Há séculos a Ciência foi
elevada à condição de instância suprema no julgamento de todas as questões
humanas. Como um fruto que amadureceu nesse ambiente, Ronaldo, em sua juventude,
foi um fiel depositário dessa ideologia. O reconhecimento que esperava em troca
de sua fidelidade foi, contudo, substituído pelo desprezo de seus antigos colegas
de universidade. Não importou o quando ele foi capaz de expressar- seguindo
todos os fundamentos do método científico; não havia tolerância na Academia para
com suas hipóteses sobre viagens no tempo. A demissão seguiu-se ao isolamento
e, em sua raiva, ele tomou como meta provar que tinha razão.
Passadas três décadas,
reconhecia que suas frustrações com a Ciência o permitiram entender que precisava
buscar inspiração em outras fontes. Se por um lado os cientistas estavam certos
ao afirmarem que voltar no tempo era impossível já que fatos passados
desapareciam para sempre, por outro, erraram de forma miserável ao não considerarem
que todo evento deixa “rastros”. Ao investigar documentos indianos milenares tais
como Os Vedas e o Scrimad Bhagavatam, Ronaldo descobriu
que neles, a estrutura do universo e toda sua física estavam descritas de modo
preciso! Havia mais: eles afirmavam que o pensamento era uma forma de energia! As
investigações também acabaram por demonstrar que a crença do “pensamento
influenciando o mundo físico” era mais séria do que se poderia imaginar: pensamentos
consistiam numa forma de energia passível de detecção e mensuração!
Graças a essa descoberta ele
construiu um dispositivo capaz de detectar energias de pensamento e voltar até
sua fonte, isto é, o passado! Não
conseguiu pensar em nenhum nome melhor que “máquina do tempo” para sua criação.
Primeiro ela fora testada com objetos inanimados e finalmente com animais. A
prova de que tinham voltado no tempo dava-se a partir da análise do pó ou pólen
que ficasse à “cobaia” em questão. Faltava testá-la com seres humanos, o que
deveria levar muito tempo para ser seguro, mas infelizmente, os acontecimentos
não iriam permitir.
Há muitos anos, cientistas de
todo o mundo concordaram que só havia um jeito de evitar a degradação do
planeta: eliminar desmatamentos, emissões de carbono, energia nuclear e todas
as formas de contaminação da Natureza. Apesar
disso, nos últimos cinquenta anos nunca foram registrados tantos terremotos,
furacões, tsunamis, vulcões ativos ou
incêndios espontâneos de grandes proporções. Existiam ainda estranhos relatos
sobre barulhos ensurdecedores durantes muitas dessas catástrofes. Se para a
maioria das pessoas isso não importava, afinal, elas continuavam levando suas
vidas e acreditando que, com o tempo, as medidas de preservação fariam com que
o planeta se estabilizasse (e seria possível instaurar o paraíso na Terra!). Para
Ronaldo o planeta estava morrendo. Não porquê as medidas corretivas tivessem
começado tarde demais. Pelo contrário, a Terra ainda não estava tão
comprometida quando as mesmas foram implantadas. Sua intuição lhe dissera que havia
algo mais! E que nenhum cientista fora capaz de perceber!
Semelhante aos que diante da
morte dizem rever sua vida inteira num instante, a crença de que o fim do mundo
estava próximo, fez Ronaldo desejar ser capaz de repassar toda a história
humana para si quando chegasse a hora. Por isso, mesmo confrontado pela
possibilidade de visitar qualquer época, Ronaldo não hesitou decidir-se por usar
sua máquina do tempo para detectar as origens do homem, pelo menos do ser
humano racional, já que rastrearia o primeiro pensamento. Apostava consigo que
as primeiras energias produzidas pelo pensamento e detectadas seriam de por
volta de dois milhões e trezentos mil anos, época de surgimento do primeiro ser
pertencente ao gênero Homo, o Homo
habilis.
Uma coisa importante revelada
pelas investigações de Ronaldo foi que qualquer pensamento, sobre eventos do
mundo real ou sobre fatos imaginários, geravam energia. Tentar voltar no tempo
em busca de uma fantasia qualquer seria desastroso (isso provavelmente
explicava o motivo de alguns animais não terem voltado das viagens de teste).
Então, como saber que determinada energia de pensamento era sobre um evento
histórico? Foi quando percebeu que se queria ter certeza de voltar a um cenário
real, devia investigar o quanto objetos antigos tinham sido impregnados com
energia de pensamento. Isso significava que algum ser racional esteve perto
deles.
Claro que nenhum local reunia mais
trastes antigos que um museu. Um arqueólogo que conhecera na época do doutorado
era o atual encarregado do museu de História Natural da cidade. Afirmando ter
criado uma metodologia de datação mais precisa que o carbono-14 Ronaldo
consultou-o sobre a possibilidade de ter acesso aos artefatos de antigos
homídios. Aparentemente alheio a qualquer relato sobre os dissabores acadêmicos
pregressos e da área de pesquisa do solicitante, o tal conhecido aceitou o
pedido com grande entusiasmo.
O museu era o maior do gênero
no país, mas para o deleite de Ronaldo toda a parte de pesquisa ficava no
subsolo e ele não tinha de modo algum que ficar em contato com a multidão de
turistas que lotava o local todos os dias com exceção das terças, dia no qual
ficava fechado para manutenção. Por isso, ele decidiu-se por chegar naquele
dia. Graças ao entusiasmo de seu conhecido, uma sala foi especialmente montada
para que trabalhasse com tranquilidade. Sérgio, esse era o nome do antropólogo
do museu, garantiu a Ronaldo que qualquer coisa que ele precisasse, era só
pedir. Sérgio dizia só fazer questão de ter acesso às novas datações que
supostamente seriam obtidas.
Os dias seguintes foram
dedicados ao exame de ferramentas e outros artefatos atribuídos aos Homo habilis, mas na maioria das vezes
nenhuma energia de pensamento era detectada. Na tentativa de saber algo mais
sobre o aparelho de Ronaldo, Sérgio usava de qualquer pretexto para ir à sala na
qual este trabalhava. Numa dessas idas, trouxe uma caixa cheia de estranhas
criaturas fossilizadas. Perguntado se aquelas eram novas peças a serem
examinadas, o arqueólogo soltou uma estrondosa risada e respondeu que aqueles
eram trilobitas, artrópodes que viveram há mais de 490 milhões de anos;
portanto, muito antes de qualquer antepassado direto do Homem. Na verdade,
completou, eles tinham desaparecido mais ou menos nessa época durante a
primeira, de cinco grandes extinções em massa, a do Ordoviciano-Siluriano. Eram
mesmo fósseis raros já que a instabilidade das placas tectônicas tinha levado
quase tudo do período rumo ao centro do planeta
Ronaldo lembrou-se que estudara
sobre que seu colega dizia e que naqueles períodos de extinção, a maioria das espécies
vivas morreu. Embora soubesse que certamente não houvesse qualquer criatura
pensante na época dos trilobitas, uma curiosidade tão inútil como a que impulsiona
meninos a queimarem fios de cabelo em velas, levou-o a perguntar se podia
datá-las. Seria bom para verificar os limites do aparelho, afirmou. De boa
vontade Sérgio disse que a catalogação das peças podia esperar e deixou a caixa
para ir cuidar de seus afazeres.
Enquanto as análises nas peças
de dois milhões de anos demoravam alguns minutos, a máquina do tempo indicou
uma grande quantidade de energia de pensamento no primeiro fóssil em apenas alguns segundos! Claro que aquilo só
podia estar errado! Ronaldo decidiu repetir a análise e o fez diversas vezes.
Então, conferiu a máquina repetidas vezes. Nada estava errado! Indiferente ao
que se esperava como “certo”, as novas mensurações confirmando a primeira!
Logo, Ronaldo percebeu que só
lhe restava concluir que alguém emitiu pensamentos próximos daquele fóssil,
muito antes do que se acreditava homídio estivesse vivo na Terra! Afirmando que
ainda precisa avaliar mais algumas peças, ele recebeu a autorização para ficar
trabalhando ao longo da madrugada. Tinha tudo o que precisa e esperaria apenas
para ter certeza que ninguém mais estaria no museu para partir. Meia hora
depois, ligou sua máquina do tempo e um clarão verde foi o último sinal de sua
presença no laboratório.
Ronaldo abriu os olhos
sobressaltado como quem acorda após cochilar um instante. Sua máquina realmente
funcionava (ao menos ele não estava mais no laboratório)! À sua volta havia uma
sucessão de enormes trechos de solo irregular cercado por porções de água
igualmente grandes. De repente, sentiu algo raspando em suas pernas,
mergulhadas até o joelho nas águas, e saltou assustado. Então percebeu que a
água estava infestada de pequenos animais: dentre os quais muitos trilobitas
iguais aos do fóssil! Caminhou até a terra firme. Ali, gramíneas de várias
tipos eram a espécie dominante enquanto em alguns trechos também se viam
pequenas plantas similares a espinheiros cujos frutos lembravam bolas de natal
laranja. Um forte tremor do solo o fez cair e rolar de costas de volta para a
água.
Praguejando enquanto se
levantava começou a ouvir gritos humanos do outro lado da porção de terra à sua
frente. Sem poder acreditar correu em direção a origem do barulho e, após
superar a lama com muito esforço, chegou a uma elevação. De lá, teve a certeza
que os autores dos gritos eram serem racionais, mas com certeza não eram
humanos.
Um grupo com cerca de vinte ou vinte
e cinco seres humanoides de pele dourada e pelo menos uma vez e meia o tamanho
de um homem alto corria numa velocidade superior a de qualquer velocista
olímpico. Vestiam uma roupa colante que deixava em evidência os corpos bem
proporcionais. Alguns, gritavam em desespero embora nada os parecesse perseguir.
No instante em que Ronaldo os viu, o grupo parou e seus membros olharam
diretamente para onde ele estava! O susto de que pudesse ser atacado não se
confirmou, pois da mesma forma que o viram, todos, à exceção do maior dos
humanoides dourados, mantiveram sua fuga.
À distância, Ronaldo e o ser
ficaram se examinando com igual espanto até que o primeiro sentiu alguém
dizendo algo dentro de sua cabeça! Ele soube imediatamente que era o humanoide
e, apesar de não saber o significado do que ouvia, teve a sensação de que o
outro queria vê-lo longe dali. Um novo tremor, agora mais forte, fez o viajante
do tempo lembrar-se que em alguns minutos a programação automática de sua
máquina o levaria de volta. Disposto a tudo para conhecer as origens da vida
inteligente na Terra, ignorou seu medo e correu o mais rápido que pôde até
alcançar o estranho.
Quando estavam próximos, o
gigante deu um passo adiante e ao mesmo tempo que o viajante ouviu dentro de
sua cabeça a palavra “gondwana”, viu que ela também era proferida pelos lábios
daquele ser numa aparente tentativa de reforçar a mensagem. De qualquer modo,
Ronaldo continuava não entendendo. Foi então que homem dourado deu mais um
passo a frente e com as duas mãos segurou com delicadeza a cabeça do estranho e
fechou os olhos. Este último, por mais que tentasse, não conseguiu impedir que
o gigante invadisse seu cérebro com ainda mais força do que antes.
Instantes depois, as delicadas,
porém, invencíveis mãos soltaram Ronaldo por vontade própria e o gigante disse
algo parecido com “vá”. Ter obtido algum vocábulo na cabeça do viajante não
permitia que o ser dourado conseguisse dizer bem fonemas do idioma português;
disso advinha a dificuldade em se expressar. Irritado pela ineficácia do
esforço, o gigante voltou à estratégia inicial e a palavra “vá” ecoou clara na
mente de Ronaldo.
Eram tantas as perguntas que
não conseguia decidir-se por qual, mas diante da insistência do homem dourado
Ronaldo acabou por dizer “por que?”. Como se não tivesse ouvido, o homem
dourado continuava a insistir que o recém chegado fosse embora e, além do “vá”,
acrescentou a palavra “fome” à suas súplicas. Enquanto permaneciam nesse cabo
de guerra, mais seres dourados passaram correndo pelos dois e quando um novo
tremor foi sentido, o gigante parou de falar dentro da cabeça de Ronaldo. Olhando
ao redor ele andou alguns passos para a direita até uma porção de solo mais
arenosos e menos encharcado. Então, com o indicador da mão esquerda, começou a
desenhar no chão. Os rabiscos mostravam que alguma coisa que vivia embaixo da
terra devorava gigantes e animais.
Por paradoxal que fosse, a
profusão de gritos e tremores, pareciam ter anestesiado Ronaldo que não ficou
assustado a ponto de sair correndo dali como esperava o gigante. Este ainda
tinha seis minutos do tempo previamente programado para permanecer no passado.
No mais, ele precisava descobrir como homens avançados tinham surgido num
período que se acreditava não ter nenhum tipo de forma de vida complexa e o que
acontecera para que nunca tivessem deixado qualquer pista de sua existência.
Indiferente às divagações do
viajante e percebendo que este não iria obedecê-lo, o gigante pegou Ronaldo
pela mão direita e falou dentro de sua cabeça “vamos”. Era impossível acompanhar
o gigante por isso este ergueu Ronaldo como uma boneca de pano e começou a
correr tão rápido quando os demais e como se sua carga não existisse. Por fim,
Ronaldo foi posto no chão e avistou uma enorme redoma metálica e prateada. Ela
era mais alta e maior que as construções que já vira no futuro. Aquele era o
local para o qual todos, inclusive eles, estavam se dirigindo.
Quando faltavam quinhentos
metros para entrarem, um grande tremor, superior a todos os anteriores, começou
a partir o solo por toda a parte, fazendo inclusive, a redoma colapsar.
Instantes depois, ela começou afundar no solo, contudo, o mais apavorante era
que o tremor vinha acompanhado de um rugido ensurdecedor que parecia oriundo do
próprio chão.
As muitas centenas de
humanoides dourados que não tinham entrado nela ou escapado de ser engolidos
com a redoma corriam agora em total desespero para todos os lados. Mas, pouco a
pouco, aquilo que antes eram charcos com água foi cedendo espaço a um líquido
que vinha das profundezas da Terra e, ao entrar em contato com alguém, o
dissolvia como uma espécie de suco gástrico. Finalmente, depois de feita a
digestão, o líquido e seu novo conteúdo nutritivo eram estranhamente drenados
pelo solo.
Ronaldo sabia que em poucos
minutos tudo seria dissolvido e tragado para as profundezas. O apavorante grito
continuava sempre mais forte e, na impossibilidade de manter qualquer diálogo
ele segurou no braço de seu companheiro e pensou “por que?”. Desde que todos
começaram a ser mortos este último tinha permanecido alheio assistindo o fim.
Ao ser tocado seus olhos repletos de lágrimas fitaram o viajante antes com a
ternura de um pai que tenta poupar seu filho de um grande sofrimento que por tristeza
quanto a sua própria tragédia.
Foi quando do estranho suco
digestivo começar a extravasar do solo sob os pés de ambos. Urrando de dor, o
gigante apanhou Ronaldo pela segunda vez e encostou sua testa na dele para
segundos depois arremessa-lo para cima. Antes que Ronaldo pudesse cair de volta
e ser dissolvido como seu amigo já morto, um clarão esverdeado decretou que era
de voltar para sua própria época.
Um novo sobressalto e quando abriu
os olhos Ronaldo viu-se mais uma vez no laboratório do museu. Sentando-se numa
cadeira disse em voz alta para si mesmo que jamais saberia qual fora o primeiro
pensamento ou até mesmo a razão para ter sido atraído para aquele instante
específico, mas graças à última mensagem telepática do gigante dourado podia
sentir-se satisfeito. Afinal, havia acertado sobre o que vinha acontecendo na
Terra: havia algo mais! Descobrira que aquela que os homens modernos chamavam
de Gaia e acreditavam ser uma mãe amorosa maltratada por seus filhos ingratos
já fora conhecida como “Godwana” há milhões de anos por uma raça superior que
desapareceu nas entranhas do planeta. Sim, antigos e modernos estavam certos em
acreditar que a Terra era um ser vivo, mas só os primeiros descobriram tarde
demais que ela era uma mãe monstruosa que, de tempos em tempos, saciava sua
fome devorando quase todas suas crias e deixando os sobreviventes para que
recomeçassem, evoluíssem, na ilusão de um pretenso amor materno. Um fortíssimo
tremor acompanhado de um conhecido grito monstruoso fez o solo do museu
abrir-se e Ronaldo sabia o que viria de lá: o sexto grande extermínio em massa.
http://entrecontos.com/2013/10/30/resultados-do-desafio-de-outubro-2013/comment-page-1/#comment-2096
ResponderExcluirEste conto foi produzido para o desafio Entrecontos de outubro de 2013. O tema era viagem no tempo e de 41 contos este ficou em décimo. E vamos aproveitando as críticas e aprendendo sempre.
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