sexta-feira, 16 de julho de 2010

Reconhecendo Papai


Maria, minha empregada, sofria de uma incapacidade congênita de ser sutil. Exigia aumentos ou reclamava da rapidez com a qual eu desfazia seu serviço de modo tão natural quanto me dava bom dia. Por algum motivo, essa crueza sempre me divertira sobremaneira, pelo menos até aquela manhã de quarta-feira, seis de agosto, quando me acordou às sete e meia dizendo:

“Seu Paulo, ligaram de San Miguel. Disseram que seu pai morreu num acidente de carro.”

Talvez para na maioria das pessoas a pergunta “tem certeza?” fosse motivada pela esperança de que tudo não passasse de um engano. Para mim, contudo, ela foi feita para cumprir aquele que eu considerava ser um comportamento educado.

Quando Maria mencionou a palavra “talismã” soube que não havia engano. Segundo me contou no início o telefonema parecia um trote, pois seu interlelocutor perguntava se ali havia alguém cujo apelido era talismã. À exceção da carteira de habilitação, explicava a voz do outro lado, o morto só portava com ele um velho pedaço de jornal com essa palavra e um telefone escritos nele. Minha empregada terminou seu relato aconselhando-me a esperar antes de partir para San Miguel: “o pessoal do tempo ainda não sabe se o tal Valquíria passará por lá. Por ser muito perigoso ir hoje”. Depois, virou-se e foi limpar o andar de baixo.

Mário nunca me chamava de Paulo, apenas por esse apelido idiota de criança. Não era capaz de se referir ao seu primogênito pelo nome nem mesmo num pedaço de papel. O telefone rabiscado também era típico, a bebida por certo tinha contribuído para piorar sua já péssima memória. Não que eu tenha lhe dado a oportunidade de decorar o número. Da mesma forma que os últimos dois anos, nosso derradeiro contato seria sem palavras. Eu lhe reconheceria o corpo e estaríamos conversados.

Como havia o risco de o corpo demorar a ser liberado, meia hora após ter sido advertido por Maria já havia ligado para o único hotel de San Miguel e feito uma reserva. Algum tempo depois, entrei na rodovia 67 para iniciar meu trajeto de aproximadamente seiscentos e cinquenta quilômetros até a pequena cidade. Se não era a primeira, por certo seria a última vez que Mário me dava trabalho.

Apenas o relógio no painel do carro me fazia crer estar dirigindo às nove da manhã e não da noite. Como se estivesse em conluio com minha empregada, o vento contra tentava deter meu avanço. As gotículas de chuva espalhadas no parabrisas, por sua vez, causavam dor aos meus olhos conforme iam ampliando os faróis altos dos veículos que fugiam em sentido oposto. Mas, incapaz de aceitar qualquer coisa que me contrariasse desde que recebera a primeira palmada no hospital, segui em frente, rumo à cidade e quem sabe, ao furacão Valquíria.

Enquanto lutava para manter-me em linha reta imaginava como estaria a cidade. Estivera lá apenas uma vez na tenra infância acompanhado por meu genitor e minha irmã caçula. O fato de o lugar ser à época sede de uma grande indústria química e ter, por conseqüência inúmeros trabalhadores ali residindo, tornavam freqüentes as visitas do vendedor Mário. Entretanto, percorrer a distância até a cidade deixou de compensar quando a tal indústria se mostrou por diversas vezes a mais poluidora do continente e acabou desmantelada pelas autoridades. Sem ter o que lhe evidenciasse no mapa, San Miguel perdeu praticamente toda sua população. Já o vendedor sem clientes descobriu a bebida. Que diabos o teria levado aquele lugar agora abandonado?

Pelo rádio soube que San Miguel seria colhido pela porção esquerda do furacão. À semelhança da maioria dos humanos destros, o sinistro também era o lado mais fraco daquele tipo de fenômeno atmosférico. Isso não impediu, entretanto, que a resistência imposta pelo vento e a má visibilidade tornassem minha viagem muito mais longa que o calculado. Exausto e com a musculatura posterior dos ombros queimando entrei na cidade. As edificações estavam muito menos coloridas e num estado bem pior do que imaginara. Provavelmente muitas delas não passariam incólumes mesmo ao braço ruim do furacão.

Era por volta de uma hora da madrugada quando cheguei ao hotel. Sabia que teria de esperar até de manhã quando o morgue estaria aberto. Em meio a tanto cansaço e aborrecimento, uma notícia animadora: excepcionalmente um funcionário do necrotério, Edgar, estaria à minha espera. “Para que o senhor possa voltar logo para a cidade grande” concluiu seu recado o prestativo recepcionista. Desculpei-me pela reserva não utilizada e ofereci-lhe uma compensação financeira, mas ele disse que não tinha importância. Pareceu-me que a falta de visitas da cidade grande, fez com que os moradores de San Miguel passassem a valorizar excessivamente os que de lá viam como eu; talvez disso decorresse a seqüência de gentilezas

Mesmo com as orientações recebidas no hotel tive certa dificuldade para localizar o necrotério municipal. Quando por fim o encontrei foi preciso dar a volta no imóvel a fim de chegar ao estacionameno. O prédio me pareceu excessivo para seu propósito; ainda que considerasse o período que a cidade pulsava de vida. Ao descer do carro, o vento forte e chuva castigavam meu rosto, mas à distância pude divisar a silueta de um homem em pé ao lado de uma porta de vidro. Pela brancura, Edgar parecia só ter tomado sol o bastante na vida para não ter raquitismo. De resto, ele seguia o mesmo padrão de servilidade do funcionário do hotel; ofereceu-me a mão excessivamente quente e desejou que tivéssemos nos conhecido numa situação diferente.

Apresentações feitas, o jovem sugeriu que a melhor forma de lidar com aquela situação seria reconhecer o corpo o quanto antes. A entrada do edifício dava acesso a um escritório no fundo do qual havia uma porta vai-e-vem. Dali se atingia as entranhas do prédio. Enquanto seguíamos por um imenso corredor deixávamos para trás várias portas fechadas. Antes que precisássemos tomar o próximo corredor à esquerda, nos deparamos com um aviso escrito em letra grosseira: geladeira.

Tomando por referência o número de vezes que havia pensado em Mário nos últimos anos, causou-me surpresa perceber que a suposta indiferença a qual o tinha relegado, não era tão convicta assim. Quando adentrei na sala fria, meu coração pareceu submergir num tanque de adrenalina, a velocidade de seus batimentos era tal que me era impossível separá-los uns dos outros. Uma gaveta estava para fora, dentro dela um corpo coberto por um campo cirúrgico laranja.

O solícito funcionário me disse que se desejasse poderia fazer o reconhecimento e passar alguns instantes a sós com meu pai. A ideia de remover sozinho o pano laranja me horrizava, mas não tanto quanto deixar que o rapaz percebesse meu medo. Sozinho, segurei a fina película de algodão que nos separava. A morte, eu bem sabia, tem o dom de nos transfigurar, transformando-nos num esboço de traços grotescos. Conforme puxava o tecido, potenciais rostos fúnebres me surgiam e o músculo em meu peito acelerava um pouco mais. Entretanto, a feição que se apresentou não estava na minha lista imaginária, era a que jamais poderia ter sido concebida por mim: a inexistente!

O rosto à minha frente não era o de Mário, tampouco era o rosto de qualquer ser humano. Estava completo: olhos, sobrancelhas, nariz, boca...nada faltava em absoluto! Ele carecia, contudo, de uma identidade. Aquela coisa indefinível que permite ao cérebro distinguir uma expressão humana! Era como olhar para um manequim de vitrine barato.

Graças ao medo transmutado em curiosidade, toquei o corpo e descobri que a clavícula esquerda possuia um calo ósseo exatamente onde Mário sofrera uma fratura. Lá estavam ainda as inúmeras varizes; as que permaneciam íntegras e as que se romperam em diferentes ocasiões da minha infância. As semelhanças continuavam: operação de apendicite, mesma estatura, cor da pele e cabelo. Não fosse pelo “não-rosto”, aquele por certo seria quem eu buscava.

Quando Edgar decidiu que eu tivera privacidade suficiente voltou à sala interrogando-me com seu olhar.

_ Há algo errado com esse corpo...

_ Então, o senhor quer dizer que esse não é seu pai, não é?

_ Não, quero dizer exatamente o que disse. Que não dá para ter certeza!

_ Sei que é um momento difícil, senhor, mas o corpo está em perfeito estado. De fato, dada a natureza do óbito é de se admirar que ele apresente tão poucos sinais de trauma. Basta que confirme se é ou não seu pai! A foto na carteira de habilitação não deixa dúvida que ele é Mário Nogueira dos Santos. Não é o nome de seu pai?

_ É sim, mas não estou certo que...

_ Acalme-se, por favor. Creio que não foi uma boa coisa tê-lo deixado soz...

_ Droga! Você viu o rosto dele?

_ Claro que sim! Não acabei de mencionar sobre a semelhança da foto?

_ E era isto que estava na carteira de motorista?

Meu dedo indicador levou o rapaz a olhar para o corpo pela primeira vez desde que eu chegara. Enquanto ele fitava o cadáver, percebi a cor fugindo-lhe da face.

_ Meus Deus! Ele não estava assim quanto fiz a necrópsia pela manhã, eu juro! Preciso ligar para meu chefe, ele é médico. Talvez seu pai sofresse de alguma doença contagiosa...precisamos ter certeza de que não vai se espalhar.

_ Edgar. Sou biólogo e posso te garantir que não há nenhuma doença, contagiosa ou não, que cause esse tipo de mudança.

Inútil. Como uma criança encarregada por um adulto de contar-lhe coisas erradas durante sua ausência, o rapaz saiu de onde estávamos rumo ao escritório na entrada. Apenas alguns segundos depois, voltou passando por mim enquanto praguejava muito e dizia algo sobre um rádio. Tomou o corredor à esquerda, no qual eu ainda não havia estado e entrou numa saleta com divisórias de vidro transparente próxima a uma espessa porta metálica. Acompanhei-o. Ao vê-lo utilizando o rádio conclui que as linhas telefônicas estavam inoperantes devido ao furacão.

Já na sala, descobri que a simpatia que Edgar tinha demonstrado até então, esgotou-se assim que esse terminou de falar com seu superior. Agora ele estava indiferente a tudo ao seu redor: fosse minha presença ou o vento que lá fora arremessava coisas contra as paredes do necrotério. Ignorado, sentei-me enquanto observava o rapaz andando de um lado para num inócuo ritual para acelerar o tempo. A eternidade para ele durou exatos cinco minutos quando seu aguardado chefe apareceu na porta:

_ Prazer, Senhor Paulo. Antônio Conceição às suas ordens – foi dizendo com a mão estendida.

Demorei um átimo para responder-lhe o gesto; causou-me estranheza que aquele desconhecido soubesse meu nome. Com atraso, veio-me a idéia de que Edgar deveria ter-lhe contado sobre mim. Também atribui ao cansaço à impressão de que o recém-chegado não viera pela porta da frente do prédio.

_ Prazer, doutor.

_ Por favor, senhor Paulo, a medicina é algo do passado.

“É com essa respiração arfante e esse excesso de peso, parece que o abandono aos princípios da saúde não ficou só nas palavras” - pensei.

_ Mas seu diploma permite que o senhor dirija isto aqui, não é?

_ Sim, sim. Formalidades, sabe como é. Hoje prefiro ser conhecido como alguém tem a honra de guiar o rebanho de Deus nessa cidade. Agora se me dá licença, preciso trocar algumas palavras com meu assistente. Ele deve ter algo muito sério a dizer para chamar-me a esta hora.

A. Conceição puxou seu subalterno para a porta da sala e se interpôs à sua frente. Ainda que não me fosse possível ouvir o que Edgar falava ou ver seu rosto era óbvio que ele estava nervoso tal era seu repertório de gestos. Já o chefe, inicialmente impassível, começou a se agitar e, em pouco tempo, ambos pareciam executar uma desagradável coreografia. De posse da carteira de motorista de Mário em mãos, o médico revezava seu olhar incrédulo entre o documento e eu. Terminado o relato, Edgar e o chefe começaram a sair da sala, mas eu os impedi:

_ Então, doutor, o senhor pode me explicar o que acontecendo? Preciso saber se aquilo lá é quem eu procuro. Não posso ficar aqui para sempre.

_ Senhor, Paulo. Ainda que quisesse, não lhe seria possível sair da cidade nas próximas horas. Na verdade, dada a força do vento, não creio que seja prudente nem sair deste edifício. De qualquer modo, precisamos de algum tempo para resolver essa questão da identificação. Assim, saberemos se “aquilo” é ou não, seu pai!

_ Me desculpe, doutor. Não quero que me entenda mal. Como tinha dito a Edgar, diversos sinais no corpo indicam que ele é o certo. Há também a documentação. Enfim, só quero saber...o rosto dele, sabe? Deixe pra lá, só o libere logo para que eu acabe com isso.

_ Está bem. Por que não me acompanha num chá para que possamos discutir os detalhes da liberação?

Comecei a perceber que minha crescente irritação só iria manter-me mais tempo lá e, apesar de duvidar que naquele momento meu corpo possuisse órgãos destinados à digestão, aceitaria participar de um banquete se isso me tirasse daquela cidade. Sem protestar acompanhei o chefe e seu subordinado rumo à saída do prédio, mas pouco antes da porta de entrada tomamos um corredor à direita o qual não tinha percebido quando cheguei; comecei a me dar conta que o morgue era um imenso conjunto de corredores e salas. A caminhada terminou numa cozinha improvisada. Edgar apanhou duas xícaras e as encheu de chá, ofertando uma para A. Conceição e outra a mim. Na expectativa de que uma atitude mais cooperativa me tirasse dali, comecei a sorver o líquido quente.

De repente, o calor e aroma do chá inglês pareciam estar atendendo alguma necessidade física oculta de meu corpo, tal o bem-estar que se apossou de mim. Partindo do tronco, a sensação prazerosa foi seguindo em direções opostas e logo, o desejo de deitar e aproveitar o momento tornou difícil que eu sustentasse a cabeça. Em seguida, já não podia identificar qual de meus anfitriões falava comigo:

_ O senhor está se sentindo bem?

Quando despertei estava deitado num velho sofá do escritório. Pelo cheiro do móvel, podia-se jurar que ele era usado quando a geladeira não tinha espaço suficiente. Apesar da camada de pó, o mostrador do relógio de parade marcava três horas da madruga; dormira por cerca de uma hora e meia. Era estranho que o cansaço tivesse me arrebatado de modo tão súbito, mas não era de todo impossível já que dirijira tempo demais sob tensão.

Com dificuldade para manter o equilíbrio sai caminhando pelas dependências do necrotério enquanto gritava por Edgar e seu chefe. Ninguém atendeu aos meus chamados. Mas eles não eram os únicos a se ausentaram, na gaveta onde o suposto corpo de Mário devia estar repousando não havia mais nada!

Olhando pela porta de entrada constatei que objetos pouco mais pesados que um homem grande mantinham-se no lugar com teimosa dificuldade. Seria impossível que ambos tivessem saído pela porta da frente carregando o corpo. Notei também que além do prédio no qual me encontrava somente uma construção a quase duas quadras tinha luz: um templo religioso. Então me lembrei do que o chefe de Edgar tinha dito sobre sua ocupação preferencial, era provável que ele estivesse ali com seu rebanho orando para que o furacão os poupasse.

Voltei para dentro a fim de me proteger do vento e decidir o que fazer. De um lado estava minha impaciência nata a estimular-me a ir até o templo correndo. De outro, minhas pernas ainda sem coordenação pelo desmaio. Felizmente, quando a primeira já estava por arrebatar-me numa empreitada suicida, ouvi uma porta batendo próxima à sala do rádio. Andar no passo mais rápido que me era possível não foi o suficiente para alcançar a pessoa antes que esta deixasse o local fazendo o mesmo estardalhaço de que quando entrara.

Quando por fim cheguei ao local de onde vieram os sons, descobri que se tratava da porta metálica ao final do corredor da sala do rádio. Meus músculos pareciam anestesiados e precisei de muita força para movê-la. A pouca lubrificação explicava o porquê de tanto ruído. À minha frente, uma vela que se afastava no escuro permitiu perceber que se tratava de um túnel bastante longo. Mesmos com meus gritos, o portador da fonte de luz continuou se afastando e, devido à lentidão imposta por minha condição física, tive que compensar com o tatear de paredes a limitação imposta pelo escuro.

Impossível precisar quanto tempo depois minhas mãos tocaram uma porta semelhante àquela pela qual já passara. Empurrando-a, passei a ouvir uma voz clamando a toda intensidade:


“Eis o sinal!”

A que um coral respondia:

“Obrigado, ò Pai”

Identifiquei nas vozes A. Conceição estimulando seu rebanho. Empurrando ainda mais a porta percebi que o túnel me trouxera a uma das laterais do templo. Fazia sentido: uma vez finalizados os procedimentos funerários, os falecidos podiam ser velados sem o incômodo de transportá-los pela rua. A ladainha repetida à exaustão era proferida por dezenas de pessoas que formavam um círculo em torno do altar. Mas ao invés de um ídolo qualquer, o objeto de adoração era o corpo sem rosto. Ele estava nu e à sua volta havia várias facas e punhais. Edgar, com uma vela na mão, acabava de depositar mais dois objetos em torno dele: a carteira de motorista de Mário e seu inseparável pedaço de jornal.

Constatei então que minha presença não era segredo:

_ Senhor, Paulo. Achei que não acordaria mais hoje! Talvez Edgar tenha errado na dose ou quem sabe foi outro milagre que tenha se recuperado tão rápido? Mas venha, venha degustar a obra divina. Tome seu lugar de honra. Afinal, de todos nós, o senhor foi o escolhido para ser filho do portador do sinal.

_ “Sinal”?

_ Sim. De que ele está voltando!

_ Do quê você está falando?

_ Não percebe? Todos nós depois de mortos guardamos por algum tempo algo que permite que nossas antigas moradas sejam reconhecidas: a alma. Esta se libera gradativamente conforme o corpo se desfaz. Mas o invólucro de seu pai já está vazio! Eis o motivo de não poderrmos indenticar nele as feições do antigo dono: falta-lhe a alma! Tal milagre só pode representar um aviso de algo muito importante. Este é um sinal de que nosso Pai em breve estará de volta para salvar os seus! Não se sente honrado, senhor Paulo? De ter alguém de sua família servindo a um propósito tão elevado? Junte-se a nós e venha se tornar um com o instrumento de Deus.

A um sinal de seu líder as dezenas de pessoas que estavam em volta ao corpo foram se afastaram formando um corredor entre mim e o altar. Diante de tanta loucura, minha reação não podia ter sido pior:

_ Seus cretinos! Esse daí não é instrumento divino coisa nenhuma! Podem louvá-lo o quanto quiserem, mas acreditem Deus jamais escolheriam um bêbado irresponsável para representá-lo!

Minha suposta ingratidão em não reconhecer o privilégio que me fora concedido pelo altíssimo transformou os cordeiros de A. Conceição em inquisidores ávidos para depurarem meus pecados. Fui agarrado com violência e enquanto me traziam à força até o altar recebia socos e pontapés. Ao término do trajeto eu estava bastante machucado e me mantiveram de joelhos, seguro pelos braços e cabelos.

_ Infiel! Reconheça a grandiosidade do que está à sua frente – gritava o descontrolado médico-guru enquanto empurravam meu rosto sobre o “não-rosto” do morto.

“Reconhecer”? Então, volto à primeira vez que tive dificuldade em reconhecer o suposto dono daquele corpo. Acabo de completar dezoito anos e um antigo conhecido de Mário me avisa que ele está em dificuldades. Fazia seis anos desde que ele abandonara minha mãe trocando-a em definitivo pela bebida. Não sei por qual motivo, mas vou procurá-lo no local indicado pelo tal sujeito. É domingo de manhã bem cedo, mas os botecos já estão repletos de homens em busca do líquido que os escraviza. O viciado que quero, contudo, não está entre os demais. Pergunto em vários bares e pago inúmeras doses, até que por fim, alguém me diz que o procurado está sentado numa praça ali perto. Conheço o lugar, Mário me levava lá para brincar quando pequeno.

Chegando à praça, olho ao redor, mas não há ninguém ali. Ou melhor, há um mendigo mal cheiroso, cabeludo e mais sujo do que se possa imaginar ser possível. A criatura está sentada numa calçada com um olhar perdido para o chão. Lanço um olhar de desprezo para aquilo que já foi um homem e sigo em frente. Em vão. Quem busco, não está nas proximidades. Decido voltar e ir embora para casa. Estou praguejando contra o homem que disse tê-lo visto naquele lugar quando volto a avistar o mendigo petrificado. Dessa vez, algo me faz prestar atenção nele. Aos poucos ele vai se tornando familiar e me aproximo. Contendo a ânsia de vômito, chego próximo ao homem e temendo a resposta pergunto: “pai, é você?”. Antes que o lento movimento para erguer a cabeça me permita ver seus olhos, uma voz emerge do abismo e me responde “talismã?” Com lágrimas nos olhos, desejo não ser seu filho...

Também estava com os olhos molhados quando ouvi A. Conceição ordenar:

_ Tirem esse miserável daqui! Ele não é digno de estar entre nós.

Inúmeras mãos me afastaram bruscamente do corpo e, por um motivo, tentei evitar a perda de contato. Então, me vi com cerca de cinco anos. Estou lutando com todas minhas fibras musculares para evitar que um dos garçons de Mário me arraste para fora de seu restaurante. Dentro da cozinha do estabelecimento, o patrão e um ajudante tentam conter o vazamento de um enorme butijão de gás. Imploro a meu captor que me deixe ficar, mas sua a força é muito maior que a minha. Antes que ele me coloque no chão do outro lado da rua, paro de lutar e prometo que ficarei quieto. Minha primeira mentira. Assim que o pobre se descuida saio correndo; o carro que quase me atropela quando cruzo a rua, impede que meu guardião me alcance. Esbaforrido entro na cozinha, e usando a única arma que conheço imploro: vamos embora, papai! Mário que nunca pôde com minhas lágrimas me tira dali. Assim que atingimos a distância suficiente para não sermos atingidos, uma explosão dá fim à vida do ajudante de cozinha e à metade do restaurante. Meu pai me abraça e me chama de um nome esquisito: “meu talismã”.

Trinta e cinco anos depois, eles continuavam me levando para longe do altar. Percebi que da mesma forma que tinha me livrado daquele garçom, precisava me libertar das mãos que me arrastam ou perderia Mário. Como outra promessa vã estava fora de questão, reuni forças desconhecidas e desferi potentes socos e cotoveladas nos fiéis. Surpreendidos pela reação inesperada eles me soltaram e parti rumo ao corpo. Apanhando um dos punhais que se encontrava a seu lado, agarrei o líder religioso e pressionei-lhe o instrumento perfurante contra o pescoço.

_ Não se importem comigo, meus irmãos – foi a resposta do médico à ameaça. Continuem louvando o escolhido. Nosso pai não nos abandonará e em breve estará aqui para salvar os seus.

_ Cale a boca! – gritei pressionando um pouco mais a lâmina. Deixe-me sair daqui com o corpo ou você vai estar deitado ao lado dele antes que suas ovelhas possam salvá-lo.

Os fanáticos começam a abrir espaço. Com dificuldade para manter meu refém imóvel comecei a apanhar os pertences do falecido. Primeiro, sua carteira de motorista e, por fim, o velho pedaço de jornal do qual ele jamais se separava. Não havia mais vestígio dos caracteres originalmente impresso nele, apenas meu apelido e número de telefone manuscritos eram legíveis.

_ “Corpo”? Pensei que para você ele era um “bêbado irresponsável” – esbraveja A. Conceição no momento em que finalmente me lembro do significado daquele pedaço de papel.

Retirando o punhal de seu pescoço, viro-o de modo que este fique de frente para mim:

_ Não, aquele não é um corpo, muito menos um bêbado, é meu pai. Entendeu? – digo com o mesmo orgulho com a qual meu velho não se cansava de mostrar para todos o jornal com meu nome entre os aprovados do vestibular.

As lágrimas surgiram quando percebi que não mais o ouviria dizendo “talismã” ou “meu orgulho”. Já não me importava que A. Conceição tivesse tirado o punhal de minhas mãos nem que naquele momento o objeto estivesse gravado em minha barriga. Tomado pela dor, me arrastei com dificuldade por sobre meu próprio sangue, ora escorregando, ora progredindo alguns centímetros em direção ao altar. Estranhamente, ninguém se opôs, talvez pensassem que até um ingrato como eu merecia ser perdoado antes do fim. Incapaz de ficar de pé encostei-me na mesa ritual abaixo de onde se encontrava meu pai. Consegui erguer o braço esquerdo e puxar-lhe a mão fria para junto da minha. Então, apertei-a com entusiasmo, como deveria ter feito há dois anos. Naquele dia, recusei seu o aperto de mão quando soube que ele não voltaria à clínica de reabilitação; disse que queria viver seus últimos dias sem cobranças. Talvez tenha sido a emoção de finalmente me dar conta de minha perda ou quem sabe foram os muitos golpes na cabeça, mas sem dúvida, naquele momento senti meu aperto sendo retribuído.

“Será possível que ele ainda está vivo?” pensei. Desesperado, tentei mais uma vez erguer-me para vê-lo. Mas sua mão e braço que se encontravam pouco acima de minha cabeça me impediram. No instante seguinte, vi por um breve segundo A. Conceição, seu rebanho e tudo à minha volta ser envolvido pelo fogo.

“Deus veio” pensei.

Quando acordei sobressaltado numa cama de hospital, minha irmã caçula que morava no exterior estava ao meu lado. Abraçou-me com força e me beijou diversas vezes no rosto enquanto me encharcava com suas lágrimas. Achou que eu não iria resistir aos ferimentos causados pela explosão.

“Explosão?”

Fui informado então de que quando o furacão atingiu as instalações a antiga indústria química de San Miguel ele liberou o conteúdo de um tanque que se suponha vazio. Milhares de toneladas de gás etileno acabaram sendo liberadas. Daí, os bombeiros acreditavam que um raio ou faísca teriam atingido a substância altamente inflamável. A pior parte da explosão colheu o templo da cidade. Todos os que estavam lá “orando por suas vidas”, à exceção de mim, morreram queimados. Supostamente eu escapara porque estava atrás do altar.

Em resposta ao meu relato fantástico sobre os acontecimentos de San Miguel, ela respondeu que tudo estava bem; os médicos já a tinham prevenido quanto aos efeitos alucinatórios do etileno. Certo de que jamais convenceria a cabeça-dura, não insisti com a história. Então, perguntei-lhe sobre o sepultamento de nosso pai. A esperança que motivou a pergunta se concretizou quando ela me disse que tinha decido esperar que eu acordasse para sepultá-lo; uma espera de dois meses.

Três dias depois, ainda com muita dificuldade para andar, cheguei ao velório de meu pai em uma cadeira de rodas. Fui conduzido até ao lado da urna que abrigava seu corpo e, nervoso, pedi a amigos que me ajudassem a ficar de pé. Assim que enxerguei a parte superior do caixão percebi que ele estava lacrado. Uma pequena janela de vidro permitia apenas uma visão parcial do rosto de quem repousava ali. Lá dentro, um par de olhos cerrados compunha a conhecida expressão de meu querido pai quando dormia.

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