terça-feira, 29 de outubro de 2013

O primeiro pensamento




Há séculos a Ciência foi elevada à condição de instância suprema no julgamento de todas as questões humanas. Como um fruto que amadureceu nesse ambiente, Ronaldo, em sua juventude, foi um fiel depositário dessa ideologia. O reconhecimento que esperava em troca de sua fidelidade foi, contudo, substituído pelo desprezo de seus antigos colegas de universidade. Não importou o quando ele foi capaz de expressar- seguindo todos os fundamentos do método científico; não havia tolerância na Academia para com suas hipóteses sobre viagens no tempo. A demissão seguiu-se ao isolamento e, em sua raiva, ele tomou como meta provar que tinha razão.

Passadas três décadas, reconhecia que suas frustrações com a Ciência o permitiram entender que precisava buscar inspiração em outras fontes. Se por um lado os cientistas estavam certos ao afirmarem que voltar no tempo era impossível já que fatos passados desapareciam para sempre, por outro, erraram de forma miserável ao não considerarem que todo evento deixa “rastros”. Ao investigar documentos indianos milenares tais como Os Vedas e o Scrimad Bhagavatam, Ronaldo descobriu que neles, a estrutura do universo e toda sua física estavam descritas de modo preciso! Havia mais: eles afirmavam que o pensamento era uma forma de energia! As investigações também acabaram por demonstrar que a crença do “pensamento influenciando o mundo físico” era mais séria do que se poderia imaginar: pensamentos consistiam numa forma de energia passível de detecção e mensuração!

Graças a essa descoberta ele construiu um dispositivo capaz de detectar energias de pensamento e voltar até sua fonte, isto é, o passado!  Não conseguiu pensar em nenhum nome melhor que “máquina do tempo” para sua criação. Primeiro ela fora testada com objetos inanimados e finalmente com animais. A prova de que tinham voltado no tempo dava-se a partir da análise do pó ou pólen que ficasse à “cobaia” em questão. Faltava testá-la com seres humanos, o que deveria levar muito tempo para ser seguro, mas infelizmente, os acontecimentos não iriam permitir.

Há muitos anos, cientistas de todo o mundo concordaram que só havia um jeito de evitar a degradação do planeta: eliminar desmatamentos, emissões de carbono, energia nuclear e todas as formas de contaminação da Natureza.  Apesar disso, nos últimos cinquenta anos nunca foram registrados tantos terremotos, furacões, tsunamis, vulcões ativos ou incêndios espontâneos de grandes proporções. Existiam ainda estranhos relatos sobre barulhos ensurdecedores durantes muitas dessas catástrofes. Se para a maioria das pessoas isso não importava, afinal, elas continuavam levando suas vidas e acreditando que, com o tempo, as medidas de preservação fariam com que o planeta se estabilizasse (e seria possível instaurar o paraíso na Terra!). Para Ronaldo o planeta estava morrendo. Não porquê as medidas corretivas tivessem começado tarde demais. Pelo contrário, a Terra ainda não estava tão comprometida quando as mesmas foram implantadas. Sua intuição lhe dissera que havia algo mais! E que nenhum cientista fora capaz de perceber!

Semelhante aos que diante da morte dizem rever sua vida inteira num instante, a crença de que o fim do mundo estava próximo, fez Ronaldo desejar ser capaz de repassar toda a história humana para si quando chegasse a hora. Por isso, mesmo confrontado pela possibilidade de visitar qualquer época, Ronaldo não hesitou decidir-se por usar sua máquina do tempo para detectar as origens do homem, pelo menos do ser humano racional, já que rastrearia o primeiro pensamento. Apostava consigo que as primeiras energias produzidas pelo pensamento e detectadas seriam de por volta de dois milhões e trezentos mil anos, época de surgimento do primeiro ser pertencente ao gênero Homo, o Homo habilis.

Uma coisa importante revelada pelas investigações de Ronaldo foi que qualquer pensamento, sobre eventos do mundo real ou sobre fatos imaginários, geravam energia. Tentar voltar no tempo em busca de uma fantasia qualquer seria desastroso (isso provavelmente explicava o motivo de alguns animais não terem voltado das viagens de teste). Então, como saber que determinada energia de pensamento era sobre um evento histórico? Foi quando percebeu que se queria ter certeza de voltar a um cenário real, devia investigar o quanto objetos antigos tinham sido impregnados com energia de pensamento. Isso significava que algum ser racional esteve perto deles.

Claro que nenhum local reunia mais trastes antigos que um museu. Um arqueólogo que conhecera na época do doutorado era o atual encarregado do museu de História Natural da cidade. Afirmando ter criado uma metodologia de datação mais precisa que o carbono-14 Ronaldo consultou-o sobre a possibilidade de ter acesso aos artefatos de antigos homídios. Aparentemente alheio a qualquer relato sobre os dissabores acadêmicos pregressos e da área de pesquisa do solicitante, o tal conhecido aceitou o pedido com grande entusiasmo.

O museu era o maior do gênero no país, mas para o deleite de Ronaldo toda a parte de pesquisa ficava no subsolo e ele não tinha de modo algum que ficar em contato com a multidão de turistas que lotava o local todos os dias com exceção das terças, dia no qual ficava fechado para manutenção. Por isso, ele decidiu-se por chegar naquele dia. Graças ao entusiasmo de seu conhecido, uma sala foi especialmente montada para que trabalhasse com tranquilidade. Sérgio, esse era o nome do antropólogo do museu, garantiu a Ronaldo que qualquer coisa que ele precisasse, era só pedir. Sérgio dizia só fazer questão de ter acesso às novas datações que supostamente seriam obtidas.

Os dias seguintes foram dedicados ao exame de ferramentas e outros artefatos atribuídos aos Homo habilis, mas na maioria das vezes nenhuma energia de pensamento era detectada. Na tentativa de saber algo mais sobre o aparelho de Ronaldo, Sérgio usava de qualquer pretexto para ir à sala na qual este trabalhava. Numa dessas idas, trouxe uma caixa cheia de estranhas criaturas fossilizadas. Perguntado se aquelas eram novas peças a serem examinadas, o arqueólogo soltou uma estrondosa risada e respondeu que aqueles eram trilobitas, artrópodes que viveram há mais de 490 milhões de anos; portanto, muito antes de qualquer antepassado direto do Homem. Na verdade, completou, eles tinham desaparecido mais ou menos nessa época durante a primeira, de cinco grandes extinções em massa, a do Ordoviciano-Siluriano. Eram mesmo fósseis raros já que a instabilidade das placas tectônicas tinha levado quase tudo do período rumo ao centro do planeta

Ronaldo lembrou-se que estudara sobre que seu colega dizia e que naqueles períodos de extinção, a maioria das espécies vivas morreu. Embora soubesse que certamente não houvesse qualquer criatura pensante na época dos trilobitas, uma curiosidade tão inútil como a que impulsiona meninos a queimarem fios de cabelo em velas, levou-o a perguntar se podia datá-las. Seria bom para verificar os limites do aparelho, afirmou. De boa vontade Sérgio disse que a catalogação das peças podia esperar e deixou a caixa para ir cuidar de seus afazeres.

Enquanto as análises nas peças de dois milhões de anos demoravam alguns minutos, a máquina do tempo indicou uma grande quantidade de energia de pensamento no primeiro fóssil  em apenas alguns segundos! Claro que aquilo só podia estar errado! Ronaldo decidiu repetir a análise e o fez diversas vezes. Então, conferiu a máquina repetidas vezes. Nada estava errado! Indiferente ao que se esperava como “certo”, as novas mensurações confirmando a primeira!

Logo, Ronaldo percebeu que só lhe restava concluir que alguém emitiu pensamentos próximos daquele fóssil, muito antes do que se acreditava homídio estivesse vivo na Terra! Afirmando que ainda precisa avaliar mais algumas peças, ele recebeu a autorização para ficar trabalhando ao longo da madrugada. Tinha tudo o que precisa e esperaria apenas para ter certeza que ninguém mais estaria no museu para partir. Meia hora depois, ligou sua máquina do tempo e um clarão verde foi o último sinal de sua presença no laboratório.

Ronaldo abriu os olhos sobressaltado como quem acorda após cochilar um instante. Sua máquina realmente funcionava (ao menos ele não estava mais no laboratório)! À sua volta havia uma sucessão de enormes trechos de solo irregular cercado por porções de água igualmente grandes. De repente, sentiu algo raspando em suas pernas, mergulhadas até o joelho nas águas, e saltou assustado. Então percebeu que a água estava infestada de pequenos animais: dentre os quais muitos trilobitas iguais aos do fóssil! Caminhou até a terra firme. Ali, gramíneas de várias tipos eram a espécie dominante enquanto em alguns trechos também se viam pequenas plantas similares a espinheiros cujos frutos lembravam bolas de natal laranja. Um forte tremor do solo o fez cair e rolar de costas de volta para a água.

Praguejando enquanto se levantava começou a ouvir gritos humanos do outro lado da porção de terra à sua frente. Sem poder acreditar correu em direção a origem do barulho e, após superar a lama com muito esforço, chegou a uma elevação. De lá, teve a certeza que os autores dos gritos eram serem racionais, mas com certeza não eram humanos.

Um grupo com cerca de vinte ou vinte e cinco seres humanoides de pele dourada e pelo menos uma vez e meia o tamanho de um homem alto corria numa velocidade superior a de qualquer velocista olímpico. Vestiam uma roupa colante que deixava em evidência os corpos bem proporcionais. Alguns, gritavam em desespero embora nada os parecesse perseguir. No instante em que Ronaldo os viu, o grupo parou e seus membros olharam diretamente para onde ele estava! O susto de que pudesse ser atacado não se confirmou, pois da mesma forma que o viram, todos, à exceção do maior dos humanoides dourados, mantiveram sua fuga.

À distância, Ronaldo e o ser ficaram se examinando com igual espanto até que o primeiro sentiu alguém dizendo algo dentro de sua cabeça! Ele soube imediatamente que era o humanoide e, apesar de não saber o significado do que ouvia, teve a sensação de que o outro queria vê-lo longe dali. Um novo tremor, agora mais forte, fez o viajante do tempo lembrar-se que em alguns minutos a programação automática de sua máquina o levaria de volta. Disposto a tudo para conhecer as origens da vida inteligente na Terra, ignorou seu medo e correu o mais rápido que pôde até alcançar o estranho.

Quando estavam próximos, o gigante deu um passo adiante e ao mesmo tempo que o viajante ouviu dentro de sua cabeça a palavra “gondwana”, viu que ela também era proferida pelos lábios daquele ser numa aparente tentativa de reforçar a mensagem. De qualquer modo, Ronaldo continuava não entendendo. Foi então que homem dourado deu mais um passo a frente e com as duas mãos segurou com delicadeza a cabeça do estranho e fechou os olhos. Este último, por mais que tentasse, não conseguiu impedir que o gigante invadisse seu cérebro com ainda mais força do que antes.

Instantes depois, as delicadas, porém, invencíveis mãos soltaram Ronaldo por vontade própria e o gigante disse algo parecido com “vá”. Ter obtido algum vocábulo na cabeça do viajante não permitia que o ser dourado conseguisse dizer bem fonemas do idioma português; disso advinha a dificuldade em se expressar. Irritado pela ineficácia do esforço, o gigante voltou à estratégia inicial e a palavra “vá” ecoou clara na mente de Ronaldo.

Eram tantas as perguntas que não conseguia decidir-se por qual, mas diante da insistência do homem dourado Ronaldo acabou por dizer “por que?”. Como se não tivesse ouvido, o homem dourado continuava a insistir que o recém chegado fosse embora e, além do “vá”, acrescentou a palavra “fome” à suas súplicas. Enquanto permaneciam nesse cabo de guerra, mais seres dourados passaram correndo pelos dois e quando um novo tremor foi sentido, o gigante parou de falar dentro da cabeça de Ronaldo. Olhando ao redor ele andou alguns passos para a direita até uma porção de solo mais arenosos e menos encharcado. Então, com o indicador da mão esquerda, começou a desenhar no chão. Os rabiscos mostravam que alguma coisa que vivia embaixo da terra devorava gigantes e animais.

Por paradoxal que fosse, a profusão de gritos e tremores, pareciam ter anestesiado Ronaldo que não ficou assustado a ponto de sair correndo dali como esperava o gigante. Este ainda tinha seis minutos do tempo previamente programado para permanecer no passado. No mais, ele precisava descobrir como homens avançados tinham surgido num período que se acreditava não ter nenhum tipo de forma de vida complexa e o que acontecera para que nunca tivessem deixado qualquer pista de sua existência.

Indiferente às divagações do viajante e percebendo que este não iria obedecê-lo, o gigante pegou Ronaldo pela mão direita e falou dentro de sua cabeça “vamos”. Era impossível acompanhar o gigante por isso este ergueu Ronaldo como uma boneca de pano e começou a correr tão rápido quando os demais e como se sua carga não existisse. Por fim, Ronaldo foi posto no chão e avistou uma enorme redoma metálica e prateada. Ela era mais alta e maior que as construções que já vira no futuro. Aquele era o local para o qual todos, inclusive eles, estavam se dirigindo.

Quando faltavam quinhentos metros para entrarem, um grande tremor, superior a todos os anteriores, começou a partir o solo por toda a parte, fazendo inclusive, a redoma colapsar. Instantes depois, ela começou afundar no solo, contudo, o mais apavorante era que o tremor vinha acompanhado de um rugido ensurdecedor que parecia oriundo do próprio chão.

As muitas centenas de humanoides dourados que não tinham entrado nela ou escapado de ser engolidos com a redoma corriam agora em total desespero para todos os lados. Mas, pouco a pouco, aquilo que antes eram charcos com água foi cedendo espaço a um líquido que vinha das profundezas da Terra e, ao entrar em contato com alguém, o dissolvia como uma espécie de suco gástrico. Finalmente, depois de feita a digestão, o líquido e seu novo conteúdo nutritivo eram estranhamente drenados pelo solo.

Ronaldo sabia que em poucos minutos tudo seria dissolvido e tragado para as profundezas. O apavorante grito continuava sempre mais forte e, na impossibilidade de manter qualquer diálogo ele segurou no braço de seu companheiro e pensou “por que?”. Desde que todos começaram a ser mortos este último tinha permanecido alheio assistindo o fim. Ao ser tocado seus olhos repletos de lágrimas fitaram o viajante antes com a ternura de um pai que tenta poupar seu filho de um grande sofrimento que por tristeza quanto a sua própria tragédia.

Foi quando do estranho suco digestivo começar a extravasar do solo sob os pés de ambos. Urrando de dor, o gigante apanhou Ronaldo pela segunda vez e encostou sua testa na dele para segundos depois arremessa-lo para cima. Antes que Ronaldo pudesse cair de volta e ser dissolvido como seu amigo já morto, um clarão esverdeado decretou que era de voltar para sua própria época.

Um novo sobressalto e quando abriu os olhos Ronaldo viu-se mais uma vez no laboratório do museu. Sentando-se numa cadeira disse em voz alta para si mesmo que jamais saberia qual fora o primeiro pensamento ou até mesmo a razão para ter sido atraído para aquele instante específico, mas graças à última mensagem telepática do gigante dourado podia sentir-se satisfeito. Afinal, havia acertado sobre o que vinha acontecendo na Terra: havia algo mais! Descobrira que aquela que os homens modernos chamavam de Gaia e acreditavam ser uma mãe amorosa maltratada por seus filhos ingratos já fora conhecida como “Godwana” há milhões de anos por uma raça superior que desapareceu nas entranhas do planeta. Sim, antigos e modernos estavam certos em acreditar que a Terra era um ser vivo, mas só os primeiros descobriram tarde demais que ela era uma mãe monstruosa que, de tempos em tempos, saciava sua fome devorando quase todas suas crias e deixando os sobreviventes para que recomeçassem, evoluíssem, na ilusão de um pretenso amor materno. Um fortíssimo tremor acompanhado de um conhecido grito monstruoso fez o solo do museu abrir-se e Ronaldo sabia o que viria de lá: o sexto grande extermínio em massa.


2 comentários:

  1. http://entrecontos.com/2013/10/30/resultados-do-desafio-de-outubro-2013/comment-page-1/#comment-2096

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  2. Este conto foi produzido para o desafio Entrecontos de outubro de 2013. O tema era viagem no tempo e de 41 contos este ficou em décimo. E vamos aproveitando as críticas e aprendendo sempre.

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