quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O Próximo passo



Acordo em meu quarto e me assusto ao ver Carolina com a cabeça sobre meu peito!

_ Mas você está…

Ela pós o indicador direito sobre minha boca para que eu me calasse.

_ Amor – disse ela – não se preocupe, nunca vou te abandonar. Só quero que fiquemos juntos.

_ Carol, eu não posso. Ainda não estou pronto para um passo desses.

Então Carolina começou a gargalhar abrindo a boca de forma tão exagerada que a parte de baixo com a mandíbula formava um ângulo de 90o  com a parte do maxilar acima e, em meio a tudo isso, apenas ambas articulações temporomandibulares mantinham juntas as duas metades de sua cabeça. Interrompendo seu riso demoníaco ela disse:

_ Amor, você não vê? Não está pronto agora e nem nunca mais estará para dar qualquer outro passo.

Ela baixou seus olhos para minha perna direita e tocou-a de modo carinhoso e suave como sempre fazia com minhas pernas; segundo Carolina aquelas eram as pernas mais lindas do mundo. Assim que senti seu toque uma dor lancinante invadiu a parte interna dos dedos de meu pé e começou a subir dividindo-se no perônio e na fíbula e voltando a unir-se no fêmur parando no terço superior da coxa. Dos ossos a dor passou a impregnar a carne, queimando-a, e tive a certeza que o tecido seria assado.

Acordei  com o som de meu próprio grito. Carolina, suas palavras, o toque, tudo fora um sonho. Mas não a dor insuportável, esta cruzara o portal entre o inconsciente gerador de sonhos e a realidade da vigília. Eu podia sentir aquele tormento em cada célula do meu membro inferior direito. Em cada célula de uma perna que eu não tinha mais!

E foi dessa forma que terminou a primeira noite na qual passei em casa depois de quatro meses hospitalizado por causa de um sério acidente motociclístico que me deixara aleijado.

Em agonia ligo para o doutor Marcelo, um velho amigo de papai que tornou-se meu médico desde que vim ao mundo e cuja relação era mais intensa que àquela que gozava com meu genitor. Três toques depois ele atende. Sem ver importância naquilo, nada lhe digo sobre o sonho, apenas sobre a dor violentíssima que começara de repente numa perna que não estava lá. Ele pareceu surpreso, mas ao contrário do que eu supus não pela ocorrência da dor num órgão inexistente, mas por tal fato ter ocorrido somente agora.

Conforme ele me explicou, cerca de 50% a 80% dos indivíduos que sofriam amputações apresentavam uma dor de etiologia não muito bem conhecida na parte amputada com se ela ainda ali estivesse e, por isso, a condição era chamada de “dor do membro fantasma”. Os melhores palpites davam conta que a bizarrice surgisse por alterações na função dos sistemas nervoso central e periférico. Contudo, o comum era que a dor surgisse logo após o trauma e, não como no meu caso, meses depois do incidente.

Por fim, ele me disse que me enviaria remédios, na verdade seriam várias categorias deles já que o desconhecimento sobre as causas da dor não tinha permitido até aquele momento que a comunidade médica estabelecesse um protocolo de tratamento; nos apoiaríamos na velha tentativa e erro para aplacar o mal. Por isso mesmo, eu deveria seguir rigorosamente as instruções de como tomar cada tipo de fármaco e, assim que pudesse, ele viria me consultar em casa. Enquanto isso, sugeriu que eu ficasse na banheira com água quente para aliar a dor.

Acredite ou não, passei o dia na banheira e adormeci lá apesar de a água eventualmente ter esfriado eu sequer ter percebido indo direto até a manhã seguinte. Foi quando a campainha do apartamento me acordou. Depois da ridícula cena de pular por todo o lugar com apenas uma toalha presa à cintura, consegui abrir a porta com muita dificuldade e vi uma caixa de um conhecido serviço de entregas expressas junto a meu pé esquerdo; nada de precisar assinar ou mesmo de entregador. Tinha sido enviada por Marcelo, conforme prometido.

Momentos antes de fechar a porta para voltar a minha clausura, a velha senhora que morava no apartamento do lado e não conseguia deslocar-se para onde quer que fosse sem um cilindro de oxigênio e uma máscara, apareceu. Ela passou a alternar suas profundas e sôfregas inspirações com a retirada da máscara durante as expirações a fim de dirigir-me todos os impropérios que conhecia. Na essência, tratava-se de uma reclamação por eu ter feito barulho a noite inteira com meus passos arrastados pelo apartamento. Eu não costumava revidar a ataques como aqueles, vindos de alguém que precisa de atenção e piedade. Contudo, parece que com a perda da perna minha paciência também foi amputada e comecei dizendo que ela estava louca e terminei por xingá-la de modo dão violento que ela rapidamente desapareceu dentro de seu apartamento escuro.

Tornei a voltar minha atenção para caixa e fechei a porta atrás de mim. No mesmo instante que abri o pacote pensei que se a caixa de Pandora tivesse sua antítese esta última estava em minhas mãos naquele momento. Lá dentro, uma diversidade de comprimidos de vários formas e tamanhos: anticonvulsionantes, antidepressivos tricíclicos, inibidores da recaptação de serotonina, anestésicos locais como lidocaína, anti-inflamatórios não esteroides e até mesmo beta-bloqueadores. Como já estava bem acostumado com os garranchos de meu médico, não tive dificuldade em ler o bilhete no qual ele me advertia (mais uma vez!) para que consumisse os remédios conforme ele prescrevera ali. Eram medicamentos perigosos. Podiam causar sedação, confusão, queda de pressão dentre outras dezenas de efeitos colaterais potencialmente danosos. Mas, acima de tudo, eu não deveria beber enquanto tomasse aquelas coisas. Pobre doutor Marcelo, somente alguém que nos tem como filho é capaz de fazer tudo, inclusive perder a objetividade para nos aliviar o sofrimento. Era a única forma de entender como ele teria acreditado que eu iria fazer o que ele me pedia. De qualquer modo, a encomenda não poderia ter chegado num momento mais propício, pois a dor que parecia me dar trégua durante o sono começava a sinalizar sua volta com todo seu vigor.

Tomei diversas pílulas com um pouco de whisky para que tudo descesse melhor. Os medicamentos aliviaram bastante a dor, mas ela ainda estava lá. Por isso, liguei a televisão para, quem sabe, fazer com que eu me esquecesse daquilo que restava da dor original.

Algum tempo depois estava jogado no sofá quando uma voz me chamou a atenção, era Carolina. Ela simplesmente apareceu sentada ao meu lado e trazia o que fora minha perda direita, agora uma massa de tecidos e ossos esmigalhados, sobre seu colo. Provavelmente vendo meu espanto ela disse:

_ Eu a estou guardando para você – referindo-se ao membro. Estamos lhe esperando – ela continuou enquanto abria a mão direita e um minúsculo par de sapatos brancos de bebê apareceu.

Também disse que eu não me preocupasse com a  velha ou qualquer outra pessoa, pois ela e “nossa criança” por nascer não deixariam que ninguém me causasse mal. Nesse momento, olhei para o corredor que dava acesso à porta principal do apartamento e me lembrei que ali mesmo, quatro meses atrás, ela tinha me dito que estava cansada de dormir de vez em quando no meu apartamento. Insistia que precisávamos ficar juntos porque as coisas iriam mudar. Não quis saber o que ela quis dizer com aquilo e peguei meu capacete para ir à faculdade de engenharia. Carolina, disse que poderíamos conversar mais tarde, e que precisava de uma carona. Concordei tendo como intenção secreta não mais procurá-la e proibir, junto aos porteiros, seu acesso ao meu apartamento. Entretanto, uma caminhonete que não deu seta ao mudar de faixa acertou minha Harley Davidson e mudou meus planos: levou Carolina que, por sua vez, parece ter levado consigo tanto minha perna e agora sei, quanto nossa cria sobre a qual eu nada quis saber.

Batidas violentas na porta me fizeram pular no sofá, na teve a programação acusava que passara a noite ali mesmo. Parecia que minha vida agora consistia em não perceber quando dormia e ser acordado pela campainha ou por batidas na porta. Depois do conhecido calvário para atingir a porta eu a abri. Na minha frente um policial civil. Ele me olhou de cima a baixo como se estivesse olhando um troço. Sinalizando com o nariz para frente e para trás indicou-me o coto que era a única evidência que eu já possuíra uma perna ali. O curativo que logo não precisaria mais ser feito posto que o coto estava quase completamente cicatrizado, agora estava encharcado de sangue.

Parecendo menos apressado que quando tinha batido em minha porta ele me perguntou se eu tinha ouvido alguma coisa e onde passara a noite.  Perguntei o motivo da questão e o policial respondeu que minha vizinha do lado, Odete Moura (eu nunca soubera que aquele era o nome da velha!) tinha sido encontrada pela diarista com uma tesoura transpassada no pescoço. Eu disse que nada ouvira por ter passado a noite completamente drogado por diversos analgésicos e antidepressivos (por pudor omiti o whisky). Ele não pareceu chocado e também deve ter imaginado que o homem incompleto que eu era agora não seria capaz de matar ninguém. Ele agradeceu e disse que provavelmente tinha sido suicídio já que a diarista havia lhe confidenciado que dona Odete era paciente terminal de um câncer qualquer e não havia sinais de arrombamento; a infeliz fora enviada pelos médicos para casa apenas para  aguardar o inevitável. “Parece que ela não teve paciência, não é?”  disse o policial querendo-se engraçado.

Antes de se despedir ele olhou por sobre meu ombro para dentro do apartamento. Voltou a me encarar e tive a impressão de que além de me considerar um troço incompleto agora achava que eu também era maluco. Em seguida, virou as costas e se foi. Apoiando-me na porta com grande dificuldade consegui voltar o corpo para dentro do apartamento e, então, entendi a expressão de incredulidade no último olhar do policial: as muitas dezenas de pares de sapato que Carolina tinha e, que guardava num armário embutido no closet de meu quarto, estavam alinhados em fila indiana desde seu local de descanso até a sacada do apartamento! A visão me trouxe a maldita dor do membro fantasma e me obrigou a consumir mais analgésicos, antidepressivos e álcool. Ainda assim resolvi dar um jeito naquilo. Quando acabei de colocar todos os pares de sapato em vários sacos de lixo e deixá-los no corredor, meu joelho esquerdo estava inchado pelas centenas de saltos e a axila direita estava bastante machucada pela pressão e atrito prolongados causados pela muleta.

O telefone tocou. Embora não quisesse, acabei atendendo. Era o doutor Marcelo se desculpando por não poder vir naquela manhã, pois tinha surgido uma operação de emergência. Talvez porquê eu estivesse com a capacidade de julgamento comprometida pelas muitas drogas, acabei mencionando que estava tendo visões com Carolina; sobre a velha vizinha cujo fim minha namorada morta apareceu sugerir de modo ameaçador; sobre meus “apagões” e demais coisas estranhas que estavam acontecendo. Complementei dizendo que já ouvira falar que, durante a carreira, um médico acabava lidando muito com o “inexplicável”. Quis saber o que ele achava daquilo. Marcelo me ouviu calmamente e perguntou:

_ Você está tomando alguma bebida com os remédios que lhe passei?

Neguei obviamente. Então, como hipóteses alternativas ele me disse que eu tinha passado por um grave acidente e perdido a mulher que amava (eu nunca lhe confidenciara o que realmente sentia por ela). Logo, os sonhos e a desconexão com a realidade eram provavelmente resultado disso e, talvez, também dos remédios. Como se não tivesse ouvido nada do que ele falou perguntei:

_ Marcelo, por favor, me diga. A necropsia revelou se Carolina estava grávida?

A segurança com que o doutor costumava explicar todos os eventos verificáveis pareceu sumir. Houve um silêncio prolongado seguido de duas ou três tentativas de formular os pensamentos em forma de frases. Por fim, não sei o motivo (afinal se ele mentisse quem saberia?) acabou admitindo que sim; não me contara antes a pedido de meu pai. Pai este que  - conforme me dizia agora Marcelo – me acompanhara no hospital durante todo o tempo que permaneci em coma, mas que por orgulho preferiu continuar sem falar comigo (coisa que já estávamos fazendo há mais de seis anos), e foi embora assim que dei sinais que recobraria a consciência.

Mencionei que fora Carolina quem me contara sobre o bebê em sonho e ele, com sua eloquência já plenamente reestabelecida, disse que provavelmente eu já tivesse percebido aquilo inconscientemente e o sonho nada mais foi que uma forma dessa parte de minha mente revelar-se. Com essa tirada junguiana disse que precisa ir, mas viria me ver tão logo terminasse a tal cirurgia, viria não importaria as horas.

Naquela terceira noite nenhum remédio ou whisky foi capaz de aliviar minha dor de membro fantasma. Eu tão pouco fui capaz de dormir. Por volta das nove da noite estava deitado em minha cama quando ouvi um barulho muito sutil como o choro de uma criança. Apanhei a muleta, mas ao invés de apoiar-me nela, carreguei-a na mão direita como se fosse um porrete e fui pulando até a sala com meu joelho esquerdo inchado. Embora eu não me lembrasse de ter deixado a porta de vidro que dava acesso à sacada aberta, a mesma estava escancarada. Já no chão da sacada, aquele minúsculo par de sapatos de bebê que eu vira antes, tinha sido cuidadosamente depositado.

“Meu bebe” disse sem me dar conta do despropósito daquilo que acontecia no momento ou do que eu dizia.

Deixe-me cair sentado no chão e os apanhei. Agora eu tremia e chorava, mas não era pela dor, não sei pelo que era. Foi quando um vapor frio atingiu minha nuca. Era como se o vapor de água de alguém falando atrás de mim estivesse me alcançando.

_ Amor, venha, não nos faça esperar – dizia a voz, a voz de minha namorada morta Carolina.

De algum modo eu soube para onde deveria ir a fim de poder encontra-la: para além dos limites da sacada; para um salto do décimo terceiro andar. Sem que eu movesse um músculo a dor tornou-se muito, muito intensa assim como meu choro e minhas lamentações. Pedi-lhe perdão por minha covardia. A covardia que a tinha matado e a nossa criança. A fala de Carolina era doce e não tinha lugar para rancor, ela só dizia que me aguardava e que eu precisava ir a seu encontro.

Nesse instante algo começou a me empurrar em direção ao precipício à minha frente e comecei a tentar segurar-me desesperadamente. Não havia ninguém atrás de mim só a pressão que me empurrava. Ao mesmo tempo a voz de Carolina tinha aumentado tanto que eu parecia sentir sangue sair por meus ouvidos machucados. “Dê o passo! Dê o passo!”, ela ordenava. Minhas longas unhas por cortar quebravam deixando rastros de sangue no chão e, com minha perna esquerda, eu fazia força contra a murada que me separava da queda. Comecei a gritar por socorro.

Eu já havia lido que em situações de perigo extremo as pessoas eram capazes de feitos incríveis como arrancar portas de carros e levantar pesos descomunais. Acho que foi graças a essa reserva de força oculta em alguma parte de mim que consegui me arrastar no sentido oposto daquilo que me puxava e alcancei a porta do apartamento. Quanto girei a maçaneta os gritos de Carolina bem como a misteriosa força de tração desapareceram. Desesperado pulei para o machado de incêndio preso à parede e quebrei o vidro que o separava de mim.

Passaram-se vários minutos e fui me acalmando com o machado sobre o colo. Tomara a decisão de esperar Marcelo ali. Não voltaria a entrar naquele maldito apartamento no qual Carolina passara seus últimos dias comigo. Se fosse preciso, imploraria perdão a meu pai e voltaria a morar com ele. Subitamente, percebi duas mãos me puxando pela perna esquerda em grande velocidade para dentro do apartamento rumo à sacada e, quase não consegui manter o machado comigo.

Não sei por quanto tempo fiquei lutando antes de apagar. Então ouvi a voz conhecida:

_ Ricardo, oh meu Deus! Acorde!

_ Doutor Marcelo? Acho que a retalhei bem, mas não tive ângulo para cortar o osso. Fiz um torniquete para estancar o sangue…Que bom que está aqui! Pode me ajudar a acabar de cortar minha perna esquerda? Por favor? Eu ainda não estou pronto para o próximo passo…


3 comentários:

  1. Conto com a temática "fantasma" para o desafio entrecontos de dezembro de 2013. O resultado abaixo.

    ResponderExcluir
  2. http://entrecontos.com/2014/01/16/resultados-do-desafio-fantasmas/comment-page-1/#comment-6290

    ResponderExcluir
  3. Frank...muito forte este conto...mas me fez pensar naquelas pessoas que não agem por não estarem prontas...

    ResponderExcluir