sábado, 10 de julho de 2010

Asfalto Orgânico



Newton estava cansado, dormira mal na noite anterior e, naquele dia, sua jornada de trabalho ultrapassara doze horas. Por isso, não admitia que ninguém na faixa da esquerda ficasse à sua frente. Temendo o farol alto e a possibilidade de que a imensa picape adotasse uma proximidade imprudente, os motoristas eram rápidos em cederem passagem ao bólido que se aproximava da traseira de seus veículos. Pelo menos, até que surgiu um carro que se mostrou indiferente à abordagem de intimidação. Embora a carroceria do retardatário beirasse a desintegração pelo esforço de manter-se a cento e dez por hora, seu condutor insistia em negar a Newton seu legítimo direito de ir e vir.

A inesperada ousadia do poizé, criou um impasse. Cansado demais para brigar, o piloto da picape decidiu abrir uma exceção ao desgraçado, ultrapassando-o pela direita. A dificuldade era que outras três tartarugas estavam perfiladas lado a lado com o carro que lhe impedia a passagem. Ciente de que sua única opção era a pista mais lenta, o apressado fez um movimento brusco cruzando quatro das seis faixas, a fim de deixar para trás a procissão de quelônios.

Segundos depois de alcançar seu propósito, Newton preparava-se para retornar às faixas mais rápidas quando ouviu um impacto contra o carro; atropelara alguma coisa. Rogou aos céus para que não fosse um daqueles mendigos de beira de estrada; não queria ter de passar a noite numa delegacia qualquer.

Receoso quanto aos problemas decorrentes de uma eventual omissão de socorro, parou o veículo e voltou em marcha à ré pelo acostamento. Depois de retornar cerca de trezentos metros com o coração acelerado, visualizou sua vítima: um animal. A espécie, contudo, era impossível de ser determinada já que seu corpo foi dividido em pequenas partes indistintas de carne, pêlos e sangue.

Excluída a possibilidade de aborrecimentos futuros, acelerou e decidiu ir em busca do tempo perdido. O dano imputado à criatura não lhe incomodou; ele nunca fora chegado a animais; jamais tivera um. Na realidade, quando fazia um inventário do que pensava sobre aqueles seres, percebia ter certa repulsa por eles; provavelmente isso era uma herança de sua mãe. Dentre as poucas reminiscências que tinha de antes da morte dela, visualizava-se deitado num quarto de paredes brancas enquanto recebia admoestações severas para que ficasse longe dos bichos, definidos por ela como “perigosos”. No momento em que folheava os registros mentais de sua tenra infância, reparou que um dos carros a lhe dar passagem trazia o adesivo: “mantenha distância, eu paro para animais”. Aquilo lhe provocou uma gargalhada.

Ao chegar em seu apartamento, Newton ligou para a noiva e contou o episódio do atropelamento da forma mais pungente que pôde. Assim, teve uma justificativa para cancelar o jantar que deveria acontecer mais tarde; desde que Sueli passou a pressioná-lo de forma insuportável para que se casassem, o desejo de proximidade de Newton oscilava, hoje ele estava em baixa. A estratégia funcionou e a moça foi obrigada a conformar-se com a dispensa, porém, não perdeu a oportunidade de discursar em favor de sua campanha. Lembrou ao noivo que se já estivessem casados ela poderia consolá-lo nesses momentos difíceis. Arrematou o lembrete dizendo que logo ele passaria pelo quadragésimo aniversário e que já era hora de oficializar sua condição de homem sério; por fim despediu-se desejando boa noite.

A inconsciência trouxe uma estranha fórmula de concretizar os votos de Sueli. Em seus sonhos, Newton dirigia a picape e sua mãe o acompanhava no banco do passageiro. Apesar dela não emitir qualquer som, de alguma forma, ele sentia-a orgulhosa pelo fato de seu querido filho estar dirigindo por aquela estrada pavimentada com restos de animais. À medida que o veículo avançava, Newton percebia os espasmos involuntários de vísceras e os movimentos dos olhos de cabeças decepadas. Nada poderia deixar o motorista mais satisfeito que finalmente concretizar o pueril e até então postergado, desejo de agradar à mãe. Quanto amanheceu, acordou revigorado e sabia o que deveria fazer em sua memória: cobrir cada centímetro de asfalto com os corpos daquelas criaturas perigosas.

Continuava pensando na falecida progenitora quando chegou em sua empresa. Lá, o mais novo funcionário que também era seu irmão, já estava trabalhando. Uma vez que nunca conheceram o pai, ele e Pedro, o mais velho dos dois, foram enviados para lares diferentes logo após a morte da mãe. Essas recordações vieram com uma pitada de ciúmes, pois o irmão provavelmente tinha lembranças muito mais nítidas do convívio em família, afinal, deveria ter cerca de dez anos quando foram separados. Lembrou-se ainda que, décadas depois, o reencontrou. Inicialmente, esforçou-se para que ambos se tornassem mais íntimos; chegou até a apresentá-lo à Sueli. Infelizmente, logo sua empolgação pelo companheiro que tanto desejara na infância, tornou-se decepção. Newton descobriu que apesar do irmão se um competente contador, este não tinha nada em seu nome, enquanto ele se tornara um bem sucedido empresário. Incomodado pelo fato de que alguém com o mesmo sangue que o seu, pudesse encarnar tão gritante exemplo de fracasso, contratou-o para cuidar dos números da firma. Obviamente, seu trabalho seria todo vigiado, pois aquele podia ser seu irmão, mas continuava sendo um estranho.

Depois de cumprimentar Pedro, dirigiu-se à sala que lhe cabia, a da presidência. Sua disposição, entretanto, mostrou-se inútil para atividades profissionais. Uma agitação incomum impedia que se concentrasse em suas obrigações. Com dificuldade, manteve o controle até o fim do expediente e o relaxamento só veio na hora em que acessou a rodovia na volta para casa: desejava mais que tudo voltar a vitimar algum animal e reviver o intenso prazer com o qual despertara naquela manhã. Porém, sua viagem de retorno ao lar decorreu sem incidentes.

Em seu apartamento, Sueli o aguardava; a surpresa momentânea pela invasão, deu lugar à lembrança de que fora ele a dar uma cópia da chave à noiva. Ao invés de se ofender, ele ficou grato pois esperava que o sexo faria com que esquecesse a frustração que o assolava. Entretanto, nem a habilidade da noiva de fazer amor, que Newton considerava primorosa, o acalmou.

Algum tempo depois, enquanto ela dormia, foi para a sala esperar pelo sono assistindo televisão. Ao Identificar o celular de Sueli na mesinha de centro, resolveu dar uma expiada; não que fosse ciumento, mas achava que essas inspeções sigilosas eram saudáveis e preventivas. No histórico de chamadas, ele viu um número excessivo de trocas de ligações entre a noiva e o irmão. O estranhamento da constatação provocou incômodo; o que ambos teriam tanto para falar entre si? Mas em seguida achou-se tolo; estava certo que ela o amava acima de tudo, afinal, já o demonstrara isso muitas vezes. Encontrou alivio na idéia de que provavelmente os dois estavam planejando uma festa surpresa para seu aniversário que se aproximava.

Nos dias seguintes que se seguiram, Newton saiu mais cedo do trabalho. Sua rotina resumia-se a encher o tanque da picape e rodar a noite inteira por rodovias e ruas da cidade, sempre faminto animais incautos. Em duas ocasiões foi premiado com gatos; criaturas que passou a considerar estúpidas por cruzarem a frente de seu carro assim que enxergavam os faróis.

Outra feita, o alvo fora um cachorro; mas dessa vez tivera que trapacear. Diferente dos felinos, essa espécie costumava permanecer no acostamento e Newton só conseguiu seu troféu avançando por essa parte da estrada; o que quase lhe custou um acidente. Ah, os cães; quase chegava a considerá-los adversários dignos.

Numa oportunidade, chegou a rumar para o litoral; sabia que na descida da serra existiam várias placas advertindo sobre a possibilidade de veados e outros seres cruzarem a via. Mas nenhum animal silvestre parecia querer respeitar a sinalização.

Em sua sede, começou a definir estratégias para aperfeiçoar seus métodos. Pesquisando os registros de acidentes em estradas e rodovias, deparou-se com um dado interessante: todos os dias, um número razoável de acidentes entre veículos motorizados e cavalos era reportado pela cidade. Contudo, a elevada massa corporal dos eqüinos, tornava os acidentes bastante danosos para condutores de carros e motos. Por mais que desejasse colher uma daquelas bestas, o mais prudente era manter-se longe delas. Pensou no privilégio dos maquinistas indianos que vez ou outra podiam gozar as venturas de nocautear elefantes.

Não demorou para que Newton concluísse que o custo-benefício de caçar animais para atropelá-los não compensava o tempo despendido na operação. Isso o enfurecia e tal condição tornava-se mais intensa ao constatar que ele na maioria das vezes, não era o responsável pelas massas orgânicas aderidas às vias pelas quais trafegava.

As aventuras noturnas de Newton começaram a refletir em seu relacionamento. Os prazeres do sexo não conseguiam sobrepujar o desejo represado de pavimentar ruas com sangue; então, pela primeira vez, ele não conseguiu fazer amor com sua noiva. Depois disso, a situação repetiu-se em muitas ocasiões nos dias seguintes. Paradoxalmente, por causa desses incidentes, Sueli passou a pressioná-lo ainda mais em relação ao casamento. Segundo ela, desde o dia que lhe contara do atropelamento, ele estava se tornando uma pessoa diferente e voltou a dizer que isso não aconteceria se estivessem juntos.

Pedro também não aceitou bem o crescente desleixo do irmão para com os negócios. Ele lembrou a Newton que era só um empregado e não era capaz de cuidar da empresa sem ajuda. Talvez por acreditar que a condição de irmão lhe desse esse direito, insistiu na advertência e ambos acabaram tendo uma briga séria quando Newton lembrou que se não fosse por ele, o irmão seria para sempre um nada. Ofendido, o empregado afastou-se com os olhos marejados.

Dias depois, quando a incompreensão em relação aos fracassos sexuais do noivo, já tinham levado Sueli a dizer que procuraria um substituto, caso as coisas não mudassem, Newton ouviu-a falando ao telefone por detrás da porta do banheiro. Não entendeu toda a conversa, mas o que captou foi suficiente para saber de um encontro na noite seguinte num Shopping próximo a casa dela.

Após passar o dia temendo que a noiva já estivesse pondo em prática suas recentes ameaças, Newton parou pouco antes das vinte horas em frente ao prédio dela. Passados alguns minutos, Sueli saiu em direção ao shopping e ele ordenou ao taxista que a seguisse. Dentro do estabelecimento, acompanhou-a de uma distância razoável até que, na altura de uma loja com cães expostos na vitrine, ela se encontrou com Pedro.

No começo, o gestual de ambos sugeria calma, então, Pedro foi ficando mais e mais exaltado até que sua linguagem corporal indicava claramente que ele estava prestes a agredir Sueli. Quando Newton se preparava para intervir, sua noiva, às lágrimas, abraçou Pedro; eles permaneceram assim por mais tempo do que Newton considerou apropriado. Ficou enlouquecido por constatar que o desgraçado do irmão, andava saindo direto da empresa para transar com sua futura cunhada. Que senhor presente tinha recebido na véspera de seu aniversário. Sua vontade foi de acabar com tudo ali mesmo, mas deu meia volta em direção à saída.

Rumou para seu apartamento a fim de apanhar a chave da picape. Ao abrir a porta do local, percebeu uma enorme caixa no meio da sala; tratava-se de um embrulho com direito a laço e tudo. Curiosamente, havia diversos furos em sua parte superior e o cartão afixado na lateral deixava claro quem o presenteara. Ao abrir a tampa, viu horrorizado um filhote de cachorro entregue ao sono. A mistura de ódio pela traição com o desprezo por aquela criatura, impulsionou-o a jogar a miniatura peluda pela janela, mas antes de tocá-la um mal-estar apossou-se de seu corpo. Fez o que veio fazer e foi até a garagem; depois descartaria o presente.

Aquela seria mais uma noite rodando por estradas, dessa vez porém, não tinha propósito definido. Sueli e Pedro fizeram com que ele se esquecesse do motivo que o levara a conhecer tão bem aqueles caminhos. Enquanto dirigia, seu celular revezava-se entre ligações, de ambos, os quais de agora em diante eram falecidos para Newton.

Longe dali, no shopping, seu irmão e noiva não entendiam porque ele não estava atendendo o celular.

- Não adianta – disse Pedro – vamos atrás dele.
- Meu Deus, Pedro! Como eu ia saber?
- Esquece. Enquanto eu dirijo, você continua ligando.

No mesmo instante, Newton resolveu desligar o persistente telefone. Feito isso, jogou-o de lado sem olhar, mas o aparelho ricocheteou no banco do passageiro chamando sua atenção. O breve momento de distração foi suficiente para que a picape atropelasse um novo animal. Dessa vez porém, talvez pelo estado emocional em que se encontrava, a conhecida explosão de neurotransmissores não estimulou os centros de prazer de seu cérebro.

Contrariando tudo o que fizera antes, parou o veículo e refez a pé o caminho até o local do acidente. Então, pela primeira vez, encarou uma de suas vítimas: um vira-lata. Não obstante suas vísceras estivessem espalhadas ao redor, a vida relutava em abandoná-lo e essa teimosia era marcada por golfadas de sangue liberadas a cada abrir e fechar de sua boca.

De repente, Newton entendeu que matar tinha menos colorido quando se permitia alguns instantes para apreciar a obra. Num ímpeto, usou as mãos para empurrar, da melhor forma que pôde, as vísceras do animal para seu local de origem. Em seguida apanhou o cachorro e correu em direção a seu carro; estava decidido a salvá-lo.

Durante o trajeto até o veículo, seu arrependimento começou a somatizar-se em manchas vermelhas nas partes dos braços em contato com o cão; ao entrar na picape, a pele de todo seu corpo já coçava e ardia. Antes que pudesse passá-lo para o banco do carona, notou que os olhos do bicho estavam perdendo o brilho no mesmo ritmo em que o coitado se tornava um objeto inanimado. Num ato involuntário de empatia, a respiração de homem e animal tornou-se uníssona; cada vez mais rápida e curta.

Enquanto dirigiam-se ao apartamento de Newton, o celular deste atendeu à chamada da noiva.
_ Alô, amor. Onde você está? Já chegou em...

A voz do outro lado não era a do dono do aparelho e se identificou como sargento Gomes da polícia rodoviária. Ao chegarem no local indicado pelo policial encontraram a perícia examinando a picape de Newton. Dentro dela, o proprietário jazia morto com evidentes sinais de asfixia e segurava um cachorro ensangüentado.

Às lágrimas, Pedro contou aos policiais que não conseguia entender o porquê de seu irmão ter se arriscado daquela forma, pois a mãe de ambos sempre advertira Newton para manter-se longe de animais. Tinha sido exatamente por esse motivo que ele tentou evitar o contato dele com o filhote dado inadvertidamente por sua noiva. Depois de aventar várias hipóteses, Pedro ficou com a de que fora uma inaudita compaixão por animais, a responsável pelo irmão desafiar sua fortíssima alergia às pêlos e morrer em conseqüência de choque anafilático.

Nenhum comentário:

Postar um comentário