sexta-feira, 3 de maio de 2013

O Convite





Douglas estava de costas para a rua fechando o portão de casa quando ouviu a voz que até uma semana atrás era desconhecida, mas que agora parecia sua sombra. Virou-se com calma para encarar o Delegado Mechior e ter com ele a quarta conversa da semana, ou poderia se dizer, participar de mais uma sessão de sopapos na delegacia da cidade. Sentiu que uma irritação começava a fermentar dentro de si, mas então lembrou-se que passava o dia vendo gente cujos estresses ao longo da vida não significavam mais nada. Esse pensamento levou a outro que o fez rir, imaginou parentes a enterrar seus entes queridos caso alguém mais tivesse de faltar ao trabalho naquela manhã.

Inflexível quanto a sua metodologia, o policial ordenou ao investigador-capanga que algemasse Douglas e o pusesse na viatura para que este fosse sendo convenientemente “amaciado” no trajeto até a delegacia. Lá chegando, o rapaz se não se conteve e riu mais uma vez para si: a delegacia era desproporcionalmente grande para a pequena cidade e ele ficava imaginando aonde Melchior encontraria ocupantes para aquele mausoléu. A face do investigador ruboreceu de ódio, provavelmente achando que o prisioneiro sem crime, iria dele ou de seu chefe e deu-lhe um forte tapa na nuca.

Sentando na sala de interrogatório que Douglas suspeitava ter inaugurado, as mesmas questões dos dias anteriores foram postas a ele pelo delegado. Embora a coleção de hematomas fosse maior que na primeira sessão de tortura, as respostas foram as mesmas.

“Onde você trabalhou antes de chegar à minha cidade?”

“No cemitério de Penápolis exercendo a mesma função de coveiro”.

Se a resposta já era irritante por não ser a que Melchior queria ouvir, ela tinha um efeito ainda mais nefasto ao ouvido do delegado por saber que aquele sujeito tinha trabalhando em sua cidade natal sem que ele jamais tenha ouvido falar dele.

A ladainha continuava com o chefe da delegacia querendo saber motivo Douglas tinha escolhido aquela cidade e como tinha conhecido a família de seu Laurindo Miranda, o fazendeiro mais rico da região. Tomando fôlego ele respondeu à primeira questão: soubera da vaga de coveiro na atual cidade onde o pagamento era melhor. Por outro lado, encontrou o referido patriarca da família Miranda pela primeira vez durante o sepultamento de uma tia centenária.

Melchior já tinha ouvido tudo aquilo e voltava a repetir sua cara de não convencimento. Tornava a indagar como Douglas poderia ter visto os membros da família Miranda há apenas poucas semanas, mas ter cortejado de forma tão impertinente a caçula da casa, Marília Miranda. Ao que calmante o rapaz respondeu:

“Me apaixonei à primeira vista.”

O coveiro também lembrou ao delegado que inicialmente seus galanteios tinham sido correspondidos com bilhetes carinhosos deixados nos mesmos locais nos quais ele deixava flores e lembranças para a garota. O Melchior retrucou aos berros que a aparente anuência da moça, contudo, não passou de um grande engano: pensando que o autor dos misteriosos presentes fosse um antigo namorado, pelo qual ainda era apaixonada, a moça agiu da maneira que agiu.

Infelizmente para Douglas, quando soube do engodo, a indignada foi direto a seu pai, Laurindo Miranda, relatar a ousadia do coveiro. Foi assim que o patriarca dos Miranda entrou na vida de Douglas.

Claro que uma paquera inocente não iria render tantas surras! Douglas sabia que nem um fóssil imbecil como Laurindo Mirana perderia seu tempo mandando seu delegado-capanga espancar quem quer que fosse. O que o Melchior realmente queria saber se o coveiro tramava algo. Afinal, desde o primeiro encontro com os Miranda, mais dois de seus parentes tinham morrido, sua mãe e filho mais novo! Obviamente, nada podia ser atribuido ao rapaz e o delegado sabia disso, afinal, a genitora do médico amanheceu morta (algo bem comum para idosos) enquanto seu filho de Melchior morrera aos quinze anos de um extenso derrame hemorrágico. Tudo num intervalo cinco dias!

Contudo, por mais irracional que pudesse parecer, o delegado perguntava ao rapaz qual seu envolvimento naquelas mortes. Sarcástico, o conveiro não pode privar-se de dizer que o autor das mortes era Deus, ele só enterrava. Esse novo gracejo foi premiado com um belo soco ao pé do ouvido como sempre dado pelo capanga-investigador do delegado-capanga.

Sabedor dos álibis do jovem, o delegado não deve alternativa senão liberá-lo pela quarta vez de um aprisionamento ilegal. Pouco tempo depois, sozinho em sua sala, ele revisava todos os passos da investigação que fez sobre Douglas. Toda a história contada por ele estava respaldada em fatos.

Tendo visitado o antigo cemitério no qual o coveiro trabalhara em sua cidade natal a cerca de cento e setenta quilômetros dali, foi ter com os antigos colegas do rapaz. Dois deles, confirmaram que ele havia trabalhado lá e que era um trabalhador exemplar. Embora ambos não fossem próximos do rapaz e na verdade dissessem que ele lhes causava arrepio. Fato que os dois funcionários do cemitério reconheceram ser estranho; não esperavam se assustar com nada considerando a natureza de seu ofício.

Acontece que eles contaram que como cidade não era muito grande, na maioria dos dias não havia serviço, mas que isso não impedia Douglas de limpar lápides e abrir jazigos familiares  para manter tudo organizado. Até aí tudo bem, mas ambos tiveram a impressão de que em algumas ocasiões o coveiro sob investigação havia deixado jazidos abertos pouco antes da morte repentina de algum membro da família dona da cova. Por isso, o medo que Douglas lhes inflingia, mas ambos admitiram que aquilo não passava de uma superstição boba.

Já de volta à cidade na qual era delegado titular, Melchior foi ao atual emprego de Douglas perguntou a um outro coveiro se ele tinha visto alguma coisa suspeita sobre o rapaz em relação a seu serviço no cemitério. O homem, um senhor alcóolatra de meia idade que se mantia sóbrio apenas o suficiente para ajudar na tarefa de descer os caixões na cova, fez cara de espanto.

“Que tipo de coisa estranha?”

Melchior não tinha como dizer ao homem se ele vira seu colega mexendo em túmulos de modo a causar mal a pessoas sem parecer débil mental e respondeu dizendo:

 “Qualquer coisa.”

Obteve um não como resposta e percebeu que o máximo que sua investigação fez foi sugerir que o rapaz era um trabalhador bom e honesto. Não que ele se importasse em dar-lhe quantas surras fossem necessárias, mas precisava de algo “sólido” para metê-lo a ferros por bastante tempo. O fato de Douglas ter cortejado a filha de Laurindo Miranda não era crime. Pedro Mendoça, o juiz da cidade, não autorizaria uma prisão de outra forma.

Melchior sabia que fora Douglas ser extremamente inteligente e articulado, algo que ficava ainda mais gritante quando se pensava em sua ocupação, o rapaz nada tinha digno de nota.

O delegado tinha marcado almoçar com Miranda para relatar o que havia descoberto sobre o investigado e sabia que o fazendeiro enlouqueceria ao ouvir aquilo que Melchior tinha para lhe contar: nada. O velho estava obcecado com a ideia de que a desgraça que se abatera sobre sua família era culpa do coveiro; dizia que era intuição e que ela nunca falhara.  

De repente o delegado sente a fibração do celular ao bolso e pensa “falando no diabo”. Inesperadamente quem tinha novidades era Miranda:

“Quero que você prenda esse maldito coveiro e perca a chave da cela. Ele teve a ousadia de surpreender minha filha na saída da escola! Está ouvindo, Melchior?”

E antes que este pudesse responder:

“Mas não ficou só nisso. Ele disse para Maristela que poderia protegê-la dessas mortes na minha família, caso ela o aceitasse. Se não, ela estaria por sua conta risco! Está ouvindo, seu palerma? Eis a sua maldita “prova”. Ele ameaçou minha filha”.

Dito isso, Miranda parou de falar…

O delegado entendeu o recado e desligou. Agora, como dizem, iria arrancar o couro do moço. Obviamente que o primeiro lugar no qual procurou Douglas foi o cemitério, mas só o pobre diabo do vigilante bêbado estava no local. Ele garantiu a Melchior que como não havia mais sepultamentos marcados para aquele dia, fora ele e os “moradores” do local, não havia ninguém ali; todos os outros funcionários já tinham ido.

Quando já havia virado as costas, o delegado ouviu uma ressalva curiosa feita pelo homem. Ele vira Douglas indo com pás e ferramentas para alguma parte do cemitério bem cedo, antes de amanhecer, e depois não o viu mais. Mechior não se considerava um sujeito dado a “frescuras”, mas um tremor percorreu todo seu corpo com aquela notícia. Perguntou ao vigia se podia dar uma olhada pelo cemitério e esse deu de ombros advertindo sobre o fato de estar quase totalmente escuro; não queria que alguém, muito menos o delegado da cidade, se machucasse em seu turno.

Com passos rápidos Melchior sabia para onde dirigir-se e novo calafrio percorreu seu corpo quando confirmou sua suspeita: o jazigo dos Mirandas estava aberto! Saiu furioso e ordenou ao vigia que fechasse o mesmo. Este arregalou os olhos e disse que não sabia como fazê-lo. Espargindo saliva para todos os lados o delegado ameaçou:

“Se aquele jazigo não estiver fechado quando eu voltar, o senhor estará preso!”

Não parou para ver a cara de horror do homem, mas por algum motivo arremessou-lhe 50 pratas antes de entrar em seu carro.

Na próxima parada, no bar onde o coveiro fazia suas refeições e queimava o restante de seu dinheiro com bebidas também não o tinham visto. Depois de procurar por toda a cidade desistiu, o rapaz havia desaparecido.

Estava sem alternativa, era quase hora do jantar e teria de encarar, mais uma vez, o mal humor de Miranda. Pegou o telefone e ligou para o fazendeiro para avisar que se atrasaria alguns minutos. Segundos depois um homem atendeu ao celular do fazendeiro.

 “Quem está falando?”  - perguntou o delegado.

Então, ouviu de Estáquio, um dos funcionários de Miranda contando que seu patrão tinha falecido enquanto falava ao telefone! Segundo o médico que foi chamado para atender o caso, o fazendeiro fora vítima de um AVC ou infarto fulminante; algo esperado para um hipertenso que fingia tomar a medicação.

Com o corpo todo trêmulo Melchior desligou o celular, mas segundos depois esse vibrou novamente. Apertou o botão para atender a chamada, mas um calafrio muito mais forte que os anteriores o fez ter a sensação de que iria desabar, mas teve determinação para dizer:

“Alô…”

“Doutor, Melchior – foi dizendo de sopetão a voz – o senhor pediu para ligar se o Douglas aparecesse. Pois então, ele chegou aqui antes de mim, por volta de quatro da tarde, deu uns trocados para meu colega dizendo queria ver algo. Assim que cheguei e percebi o expulsei daqui; não quero ninguém que não seja funcionário por aqui. A única coisa que ele fez foi abrir um jazigo, doutor, o de sua família, mas vou fechar tudo! Pode deixar, doutor. Doutor?…”

Inerte, o coração de Melchior já não batia pela falta do sangue que esvaia pelos nariz, olhos e boca dele…



4 comentários:

  1. Parabéns ,muito bacana o texto!

    ResponderExcluir
  2. Justiça seja feita, a inspiração veio do Relato do Colega Douglas Oliveira.

    ResponderExcluir
  3. Inscrevi esse conto no desafio Setembro/2013 do site Entrecontos (fiquei em 9o entre 29 contos). E no link as importantes críticas recebidas:

    http://entrecontos.com/2013/09/12/o-convite-coveiro/

    ResponderExcluir
  4. Link sobre os resultados:

    http://entrecontos.com/2013/09/30/set-2013-resultados/

    ResponderExcluir