelasse algo não
autorizado; seu passado era condenável. Deixou a sala dizendo a ela que
pensasse e pelo tempo de um cigarro; depois disso se ele continuasse no escuro
abandonaria o caso com tudo que já tinha descoberto (claro que não confessou à
garota que isso era igual a nada, blefou).
Um cigarro depois, a
moça lhe entregou uma pasta tentando dizer que se ele revelasse, mas ele fez
sinal para que ela não perdesse seu tempo: ele sabia que seria um homem a menos
no mundo se aquilo, o que quer que fosse, vazasse. Apesar da curiosidade
quase incontrolável, os anos de treinamento como investigador fizeram com que
seus olhos e dedos manipulassem, uma a uma, cada uma das folhas. Mas nem era
preciso procurar: o imponderável estava bem à vista! Corpos de presidiários
serviam de hospedeiros aos bioimplantes da Rimane. De acordo com o relatório
técnico em suas mãos a empresa tinha uma técnica para “matar” a personalidade
do hospedeiro a fim de que a do preservado pudesse assumir sem problemas.
_ Mas como vocês
convencem alguém a doar seu corpo para isso? – perguntou atônito.
_ Oferecendo dinheio
para condenados a perpétuas – respondeu num tom tranquilo sua auxiliar. Como
não sairiam vivos da prisão poderiam deixar a quantia para um ente querido ou
gastar com qualquer idiotice, como prostitutas, drogas e outras coisas dentro
da própria prisão.
“Dinheiro, claro” -
pensou o investigador.
Voltou a
concentrar-se nos documentos e dessa vez achou algo não surpreendente, uma
informação que sabia estar ali: a identidade do homem com a qual cruzara há
algumas semanas. Seu nome era Paolo Scorsa. Não o havia reconhecido de
imediato, pois não tinha sido o responsável direto por sua prisão há cerca de
15 anos; o conhecera pela TV. A história do moço era como a de tantos outros
carcamanos: para ascender na hierarquia de sua família, o na época jovem não se
furtava em executar os serviços mais sujos guardando os olhos de suas vítimas
antes de incinerar-lhes os restos mortais. Tinha algumas centenas de pares de
globos oculares quando foi preso.
“Preciso falar com
Paolo Scorsa”
Dessa vez ficou
evidente que sua auxiliar não estava ali realmente para apoiá-lo, mas para
vigiá-lo. Disse que aquilo estava fora de questão! "De jeito nenhum"
foram suas palavras exatas. Agora foi a vez de Luis Antônio, esse era seu nome,
manter-se tranquilo. Então para irritá-la, voltou à cantilena de que se
quisesse uma solução para o caso ele precisa falar com Paolo Scorsa. Novamente
teve seu pedido negado com o acréscimo da informação de que, naquele dia, o
sujeito já não era Scorsa e sim algum bilionário preservado num implante. Fora
com esse propósito que o presidiário fora trazido semana atrás à Rimane.
O policial disse que
mesmo dessa forma poderia obter informações importantes e que a entrevista não
precisa ser na forma de um interrogatório; ele seria capaz de obter as
informações que precisa numa conversa qualquer. Surpreendida a auxiliar tentou
argumentar que não teria desculpa para chamar quem quer que tivesse assumido o
corpo de volta à Rimane. Luis Antônio disse-lhe que o perservado poderia ser
trazido ali com a desculpa de receber orientações de como se prevenir de algum
ataque. Ela deveria dizer que o detetive encarregado do caso sabia tudo sobre
os atentados e lhe daria dicas importantes para sua segurança. O preservado,
continuou dizendo o policial, ficou “fora do ar” por um século e meio e
obviamente não sabe do risco que corre, mas é melhor ser orientado por vocês
que ouvir boatos de terceiros.
A moça saiu dizendo
que não tinha certeza se aquilo era correto, mas Luis Antônio sabia que em
poucos dias estaria conversando com o ex-carcamano. Ainda que não tivesse a
melhor ideia do que iria fazer no encontro…
De fato, duas semanas
depois, soube que teria sua chance com Vito Minetti, esse era o nome do novo
dono do corpo que fora de Paolo Scorza. "Que destino infeliz" pensou
Luis Antonio "o corpo de um carcamano recebeu a consciência de
outro!"
No dia do apontamento
foi revistado pela segurança do novo preservado e teve de concordar em deixar
sua arma. Conduzido à uma sala isolada da Rimane pediram que aguardasse a
chegada do "senhor Vito". Em torno da mesa retangular e comprida
vários guarda-costas o encaravam, um em especial posicionara-se às suas
costas de modo que Luis Antônio não podia vê-lo. O policial não se importava
que desconfiassem dele; já tinha feito muita coisa indecente para ter brios de
homem de moral ilibada.
Cerca de oito minutos
depois entrou Vito Minetti e Luis Antônio adiantou-se para ficar de pé ao que o
segurança atrás de si tentou impedir segurando pelo ombro. O policial com um
rápido giro puxou a mão do segurança imobilizando-a atrás de suas costas.
“Tire as mãos de mim,
garoto” disse o policial enquanto os colegas do segurança imobilizado partiam
para cima dele. Antes que isso ocorresse, porém, o empregador de todos, Vito
Minetti, ordenou:
“Deixem o detetive em
paz”
Passando direto pela
cadeira na cabeceira da mesa, o novo preservado foi direto para a porta que
dava acesso à sacada e com a cabeça fez um gesto para que um dos guarda-costas
a abrisse. Mas não foi à sacada ficando diante da porta aberta de modo que os
presentes na sala não podiam ver seu rosto. Sem apresentações ele se dirigiu a
Luis Antônio:
“Muito bem, policial,
estive dormindo por quase cento e cinquenta anos e tenho muitas coisa para ver.
Por isso, seja muito breve. Meu único interesse aqui é que que
preservados como eu têm sido atacados e o senhor parece ter informações que
podem garantir minha segurança.
Sem um plano prévio
Luis Antônio disse que ambos já tinha se encontrado, pelo menos, ele e o antigo
dono do corpo. Sem paciência, o novo administrador daquele organismo disse que
não se interessava pelo que o antigo dono daquela carcaça tinha feito: sua
existência tinha sido apagada e agora era ele quem estava ali.
O policial fez mais
duas ou três tentativas de extrair alguma informação do preservado, mas esse
não quis responder. Aparentando frustração, Vito Minetti suspirou fundo e
virou-se para a sala com a cabeça baixa. Depois de uma espera angustiante de
alguns segundos levantou a cabeça e olhou diretamente para Luis Antônio:
“Não temos mais nada
para conversar”
Nesse instante o
policial viu a si próprio dizendo a frase e em seu próximo pensamento percebeu
que estava agarrado a Vito Minetti empurrando-o em direção à sacada enquanto um
segurança puxava-o pelo pescoço; caíram todos. Deslocados em sua
trajetória inicial, Luis Antônio e Milleti aterrisaram numa varanda cinco
andares abaixo enquanto o responsável pelo desvio, o segurança, mais afortunado
teve a coluna partida no patamar da mesma varanda e continuou sua descida até
espatifar-se cinquenta andares abaixo.
Luis Antônio caiu de
costas e conseguia ver o corpo de Vito Minetti retorcido, rosto e tronco de
frente para o chão e pernas ao contrário, braços espamódicos. Então, enquanto o
conteúdo da cabeça do preservado se espalhava pela varanda, o policial viu-se
nascer num outro corpo, chorando séculos atrás pela perda de pais que não eram
os que conhecia nessa vida e desejando um amor que nunca conhecera. Ele tinha
certeza que aquelas lembranças eram da personalidade que fora implantada em
Paolo Scorza; sua própria personalidade quando fora batizado como Vito Milleti,
há mais de duzentos anos. Seus olhos ficaram sem luz, mas seus últimos traços
de calor foram esconder-se em seu coração que ensaia os batimentos finais. Ele estava feliz, pois sua alma, na verdade, metade com a qual nascera e
a metade complementar de Vito Milleti preservada a tanto, podiam voltar a ser
uma…
Já temos um primeiro rascunho e logo a criança nasce.
ResponderExcluirHahahahaha...três meses e dez dias depois consegui publicar o conto! Não foi tão logo assim para a criança nascer! Hahahaha...
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