quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Morte na eternidade



Irritado pelo pequeno robô que vinha atrás de si enxugando a água da chuva que escorria de sua roupa, Erodes Gigitrio, lançou ao chão um cigarro com dois terço por fumar. “Limpa isso também, estúpido!” Quase no mesmo instante se arrependeu, ficou calculando se os maços que tinha consigo dariam para a noite toda.

Cruzava a descomunal entrada da sede do complexo farmacéutico Rimane; vinha de um prédio vizinho, que por esquecimento de algum arquiteto idiota, não estava conectado ao local no qual acabara de adentrar e por isso estava ensopado. Claro que nunca se importou com chuva alguma, sua vontade de esmurrar o mundo era devida à certeza que se avolumava de ter feito uma péssima aposta ao aceitar aquele caso.

Os três assassinos que acabar de entrevistar – sim entrevistar, como não estava em missão oficial do departamento de polícia, teve de pegar bem mais leve do que fazia nos interrogatórios – não ajudaram em nada. Nenhum dos três se conhecia ou aos seus respectivos alvos. Tinham ocupações distintas e não possuíam ficha criminal e, até o segundo no qual acabaram com suas vítimas, poderiam ser considerados cidadãos-modelo. Antes deles, outros quinze assassinatos foram cometidos e os autores ou foram mortos pela polícia em confrontos ou se suicidavam algum tempo depois de cumprirem seu intento. Uma vez que para as forças da lei os crimes não tinham relação entre si, elas não perceberam a tendência suicida dos criminosos, e quarto sujeitos já tinham se matado. Mas havia um elo entre os diversos assassinatos e o pessoal da Rimane sabia, por isso, seus funcionários tinham conseguido resgatar os três entrevistados antes que tirassem a própria vida. Agora eles permaneciam sempre imobilizados com camisas de força. Infelizmente para o policial, as duas mulheres e o homem que acabar de entrevistar, só disseram coisas sem nexo como  “me deixem ir até ela” ou “preciso encontrá-la”!

A dificuldade em digitar o código na catraca de acesso à parte restrita do edifício o fez interromper seus devaneios. “Mas que droga! Como querem que um cara na minha idade enxergue com tão pouca luz?”, pensou.  Então o investigador intuiu o motivo da iluminação menor que a usual: alguém a poucos metros dali não queria ser visto. Um bando de seguranças também passava pelas dezenas catracas e cercava um sujeito muito mal vestido. Erodes parou. Em trinta anos de atividade policial ele tinha visto milhares de vagabundos, contudo, jamais esquecia um rosto. Só não se lembrava o nome da criatura do esgoto e nem de sua ficha criminal. Precisa descobri o porquê daquele cortejo.

Para ele era a primeira vez algo promissor acontecia desde que fora instalado na Rimane. Excitado, acendeu o primeiro de muitos cigarros que o acompanharam enquanto passava as primeiras horas da noite explorando fotos nos arquivos eletrônicos da polícia. Tudo em vão. Precisa de ajuda e Mônica, por uma razão desconhecida, jamais se ausentava do prédio. Apanhou o telefone:

_  Precisamos conversar.

Minutos depois ela abriu a porta sem bater prostrando-se sob o batente. Há exatos seis meses ela fizera a mesma coisa e graças à capacidade que certos estímulos sensoriais possuem de ativar memórias, o policial foi transportado até aquele dia. Ele se lembra do espanto causado pelos profundos olhos verdes que pareciam ter ação similar à do curare. Devia ter por volta de trinta anos, alta e seus cabelos extremamente negros se opunham à pele alvíssima. Sempre de vestido; ela possuía aquela sabedoria de que nada dá mais asas à imaginação de um homem que aquela peça de vestuário sobre o corpo de uma bela mulher. Ah, e o cheiro? Bem, ele não podia sentir o perfume dela, pois há muito o cigarro lhe cortara o olfato, mas podia jurar que era sublime. Aquele corpo despertava algo fundo nele e, chegou a pensar que se a tivesse conhecido mais jovem talvez conseguisse resolver uma de suas mais graves deficiências…agora estava velho demais. Então a garota apresentou-se e explicou o  motivo daquele primeiro contato.

_ Por que está me contando isso, moça? _ Faltam oito meses para me aposentar e aqui existem policiais bem mais espertos que eu.

_ Você foi altamente recomendado – respondeu Mônica sentada de frente para a mesa de Erodes. _ Na verdade, o que disseram foi “o homem certo”!

A intenção daquelas palavras não podia ser mais explícita. O investigador Erodes era muito admirado por alguns membros do departamento devido à sua capacidade de livrar colegas de enrascadas complexas. Favores dados, favores retribuídos, ele foi conseguindo resolver os crimes dos quais era encarregado. De fato, isso danificou sua reputação com outros policiais, no caso, a maioria deles. Mas o que realmente lhe interessava era que sua a família o visse como um bom policial. Diferente do que se poderia supor, a importância dessa imagem não estava relacionada à vaidade, não. Era algo muito mais particular: ele nunca fora bem sucedido em nada! O que não se devia em absoluto à falta de talento para uma ou outra atividade, mas por ter nascido com uma insatisfação tal que jamais se interessava muito tempo por coisa alguma; sentia que algo lhe faltava. Se permaneceu como policial isso deveu-se em primeiro lugar ao desinteresse e a negociatas. E daí? O fato é que tinha imagem de bom policial para os que lhe interessavam.

Quando Mônica lhe pediu para investigar uma série de assassinatos com a vantagem de saber que todas as vítimas foram submetidas a um tratamento farmacológico contra o câncer na Rimane, ele decidiu apostar, pois aquilo seria o coroamento de sua carreira; para os demais policiais, Erodes tinha sido destacado para um trabalho qualquer. Ela lhe garantiu que ele teria acesso a todos os recursos disponíveis empresa, pois ninguém menos que seu lendário dono, Gregório Idesti, estaria por trás do pedido. O investigador sabia que se aquilo fosse verdade ela era uma das raras pessoas do mundo a já ter visto o homem que nunca aparecia em público. A partir daquele dia ele se transferira para uma sala de arquivos no prédio onde se encontrava neste instante.

_ Então, ainda quer falar comigo? – perguntou a moça resgatando-lhe das lembranças de meio ano.

_ Mônica, por que um criminoso entrou nesse prédio protegido por seguranças? – disparou Erodes.

A garota costumava ter respostas pré-fabricadas, agora, porém, permaneceu sem reação. Tentando prolongar o aturdimento dela o policial acendeu um cigarro o mais lentamente que pôde. Ofereceu um para Mônica que, diferente dessa vez, nunca os recusava. A resposta improvisada foi a de que qualquer pessoa que entrasse na companhia era algo que não lhe dizia respeito.

_ Escute aqui, desgraçada! – Eu não vou estragar minha carreira por causa de suas mentiras! Não venha bancar o paciente que paga fortunas ao médico mas que durante a consulta mente para esconder comportamentos reprováveis. Eu preciso do diagnostico verdadeiro!

Sem responder ela lhe estendeu a mão mostrando querer aquele cigarro. Tragou quase metade dele olhando para o alto e Erodes intuiu que suas palavras ecoavam nela.

_ Preste atenção, se o que lhe disser sair daqui, nós dois…

_ Lembra? Eu sou o homem certo para o trabalho.

Mônica deu uma nova tragada e pareceu mais aliviada por estar prestes a confessar-se com um interlocutor de moral questionável. Ela não tinha alternativa, afinal, também sabia que seu chefe estava para chegar em poucas horas e não ficaria satisfeito quando soubesse dos assassinatos e da incapacidade dela em lidar com eles. Também concluiu que Erodes aparentemente era mais musculoso que esperto e não conseguiria nada sem que ela lhe relatasse informações confidenciais. A moça foi até um arquivo a poucos metros da mesa do policial e abriu uma gaveta.

“Estava aqui o tempo todo” – espantou-se o investigador.

_ Tome, eis aquilo que precisa saber – disse ela entregando-lhe uma pasta.

Ela tinha apanhado um novo cigarro sobre a mesa do policial e um mão trêmula o mantinha à boca. Seu rosto estava ainda mais sem sangue do que de costume.

Depois de dar um primeira examinada nos documentos o policial não se conteve:

_ Você acha que isso é uma piada?

_ Infelizmente não é uma piada e ninguém mais que eu quer encontrar as respostas, pois meu chefe tem tudo para ser o próximo alvo de algum louco assassino.

Ela sentou-se, e pela primeira vez, a intuição do investigador dizia que a garota não escondia algo, ainda que sua revelação se assemelhasse a mais deslavada mentira jamais concebida. De acordo com ela, nenhuma das vítimas fizera tratamento para o câncer. Gregório Idesti tinha criado um procedimento revolucionário de preservação da vida: o armazenamento todas as emoções, habilidades cognitivas, lembranças e demais aspectos da personalidade, enfim, das faculdades mentais definidoras da pessoa, num circuito de computador. Assim, mesmo com a morte da carne, a essência do indivíduo poderia ser reimplantada num novo corpo sendo preservada eternamente. A técnica havia sido inventada no século XXII, isto é, há mais de 200 anos, mas por determinação do próprio inventor, nenhuma consciência preservada deveria ser reativada antes de passados cento e quarenta e quarto anos da morte de seu antigo dono. Por questões logísticas as primeiras pessoas foram ressuscitadas a cerca de dez anos, desde então os assassinatos vinham ocorrendo.

_ Então seu chefe estava entre os primeiros a passar pelo procedimento? – interrompeu Erodes.
Mônica disse ter mentido sobre isso também: antes de morrer, Gregório tinha explicitado uma data precisa para ser ressuscitado, por isso, outros “eternizados” – era assim que Gregório tinha batizado a futura casta de imortais – tiveram suas personalidades despertas antes da dele. Ela, como única parente viva dele, era quem tinha decidido ir atrás de Erodes, alguém com um passado, logo bom candidato a guardar segredo. Era urgente que o caso fosse solucionado, pois a bem da verdade, havia chegado o tempo do fundador da Rimane ser ressuscitado e ela não podia deixar que ele corresse perigo.

A garota encerrou seu relato surreal com um toque macabro: o procedimento só poderia ser realizado em receptáculos vivos. E para isso era preciso “matar” a personalidade do antigo dono de um corpo para que o implante da personalidade preservada pudesse ser feito; presidiários condenados à morte ou à prisão perpétua estavam sendo utilizados. Eram informados de que se participassem de um experimento teriam suas penas revistas, mas acabavam tendo suas existências deletadas.

Então o policial entendeu o que havia acontecido nas catracas, a ficha do homem mal vestido estava ali. Seu nome era Paolo Scorsa. Erodes não o reconheceu imediatamente, pois não tinha sido o responsável direto por sua prisão há cerca de sete anos; o conhecera pela TV. Como tantos outros mafiosos menores ele executava desafetos de sua família na esperança de galgar postos de liderança; infelizmente para o carcamano, sua bela carreira foi interrompida pelo encarceramento.

_ Quero conversar com Paolo Scorsa.

Aquele não era exatamente o pedido que Mônica achava que ouviria. Quase reflexamente ela disse que aquele pedido não seria atendido. O motivo era simples: Paolo Scorsa, àquela hora, já não existia. Ela tinha escolhido o jovem belo e saudável – sua mente doentia não atrapalharia em nada mesmo – para ser ocupado pelo próprio Gregório. Procedimento que devia estar sendo concluído ali mesmo num dos laboratórios do subsolo.

_  Tudo bem. Eu só ia confirmar algo com Paolo, mas posso fazer melhor: posso dizer a seu chefe o que ele precisa saber sobre os assassinatos.

Ela retrucou que Gregório não sabia de nada sobre os assassinatos já que até então estava morto e, que no devido tempo, ele seria informado sobre os crimes, sem alarde. Além do mais, qual o sentido dele conversar com seu chefe se nada fora descoberto! Tudo o que Erodes achava que pudesse saber podia ser dito a ela mesma.

_ Precisa confiar em mim! Lembre-se, Mônica, você não tem alternativa. E eu descobri algo, sim. Um dos três assassinos presos me deu uma informação e posso explicar que motivo levou tantos inocentes a cometerem assassinatos.
Mônica argumentou que aqueles três estavam completamente malucos e não tinham dito nada de útil em dezenas de ocasiões anteriores. Entretanto, por mais que tentasse extrair algo dele, o policial disse que só daria as informações para o próprio Gregório Ideshi, mas que se ela preferisse, eles podiam abandonar a coisa toda.

A garota deixou a sala de arquivos dizendo não ter certeza se aquilo era correto. Quando ficou só, Erodes sorriu maliciosamente pela certeza de que sua mentira teria o efeito desejado. Ele faria o que fosse necessário para resolver o caso, inclusive, tentar extrair algo do sujeito cuja invenção monstruosa estava na origem de toda a confusão.

Cerca de uma hora depois, quando estava quase amanhecendo, Erodes soube que teria sua chance com Gregório Idesti. Mônica subiu com ele até alguns andares acima. Parando pouco antes, indicou-lhe uma porta. Deixou-o. Um rapazola que servia de segurança tomou sua automática e ambos passaram pela porta. No lugar havia diversas dependências e ele foi conduzido até uma sala de reuniões. Antes de sentar-se outro segurança veio em sua direção e dessa vez ele foi revistado. Tendo passado no teste, pediram educadamente para que ele aguardasse a chegada do senhor Idesti.
Em torno da mesa retangular e comprida vários seguranças o encaravam, um em especial, posicionara-se às suas costas. Cerca de oito minutos depois entrou Gregório Idesti e o policial, num raro gesto de cortesia, adiantou-se para ficar de pé ao que o segurança atrás de si tentou impedir-lhe segurando-o pelo ombro. Com um rápido giro Erodes puxou o braço do rapaz para trás imobilizando-o.

_ Tire as mãos de mim, garoto – disse enquanto os colegas do segurança imobilizado partiam para cima dele. Então o recém-chegado exigiu:

_ Deixem-no em paz!

Ao ouvir a voz, o policial sentiu o estômago revirar, sua boca começou a secar e a saliva convertia-se numa massa pastosa. Graças aos olhos envelhecidos e à pouca iluminação, Erodes tinha uma visão prejudicada do novo eternizado. Era sem dúvida o corpo que pertencera ao jovem mafioso, contudo, agora trajava roupas finas e tinha uma postura altiva. Passando direto pela mesa ele foi direto para a porta que dava acesso à sacada e com a cabeça fez um gesto para que um de seus rottweilers a abrisse. Não foi à sacada, porém, ficando diante da porta aberta de costa para os presentes. Sem formalidades ele se dirigiu ao policial:

_ Estive ausente por mais de cento e cinquenta anos e imagino que o mundo esteja muito diferente e haja muito para ver. Aquela bela jovem da qual sou antepassado, Mônica, me convenceu, contudo, que eu precisava ouvi-lo. Algo relacionado ao fato de eternizados terem sido assassinados e que o senhor teria informações capazes de garantir minha segurança. Portanto, seja breve, e use bem o privilégio único que estou lhe concedendo.

A cada palavra o mal estar de Erodes aumentava. Sua boca estava agora completamente seca e uma sede terrível queimava sua garganta. Mesmo assim ele tentava concentrar-se e tentou a sorte dizendo que ambos já tinham se encontrado, pelo menos ele e o antigo dono do corpo. Sem paciência, Gregório Idesti respondeu que não se interessava pelas atividades do antigo dono daquela carcaça; sua existência tinha sido apagada e agora era ele quem estava ali.

Mais e mais nauseado além de sedento, o policial fez ainda duas tentativas de obter alguma informação, mas não funcionou. Entediado, Gregório Idesti suspirou fundo e virou-se para a sala. Olhando diretamente para Erodes:

_  Não temos mais nada para conversar.

No mesmo instante a sede atingiu níveis insuportáveis, tudo parecia desidratado e ele viu, ao encarar o antigo rosto de Paolo Scorza, que Gregório tinha roubando-lhe o último filete de água da Terra. Ele precisa tomá-lo de volta e eliminar a sensação que o consumia. O mal estar tornou-se tão profundo que o policial imaginou-se desmaiando. Ao invés, uma atração inelutável o dominou e quando tomou consciência de seu próximo ato estava agarrado ao chefe da Rimane tentando extrair dele aquilo que lhe pertencia. Na luta, um segurança tentava conter o investigador pelo pescoço enquanto este dominado por uma força descomunal empurrava Idesti em direção à sacada.  Caíram os três. Deslocados pelo segurança da trajetória que os levaria à rua, policial e eternizado aterrissaram numa sacada cinco andares abaixo enquanto o primeiro teve a coluna partida no patamar da mesma sacada e continuou sua descida até espatifar-se cinquenta andares abaixo.

Erodes caiu de costas e conseguia ver o novo corpo de Gregório Idesti retorcido, rosto e tronco de frente para o chão e pernas ao contrário, braços espasmódicos. Então, enquanto o conteúdo da cabeça do eternizado se espalhava lentamente pela sacada, o policial viu-se nascer num outro corpo, chorando séculos atrás pela perda de pais que não eram os que conhecia nessa vida e tendo saudades de um amor que nunca vira. Ele tinha certeza que aquelas lembranças eram da personalidade que fora implantada em Paolo Scorza; sua própria personalidade quando fora batizado como Gregório Idesti, há mais de duzentos anos. Seus olhos foram esfriando e seus últimos traços de calor recolheram-se a seu coração que ensaia os batimentos finais. Lá havia felicidade, pois sua alma, na verdade, a metade com a qual nascera e a metade complementar de Gregório Idesti, preservada há tanto, podiam voltar a ser uma.

3 comentários:

  1. Esse conto foi feito como uma adaptação NOIR do conto "Conhece-te a ti mesmo" abaixo para participar do desafio NOIR de novembro do site "Entrecontos". Como vocês verão pelo link abaixo, não deu muito certo e como diziam o Pica-pau "de volta à prancheta de desenho".

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  2. http://entrecontos.com/2013/11/12/morte-na-eternidade-dick-deckard/#more-6483

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  3. http://entrecontos.com/2013/12/06/resultados-do-desafio-noir/

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