Douglas estava de costas para a rua fechando o portão de casa quando
ouviu a voz que até uma semana atrás era desconhecida, mas que agora parecia
sua sombra. Virou-se com calma para encarar o Delegado Mechior e ter com ele a
quarta conversa da semana, ou poderia se dizer, participar de mais uma sessão
de sopapos na delegacia da cidade. Sentiu que uma irritação começava a
fermentar dentro de si, mas então lembrou-se que passava o dia vendo gente
cujos estresses ao longo da vida não significavam mais nada. Esse pensamento
levou a outro que o fez rir, imaginou parentes a enterrar seus entes queridos
caso alguém mais tivesse de faltar ao trabalho naquela manhã.
Inflexível quanto a sua metodologia, o policial ordenou ao investigador-capanga
que algemasse Douglas e o pusesse na viatura para que este fosse sendo
convenientemente “amaciado” no trajeto até a delegacia. Lá chegando, o rapaz se
não se conteve e riu mais uma vez para si: a delegacia era desproporcionalmente
grande para a pequena cidade e ele ficava imaginando aonde Melchior encontraria
ocupantes para aquele mausoléu. A face do investigador ruboreceu de ódio,
provavelmente achando que o prisioneiro sem crime, iria dele ou de seu chefe e
deu-lhe um forte tapa na nuca.
Sentando na sala de interrogatório que Douglas suspeitava ter inaugurado,
as mesmas questões dos dias anteriores foram postas a ele pelo delegado. Embora
a coleção de hematomas fosse maior que na primeira sessão de tortura, as
respostas foram as mesmas.
“Onde você trabalhou antes de chegar à minha cidade?”
“No cemitério de Penápolis exercendo a mesma função de coveiro”.
Se a resposta já era irritante por não ser a que Melchior queria ouvir,
ela tinha um efeito ainda mais nefasto ao ouvido do delegado por saber que
aquele sujeito tinha trabalhando em sua cidade natal sem que ele jamais tenha
ouvido falar dele.
A ladainha continuava com o chefe da delegacia querendo saber motivo
Douglas tinha escolhido aquela cidade e como tinha conhecido a família de seu
Laurindo Miranda, o fazendeiro mais rico da região. Tomando fôlego ele
respondeu à primeira questão: soubera da vaga de coveiro na atual cidade onde o
pagamento era melhor. Por outro lado, encontrou o referido patriarca da família
Miranda pela primeira vez durante o sepultamento de uma tia centenária.
Melchior já tinha ouvido tudo aquilo e voltava a repetir sua cara de não
convencimento. Tornava a indagar como Douglas poderia ter visto os membros da
família Miranda há apenas poucas semanas, mas ter cortejado de forma tão impertinente
a caçula da casa, Marília Miranda. Ao que calmante o rapaz respondeu:
“Me apaixonei à primeira vista.”
O coveiro também lembrou ao delegado que inicialmente seus galanteios
tinham sido correspondidos com bilhetes carinhosos deixados nos mesmos locais nos
quais ele deixava flores e lembranças para a garota. O Melchior retrucou aos
berros que a aparente anuência da moça, contudo, não passou de um grande
engano: pensando que o autor dos misteriosos presentes fosse um antigo namorado,
pelo qual ainda era apaixonada, a moça agiu da maneira que agiu.
Infelizmente para Douglas, quando soube do engodo, a indignada foi direto
a seu pai, Laurindo Miranda, relatar a ousadia do coveiro. Foi assim que o
patriarca dos Miranda entrou na vida de Douglas.
Claro que uma paquera inocente não iria render tantas surras! Douglas
sabia que nem um fóssil imbecil como Laurindo Mirana perderia seu tempo
mandando seu delegado-capanga espancar quem quer que fosse. O que o Melchior
realmente queria saber se o coveiro tramava algo. Afinal, desde o primeiro
encontro com os Miranda, mais dois de seus parentes tinham morrido, sua mãe e
filho mais novo! Obviamente, nada podia ser atribuido ao rapaz e o delegado
sabia disso, afinal, a genitora do médico amanheceu morta (algo bem comum para
idosos) enquanto seu filho de Melchior morrera aos quinze anos de um extenso
derrame hemorrágico. Tudo num intervalo cinco dias!
Contudo, por mais irracional que pudesse parecer, o delegado perguntava
ao rapaz qual seu envolvimento naquelas mortes. Sarcástico, o conveiro não pode
privar-se de dizer que o autor das mortes era Deus, ele só enterrava. Esse novo
gracejo foi premiado com um belo soco ao pé do ouvido como sempre dado pelo capanga-investigador
do delegado-capanga.
Sabedor dos álibis do jovem, o delegado não deve alternativa senão
liberá-lo pela quarta vez de um aprisionamento ilegal. Pouco tempo depois,
sozinho em sua sala, ele revisava todos os passos da investigação que fez sobre
Douglas. Toda a história contada por ele estava respaldada em fatos.
Tendo visitado o antigo cemitério no qual o coveiro trabalhara em sua
cidade natal a cerca de cento e setenta quilômetros dali, foi ter com os antigos colegas do
rapaz. Dois deles, confirmaram que ele havia trabalhado lá e que era um
trabalhador exemplar. Embora ambos não fossem próximos do rapaz e na verdade dissessem
que ele lhes causava arrepio. Fato que os dois funcionários do cemitério
reconheceram ser estranho; não esperavam se assustar com nada considerando a
natureza de seu ofício.
Acontece que eles contaram que como cidade não era muito grande, na
maioria dos dias não havia serviço, mas que isso não impedia Douglas de limpar
lápides e abrir jazigos familiares para
manter tudo organizado. Até aí tudo bem, mas ambos tiveram a impressão de que
em algumas ocasiões o coveiro sob investigação havia deixado jazidos abertos
pouco antes da morte repentina de algum membro da família dona da cova. Por
isso, o medo que Douglas lhes inflingia, mas ambos admitiram que aquilo não
passava de uma superstição boba.
Já de volta à cidade na qual era delegado titular, Melchior foi ao atual
emprego de Douglas perguntou a um outro coveiro se ele tinha visto alguma coisa
suspeita sobre o rapaz em relação a seu serviço no cemitério. O homem, um
senhor alcóolatra de meia idade que se mantia sóbrio apenas o suficiente para
ajudar na tarefa de descer os caixões na cova, fez cara de espanto.
“Que tipo de coisa estranha?”
Melchior não tinha como dizer ao homem se ele vira seu colega mexendo em
túmulos de modo a causar mal a pessoas sem parecer débil mental e respondeu
dizendo:
“Qualquer coisa.”
Obteve um não como resposta e percebeu que o máximo que sua investigação
fez foi sugerir que o rapaz era um trabalhador bom e honesto. Não que ele se
importasse em dar-lhe quantas surras fossem necessárias, mas precisava de algo
“sólido” para metê-lo a ferros por bastante tempo. O fato de Douglas ter
cortejado a filha de Laurindo Miranda não era crime. Pedro Mendoça, o juiz da
cidade, não autorizaria uma prisão de outra forma.
Melchior sabia que fora Douglas ser extremamente inteligente e
articulado, algo que ficava ainda mais gritante quando se pensava em sua
ocupação, o rapaz nada tinha digno de nota.
O delegado tinha marcado almoçar com Miranda para relatar o que havia
descoberto sobre o investigado e sabia que o fazendeiro enlouqueceria ao ouvir aquilo
que Melchior tinha para lhe contar: nada. O velho estava obcecado com a ideia
de que a desgraça que se abatera sobre sua família era culpa do coveiro; dizia
que era intuição e que ela nunca falhara.
De repente o delegado sente a fibração do celular ao bolso e pensa
“falando no diabo”. Inesperadamente quem tinha novidades era Miranda:
“Quero que você prenda esse maldito coveiro e perca a chave da cela. Ele
teve a ousadia de surpreender minha filha na saída da escola! Está ouvindo,
Melchior?”
E antes que este pudesse responder:
“Mas não ficou só nisso. Ele disse para Maristela que poderia protegê-la
dessas mortes na minha família, caso ela o aceitasse. Se não, ela estaria por
sua conta risco! Está ouvindo, seu palerma? Eis a sua maldita “prova”. Ele
ameaçou minha filha”.
Dito isso, Miranda parou de falar…
O delegado entendeu o recado e desligou. Agora, como dizem, iria arrancar
o couro do moço. Obviamente que o primeiro lugar no qual procurou Douglas foi o
cemitério, mas só o pobre diabo do vigilante bêbado estava no local. Ele
garantiu a Melchior que como não havia mais sepultamentos marcados para aquele
dia, fora ele e os “moradores” do local, não havia ninguém ali; todos os outros
funcionários já tinham ido.
Quando já havia virado as costas, o delegado ouviu uma ressalva curiosa
feita pelo homem. Ele vira Douglas indo com pás e ferramentas para alguma parte
do cemitério bem cedo, antes de amanhecer, e depois não o viu mais. Mechior não
se considerava um sujeito dado a “frescuras”, mas um tremor percorreu todo seu
corpo com aquela notícia. Perguntou ao vigia se podia dar uma olhada pelo
cemitério e esse deu de ombros advertindo sobre o fato de estar quase
totalmente escuro; não queria que alguém, muito menos o delegado da cidade, se
machucasse em seu turno.
Com passos rápidos Melchior sabia para onde dirigir-se e novo calafrio
percorreu seu corpo quando confirmou sua suspeita: o jazigo dos Mirandas estava
aberto! Saiu furioso e ordenou ao vigia que fechasse o mesmo. Este arregalou os
olhos e disse que não sabia como fazê-lo. Espargindo saliva para todos os lados
o delegado ameaçou:
“Se aquele jazigo não estiver fechado quando eu voltar, o senhor estará
preso!”
Não parou para ver a cara de horror do homem, mas por algum motivo
arremessou-lhe 50 pratas antes de entrar em seu carro.
Na próxima parada, no bar onde o coveiro fazia suas refeições e queimava
o restante de seu dinheiro com bebidas também não o tinham visto. Depois de
procurar por toda a cidade desistiu, o rapaz havia desaparecido.
Estava sem alternativa, era quase hora do jantar e teria de encarar, mais
uma vez, o mal humor de Miranda. Pegou o telefone e ligou para o fazendeiro
para avisar que se atrasaria alguns minutos. Segundos depois um homem atendeu
ao celular do fazendeiro.
“Quem está falando?” - perguntou o delegado.
Então, ouviu de Estáquio, um dos funcionários de Miranda contando que seu
patrão tinha falecido enquanto falava ao telefone!
Segundo o médico que foi chamado para atender o caso, o fazendeiro fora vítima
de um AVC ou infarto fulminante; algo esperado para um hipertenso que fingia
tomar a medicação.
Com o corpo todo trêmulo Melchior desligou o celular, mas segundos depois
esse vibrou novamente. Apertou o botão para atender a chamada, mas um calafrio
muito mais forte que os anteriores o fez ter a sensação de que iria desabar,
mas teve determinação para dizer:
“Alô…”
“Doutor, Melchior – foi dizendo de sopetão a voz – o senhor pediu para ligar
se o Douglas aparecesse. Pois então, ele chegou aqui antes de mim, por volta de
quatro da tarde, deu uns trocados para meu colega dizendo queria ver algo.
Assim que cheguei e percebi o expulsei daqui; não quero ninguém que não seja
funcionário por aqui. A única coisa que ele fez foi abrir um jazigo, doutor, o
de sua família, mas vou fechar tudo! Pode deixar, doutor. Doutor?…”
Inerte, o coração de Melchior já não batia pela falta do sangue que
esvaia pelos nariz, olhos e boca dele…
Parabéns ,muito bacana o texto!
ResponderExcluirJustiça seja feita, a inspiração veio do Relato do Colega Douglas Oliveira.
ResponderExcluirInscrevi esse conto no desafio Setembro/2013 do site Entrecontos (fiquei em 9o entre 29 contos). E no link as importantes críticas recebidas:
ResponderExcluirhttp://entrecontos.com/2013/09/12/o-convite-coveiro/
Link sobre os resultados:
ResponderExcluirhttp://entrecontos.com/2013/09/30/set-2013-resultados/