quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Noite no campo




Até bem pouco tempo, eu tinha certeza de ter nascido na Alemanha errada; a atual juventude alemã me enojava. Me incomodava particularmente a crença de alguns jovens de que nós, os legítimos alemães, havíamos causado grande sofrimento a judeus, ciganos e outras aberrações. Segundo eles, milhões de almas ainda hoje, estariam sofrendo nos lugares de seus martírios originais.

Foi por causa desse tipo de ideia, que há alguns meses eu quase quebrei a cara de uns almofadinhas no colégio e só não o fiz, porque alguém propôs algo mais interessante. Conforme disseram, caso eu estivesse certo e as vítimas do nazismo não fossem gente e muito menos tivessem alma, uma noite num antigo campo de concentração considerado assombrado, não teria maiores consequências. Por outro lado, se os almofadinhas tivessem razão, eu haveria de encontrar alguns espíritos por lá e teria de me desculpar.


Casado o dinheiro da aposta, apanhei minha bicicleta e cobri os cinco quilômetros de Munique até Dachau numa noite chuvosa. Não foi difícil entrar no antigo campo pois as autoridades responsáveis por sua administração, não se dignavam a investir em segurança acreditando que ninguém macularia o lugar. De acordo com o combinado, apanhei meu colchonete e rumei para um dos chuveiros a fim de passar a noite na sala de morte.

Surpreendido, devo confessar que no início assustei-me com um bando que vi aos berros na porta da câmara de gás, mas logo veio a decepção; tinham tido uma ideia melhor que a minha. As suásticas e insígnias nazistas nas roupas dos agressores não davam margem de dúvida quanto ao que acreditavam; no chão um bando de garotos com cor e aparência erradas recebia chutes enquanto era verbalmente agredida. Assim que me viram, aqueles que eu supunha serem alemãos dignos, sorriram e me convidaram para beber cerveja; atrás deles, no chão do lado de fora da câmara, ficou um bando de farapos ensanguentados.

Quando estava prestes a entrar na sala, meu pé foi retido com muita força por um dos rapazes agredidos; ele me implora “não vá, não vá”. Na hora não pude acreditar que o maldito pudesse ter a ousadia de me pedir ajuda e terminei aquilo com um pontapé na boca do infeliz.

Entrei na câmara rindo e meu novos colegas me fizeram um brinde. Foi quando as portas se fecharam e minhas vias áreas começaram a ser corroídas por uma espessa fumaça no mesmo instante que minha carne descolava-se dos ossos como se incinerada por um fogo invisível. Em minha agonia, eu era incapaz de distinguir quais eram de minha autoria e quais gritos vinham de meus companheiros que agora não passavam de esqueletos agonizantes. Então quando acreditei que uma dor capaz de descontrolar meus esfincteres não pudesse ficar mais intensa, percebi que estava enganado. Próximo do fim, um coro de orações me trouxe um fio de esperança; eram os jovens espancados que, do outro lado da porta, proferiam preces a Deus em meu favor.

Devo ter desmaiado pois na manhã seguinte fui encontrado pelos seguranças de Dachau e levado a um pronto socorro. Contudo, após a primeira noite lá, acabaram me trazendo para esse hospital psiquiátrico. Graças aos resultados normais de meus exames, nenhum dos médicos acreditou que meus gritos de dor e desespero tivessem origem somática; a loucura ocupou o lugar de um diagnóstico desconhecido. Então, desde a noite em Dachau peço duas coisas a Deus: perdão por não ter escutado aquela alma que me suplicou para não entrar na câmara de gás e para que ela e suas companheiras venham aliviar com suas orações, a purgação que passei a compartilhar, noite após noite, com os antigos soldados do campo de Dachau.

Um comentário:

  1. Adorei, Reury...sou fascinada por contos e histórias sobre o Nazismo!!
    Bj

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