Irritado
pelo pequeno robô que vinha atrás de si enxugando a água da chuva que escorria
de sua roupa, Erodes Gigitrio, lançou ao chão um cigarro com dois terço por
fumar. “Limpa isso também, estúpido!” Quase no mesmo instante se arrependeu,
ficou calculando se os maços que tinha consigo dariam para a noite toda.
Cruzava
a descomunal entrada da sede do complexo farmacéutico Rimane; vinha de um
prédio vizinho, que por esquecimento de algum arquiteto idiota, não estava
conectado ao local no qual acabara de adentrar e por isso estava ensopado.
Claro que nunca se importou com chuva alguma, sua vontade de esmurrar o mundo
era devida à certeza que se avolumava de ter feito uma péssima aposta ao
aceitar aquele caso.
Os
três assassinos que acabar de entrevistar – sim entrevistar, como não estava em
missão oficial do departamento de polícia, teve de pegar bem mais leve do que
fazia nos interrogatórios – não ajudaram em nada. Nenhum dos três se conhecia
ou aos seus respectivos alvos. Tinham ocupações distintas e não possuíam ficha
criminal e, até o segundo no qual acabaram com suas vítimas, poderiam ser
considerados cidadãos-modelo. Antes deles, outros quinze assassinatos foram
cometidos e os autores ou foram mortos pela polícia em confrontos ou se
suicidavam algum tempo depois de cumprirem seu intento. Uma vez que para as
forças da lei os crimes não tinham relação entre si, elas não perceberam a
tendência suicida dos criminosos, e quarto sujeitos já tinham se matado. Mas havia
um elo entre os diversos assassinatos e o pessoal da Rimane sabia, por isso,
seus funcionários tinham conseguido resgatar os três entrevistados antes que
tirassem a própria vida. Agora eles permaneciam sempre imobilizados com camisas
de força. Infelizmente para o policial, as duas mulheres e o homem que acabar
de entrevistar, só disseram coisas sem nexo como “me deixem ir até ela”
ou “preciso encontrá-la”!
A
dificuldade em digitar o código na catraca de acesso à parte restrita do
edifício o fez interromper seus devaneios. “Mas que droga! Como querem que um
cara na minha idade enxergue com tão pouca luz?”, pensou. Então o
investigador intuiu o motivo da iluminação menor que a usual: alguém a poucos
metros dali não queria ser visto. Um bando de seguranças também passava pelas
dezenas catracas e cercava um sujeito muito mal vestido. Erodes parou. Em
trinta anos de atividade policial ele tinha visto milhares de vagabundos,
contudo, jamais esquecia um rosto. Só não se lembrava o nome da criatura do
esgoto e nem de sua ficha criminal. Precisa descobri o porquê daquele cortejo.
Para
ele era a primeira vez algo promissor acontecia desde que fora instalado na
Rimane. Excitado, acendeu o primeiro de muitos cigarros que o acompanharam
enquanto passava as primeiras horas da noite explorando fotos nos arquivos
eletrônicos da polícia. Tudo em vão. Precisa de ajuda e Mônica, por uma razão
desconhecida, jamais se ausentava do prédio. Apanhou o telefone:
_
Precisamos conversar.
Minutos
depois ela abriu a porta sem bater prostrando-se sob o batente. Há exatos seis
meses ela fizera a mesma coisa e graças à capacidade que certos estímulos
sensoriais possuem de ativar memórias, o policial foi transportado até aquele
dia. Ele se lembra do espanto causado pelos profundos olhos verdes que pareciam
ter ação similar à do curare. Devia ter por volta de trinta anos, alta e seus
cabelos extremamente negros se opunham à pele alvíssima. Sempre de vestido; ela
possuía aquela sabedoria de que nada dá mais asas à imaginação de um homem que
aquela peça de vestuário sobre o corpo de uma bela mulher. Ah, e o cheiro? Bem,
ele não podia sentir o perfume dela, pois há muito o cigarro lhe cortara o
olfato, mas podia jurar que era sublime. Aquele corpo despertava algo fundo
nele e, chegou a pensar que se a tivesse conhecido mais jovem talvez
conseguisse resolver uma de suas mais graves deficiências…agora estava velho
demais. Então a garota apresentou-se e explicou o motivo daquele primeiro
contato.
_
Por que está me contando isso, moça? _ Faltam oito meses para me aposentar e
aqui existem policiais bem mais espertos que eu.
_
Você foi altamente recomendado – respondeu Mônica sentada de frente para a mesa
de Erodes. _ Na verdade, o que disseram foi “o homem certo”!
A
intenção daquelas palavras não podia ser mais explícita. O investigador Erodes
era muito admirado por alguns membros do departamento devido à sua capacidade
de livrar colegas de enrascadas complexas. Favores dados, favores retribuídos,
ele foi conseguindo resolver os crimes dos quais era encarregado. De fato, isso
danificou sua reputação com outros policiais, no caso, a maioria deles. Mas o
que realmente lhe interessava era que sua a família o visse como um bom
policial. Diferente do que se poderia supor, a importância dessa imagem não estava
relacionada à vaidade, não. Era algo muito mais particular: ele nunca fora bem
sucedido em nada! O que não se devia em absoluto à falta de talento para uma ou
outra atividade, mas por ter nascido com uma insatisfação tal que jamais se
interessava muito tempo por coisa alguma; sentia que algo lhe faltava. Se
permaneceu como policial isso deveu-se em primeiro lugar ao desinteresse e a
negociatas. E daí? O fato é que tinha imagem de bom policial para os que lhe
interessavam.
Quando
Mônica lhe pediu para investigar uma série de assassinatos com a vantagem de
saber que todas as vítimas foram submetidas a um tratamento farmacológico
contra o câncer na Rimane, ele decidiu apostar, pois aquilo seria o coroamento
de sua carreira; para os demais policiais, Erodes tinha sido destacado para um
trabalho qualquer. Ela lhe garantiu que ele teria acesso a todos os recursos
disponíveis empresa, pois ninguém menos que seu lendário dono, Gregório Idesti,
estaria por trás do pedido. O investigador sabia que se aquilo fosse verdade
ela era uma das raras pessoas do mundo a já ter visto o homem que nunca
aparecia em público. A partir daquele dia ele se transferira para uma sala de
arquivos no prédio onde se encontrava neste instante.
_
Então, ainda quer falar comigo? – perguntou a moça resgatando-lhe das
lembranças de meio ano.
_
Mônica, por que um criminoso entrou nesse prédio protegido por seguranças? –
disparou Erodes.
A
garota costumava ter respostas pré-fabricadas, agora, porém, permaneceu sem
reação. Tentando prolongar o aturdimento dela o policial acendeu um cigarro o
mais lentamente que pôde. Ofereceu um para Mônica que, diferente dessa vez,
nunca os recusava. A resposta improvisada foi a de que qualquer pessoa que
entrasse na companhia era algo que não lhe dizia respeito.
_
Escute aqui, desgraçada! – Eu não vou estragar minha carreira por causa de suas
mentiras! Não venha bancar o paciente que paga fortunas ao médico mas que
durante a consulta mente para esconder comportamentos reprováveis. Eu preciso
do diagnostico verdadeiro!
Sem
responder ela lhe estendeu a mão mostrando querer aquele cigarro. Tragou quase
metade dele olhando para o alto e Erodes intuiu que suas palavras ecoavam nela.
_
Preste atenção, se o que lhe disser sair daqui, nós dois…
_
Lembra? Eu sou o homem certo para o trabalho.
Mônica
deu uma nova tragada e pareceu mais aliviada por estar prestes a confessar-se
com um interlocutor de moral questionável. Ela não tinha alternativa, afinal,
também sabia que seu chefe estava para chegar em poucas horas e não ficaria
satisfeito quando soubesse dos assassinatos e da incapacidade dela em lidar com
eles. Também concluiu que Erodes aparentemente era mais musculoso que esperto e
não conseguiria nada sem que ela lhe relatasse informações confidenciais. A
moça foi até um arquivo a poucos metros da mesa do policial e abriu uma gaveta.
“Estava
aqui o tempo todo” – espantou-se o investigador.
_
Tome, eis aquilo que precisa saber – disse ela entregando-lhe uma pasta.
Ela
tinha apanhado um novo cigarro sobre a mesa do policial e um mão trêmula o
mantinha à boca. Seu rosto estava ainda mais sem sangue do que de costume.
Depois
de dar um primeira examinada nos documentos o policial não se conteve:
_
Você acha que isso é uma piada?
_
Infelizmente não é uma piada e ninguém mais que eu quer encontrar as respostas,
pois meu chefe tem tudo para ser o próximo alvo de algum louco assassino.
Ela
sentou-se, e pela primeira vez, a intuição do investigador dizia que a garota
não escondia algo, ainda que sua revelação se assemelhasse a mais deslavada
mentira jamais concebida. De acordo com ela, nenhuma das vítimas fizera
tratamento para o câncer. Gregório Idesti tinha criado um procedimento
revolucionário de preservação da vida: o armazenamento todas as emoções,
habilidades cognitivas, lembranças e demais aspectos da personalidade, enfim,
das faculdades mentais definidoras da pessoa, num circuito de computador.
Assim, mesmo com a morte da carne, a essência do indivíduo poderia ser reimplantada
num novo corpo sendo preservada eternamente. A técnica havia sido inventada no
século XXII, isto é, há mais de 200 anos, mas por determinação do próprio
inventor, nenhuma consciência preservada deveria ser reativada antes de
passados cento e quarenta e quarto anos da morte de seu antigo dono. Por
questões logísticas as primeiras pessoas foram ressuscitadas a cerca de dez
anos, desde então os assassinatos vinham ocorrendo.
_
Então seu chefe estava entre os primeiros a passar pelo procedimento? –
interrompeu Erodes.
Mônica
disse ter mentido sobre isso também: antes de morrer, Gregório tinha
explicitado uma data precisa para ser ressuscitado, por isso, outros
“eternizados” – era assim que Gregório tinha batizado a futura casta de
imortais – tiveram suas personalidades despertas antes da dele. Ela, como única
parente viva dele, era quem tinha decidido ir atrás de Erodes, alguém com um
passado, logo bom candidato a guardar segredo. Era urgente que o caso fosse
solucionado, pois a bem da verdade, havia chegado o tempo do fundador da Rimane
ser ressuscitado e ela não podia deixar que ele corresse perigo.
A
garota encerrou seu relato surreal com um toque macabro: o procedimento só
poderia ser realizado em receptáculos vivos. E para isso era preciso “matar” a
personalidade do antigo dono de um corpo para que o implante da personalidade
preservada pudesse ser feito; presidiários condenados à morte ou à prisão
perpétua estavam sendo utilizados. Eram informados de que se participassem de
um experimento teriam suas penas revistas, mas acabavam tendo suas existências
deletadas.
Então
o policial entendeu o que havia acontecido nas catracas, a ficha do homem mal
vestido estava ali. Seu nome era Paolo Scorsa. Erodes não o reconheceu
imediatamente, pois não tinha sido o responsável direto por sua prisão há cerca
de sete anos; o conhecera pela TV. Como tantos outros mafiosos menores ele
executava desafetos de sua família na esperança de galgar postos de liderança;
infelizmente para o carcamano, sua bela carreira foi interrompida pelo encarceramento.
_
Quero conversar com Paolo Scorsa.
Aquele
não era exatamente o pedido que Mônica achava que ouviria. Quase reflexamente
ela disse que aquele pedido não seria atendido. O motivo era simples: Paolo
Scorsa, àquela hora, já não existia. Ela tinha escolhido o jovem belo e
saudável – sua mente doentia não atrapalharia em nada mesmo – para ser ocupado
pelo próprio Gregório. Procedimento que devia estar sendo concluído ali mesmo
num dos laboratórios do subsolo.
_
Tudo bem. Eu só ia confirmar algo com Paolo, mas posso fazer melhor: posso
dizer a seu chefe o que ele precisa saber sobre os assassinatos.
Ela
retrucou que Gregório não sabia de nada sobre os assassinatos já que até então
estava morto e, que no devido tempo, ele seria informado sobre os crimes, sem
alarde. Além do mais, qual o sentido dele conversar com seu chefe se nada fora
descoberto! Tudo o que Erodes achava que pudesse saber podia ser dito a ela
mesma.
_
Precisa confiar em mim! Lembre-se, Mônica, você não tem alternativa. E eu
descobri algo, sim. Um dos três assassinos presos me deu uma informação e posso
explicar que motivo levou tantos inocentes a cometerem assassinatos.
Mônica
argumentou que aqueles três estavam completamente malucos e não tinham dito
nada de útil em dezenas de ocasiões anteriores. Entretanto, por mais que
tentasse extrair algo dele, o policial disse que só daria as informações para o
próprio Gregório Ideshi, mas que se ela preferisse, eles podiam abandonar a
coisa toda.
A
garota deixou a sala de arquivos dizendo não ter certeza se aquilo era correto.
Quando ficou só, Erodes sorriu maliciosamente pela certeza de que sua mentira
teria o efeito desejado. Ele faria o que fosse necessário para resolver o caso,
inclusive, tentar extrair algo do sujeito cuja invenção monstruosa estava na
origem de toda a confusão.
Cerca
de uma hora depois, quando estava quase amanhecendo, Erodes soube que teria sua
chance com Gregório Idesti. Mônica subiu com ele até alguns andares acima.
Parando pouco antes, indicou-lhe uma porta. Deixou-o. Um rapazola que servia de
segurança tomou sua automática e ambos passaram pela porta. No lugar havia
diversas dependências e ele foi conduzido até uma sala de reuniões. Antes de
sentar-se outro segurança veio em sua direção e dessa vez ele foi revistado. Tendo
passado no teste, pediram educadamente para que ele aguardasse a chegada do
senhor Idesti.
Em
torno da mesa retangular e comprida vários seguranças o encaravam, um
em especial, posicionara-se às suas costas. Cerca de oito minutos depois
entrou Gregório Idesti e o policial, num raro gesto de cortesia, adiantou-se
para ficar de pé ao que o segurança atrás de si tentou impedir-lhe segurando-o
pelo ombro. Com um rápido giro Erodes puxou o braço do rapaz para trás
imobilizando-o.
_
Tire as mãos de mim, garoto – disse enquanto os colegas do segurança
imobilizado partiam para cima dele. Então o recém-chegado exigiu:
_
Deixem-no em paz!
Ao
ouvir a voz, o policial sentiu o estômago revirar, sua boca começou a secar e a
saliva convertia-se numa massa pastosa. Graças aos olhos envelhecidos e à pouca
iluminação, Erodes tinha uma visão prejudicada do novo eternizado. Era sem
dúvida o corpo que pertencera ao jovem mafioso, contudo, agora trajava roupas
finas e tinha uma postura altiva. Passando direto pela mesa ele foi direto para
a porta que dava acesso à sacada e com a cabeça fez um gesto para que um de
seus rottweilers a abrisse. Não foi à sacada, porém, ficando diante da porta
aberta de costa para os presentes. Sem formalidades ele se dirigiu ao policial:
_
Estive ausente por mais de cento e cinquenta anos e imagino que o mundo esteja
muito diferente e haja muito para ver. Aquela bela jovem da qual sou
antepassado, Mônica, me convenceu, contudo, que eu precisava ouvi-lo. Algo
relacionado ao fato de eternizados terem sido assassinados e que o senhor teria
informações capazes de garantir minha segurança. Portanto, seja breve, e use
bem o privilégio único que estou lhe concedendo.
A
cada palavra o mal estar de Erodes aumentava. Sua boca estava agora
completamente seca e uma sede terrível queimava sua garganta. Mesmo assim ele
tentava concentrar-se e tentou a sorte dizendo que ambos já tinham se
encontrado, pelo menos ele e o antigo dono do corpo. Sem paciência, Gregório
Idesti respondeu que não se interessava pelas atividades do antigo dono daquela
carcaça; sua existência tinha sido apagada e agora era ele quem estava ali.
Mais
e mais nauseado além de sedento, o policial fez ainda duas tentativas de obter
alguma informação, mas não funcionou. Entediado, Gregório Idesti suspirou fundo
e virou-se para a sala. Olhando diretamente para Erodes:
_
Não temos mais nada para conversar.
No
mesmo instante a sede atingiu níveis insuportáveis, tudo parecia desidratado e
ele viu, ao encarar o antigo rosto de Paolo Scorza, que Gregório tinha roubando-lhe
o último filete de água da Terra. Ele precisa tomá-lo de volta e eliminar a
sensação que o consumia. O mal estar tornou-se tão profundo que o policial
imaginou-se desmaiando. Ao invés, uma atração inelutável o dominou e quando
tomou consciência de seu próximo ato estava agarrado ao chefe da Rimane
tentando extrair dele aquilo que lhe pertencia. Na luta, um segurança tentava
conter o investigador pelo pescoço enquanto este dominado por uma força
descomunal empurrava Idesti em direção à sacada. Caíram os três.
Deslocados pelo segurança da trajetória que os levaria à rua, policial e
eternizado aterrissaram numa sacada cinco andares abaixo enquanto o primeiro
teve a coluna partida no patamar da mesma sacada e continuou sua descida até
espatifar-se cinquenta andares abaixo.
Erodes
caiu de costas e conseguia ver o novo corpo de Gregório Idesti retorcido, rosto
e tronco de frente para o chão e pernas ao contrário, braços espasmódicos.
Então, enquanto o conteúdo da cabeça do eternizado se espalhava lentamente pela
sacada, o policial viu-se nascer num outro corpo, chorando séculos atrás pela
perda de pais que não eram os que conhecia nessa vida e tendo saudades de um
amor que nunca vira. Ele tinha certeza que aquelas lembranças eram da
personalidade que fora implantada em Paolo Scorza; sua própria personalidade
quando fora batizado como Gregório Idesti, há mais de duzentos anos. Seus olhos
foram esfriando e seus últimos traços de calor recolheram-se a seu coração que
ensaia os batimentos finais. Lá havia felicidade, pois sua alma, na verdade, a
metade com a qual nascera e a metade complementar de Gregório Idesti,
preservada há tanto, podiam voltar a ser uma.
Esse conto foi feito como uma adaptação NOIR do conto "Conhece-te a ti mesmo" abaixo para participar do desafio NOIR de novembro do site "Entrecontos". Como vocês verão pelo link abaixo, não deu muito certo e como diziam o Pica-pau "de volta à prancheta de desenho".
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