sábado, 10 de julho de 2010

Imune



Para Evaristo sábado era antônimo de descanso. Em nenhum outro dia a funerária Parada Geral recebia mais clientes. Aos infartados e doentes habitués unia-se uma legião de esfaqueados, baleados, atropelados e esmagados em batidas automobilísticas. Mas ele não reclamava, pois tinha certeza que seria num sábado que testaria a idéia. Definitivamente aos sábados tinha sua melhor oportunidade. Ciente que seu único funcionário há tempos está sobrecarregado, seu Jesus prefere ficar na recepção consolando parentes e recebendo deles polpudas quantias por suas coroas e urnas superfaturadas. Quem sabe quanto custa morrer?

Quando Evaristo bateu com a idéia, sim porque aquilo não poderia ser obra sua, ela não causava mais que uma leve irritação. Mas a alergia foi se alastrando por seu cérebro e quatro anos depois, Evaristo pressente que terá um edema de glote se não testá-la.

Hoje, pela primeira vez Evaristo tomou coragem e trouxe uma seringa. Mas qual seria o candidato ideal? O escolhido deveria ter um material em boas condições e não poderia haver dúvida sobre a causa mortis. Afinal, o que não faltava na funerária era defunto com dois ou mais possíveis motivos para o óbito. Fulano foi baleado e quando caiu bateu a cabeça. De acordo com o primeiro legista o causador da morte foi o tiro, para o seu colega foi o traumatismo craniano. Para piorar, quando o coitado foi aberto havia uma enorme área infartada em seu coração. Seria possível que ao ser baleado e bater com a cabeça o estresse teria causado uma parada cardíaca fulminante? Casos assim precisavam ser descartados.

Durante a preparação dos últimos corpos que ainda seriam enterrados naquele sábado, chegou a vez de um rapaz. Sua aparência atestava que ele fora vítima de politraumatismo. Por certo um óbito bem explicado. Fazendo-se valer de toda a coragem que economizara nos últimos anos, Evaristo injetou a seringa no sujeito. Sem dar tempo para arrependimentos ministrou o conteúdo espesso e fétido retirado do infeliz no próprio antebraço direito. Escondeu a seringa e terminou seu dia como de costume.

Nos sete dias seguintes seu Jesus teve que fazer mágica para tocar a Funerária. A mãe de Evaristo ligara dizendo que o filho estava muito doente. Mas nem a própria dona Vânia sabia o que estava acontecendo com o seu Evaristinho. Ele se recusava a sair do quarto. Melhor assim, se a pobre mulher visse o membro superior direito do filho beirando à necrose, iria visitar seu Jesus mais cedo. Paradoxalmente, Evaristo continuava a acreditar que a idéia estava certa.
Então, ao despertar da última crise de febre e delírio, ele percebeu que seu braço estava curado. Os dias foram passando e Evaristo sentia-se melhor e seu bem-estar assemelhava-se a um ferormônio que a todos contaminava. Os homens pareciam admirá-lo e as mulheres o abordavam sem pudor. Em nenhuma das dezenas de trepadas foi mencionado que Evaristo tinha um cheiro “estranho”. Ele percebeu que a idéia funcionara.

Nos meses seguintes a vida de Evaristo desconheceu seus baixos. Seu patrão contratou dois novos ajudantes, Miguel e Tiago; seus amigos não deixavam que ele pagasse nada e até mulheres que não são vistas em ônibus ou na rua o procuravam. Decidido a não perder seu exilir Evaristo passou a injetar-se regularmente dos mais variados tipos. Suas fontes aumentaram em variedade e passaram a incluir vitimados por doenças neurodegenerativas, imunológicas, vasculares e metabólicas; parecia não haver algo inédito. A certeza dos óbitos já não importava.

À medida que as aplicações se sucediam, Evaristo notou que praticamente mais nada o atingia. Durante todo um ano não deu um só espirro. Sua pele, ossos e músculos enrijeceram. E para testá-los ele passou a meter-se em brigas, não com um oponente, mas com bandos inteiros. O interessante é que ele sempre saia vitorioso, seja porque derrubava seus adversários um a um ou porque eles fugiam ao perceberam que aquela briga não poderia ser ganha. Por último, Evaristo passou a subir em morros pela madrugada para tomar dinheiro de traficantes. Quando eventualmente leva um tiro ou outro, poucas horas depois o ferimento tinha desaparecido.

Tudo continuou nesse tédio até que um dia uma viatura da PM apareceu em sua porta com um mandato de prisão. Embora surpreso, Evaristo decidiu entregar-se sem reagir. Espancar traficantes era uma coisa, mas servidores públicos fiéis era impensável. Na delegacia não disseram nada, meteram-no numa cela com mais 30 sujeitos. Na primeira noite quando tentaram aproveitar-se dele partiu a cabeça do mais forte com um soco e o deixaram em paz.

Nas duas semanas seguintes Evaristo chegou à conclusão óbvia de que tinha sido preso por molestar mortos e vivos. Então, quando o delegado o convocou, desfez-se o suspense: fora preso por não pagar pensão alimentícia a seus filhos. Apesar de aliviado, afinal ninguém sabia de suas atividades escusas, Evaristo não provou do merecido sossego. Como poderia estar sendo acusado de tal falta se jamais transmitira seus genes? Suas inúmeras aventuras amorosas não passaram de ensaios. Embora protegido de doenças sexualmente transmissíveis, já tinha usado material de vítimas dessas moléstias, sempre preferiu fazer sexo seguro. E ainda que algum ensaio tivesse dado errado poderia no máximo ter produzido um, mas nunca “filhos”. Não adiantou contar essa história para o doutor do distrito. Nem para o doutor do fórum, seis meses depois. Ao término da audiência, num último movimento solicitou ao meritíssimo a chance de fazer o conhecido teste de paternidade. Solicitação essa que foi prontamente atendida pelo senhor juiz. Contudo, Evaristo teria que permanecer preso até que o caso fosse esclarecido. Perdendo sua habitual calma o rapaz proferiu impropriedades a vossa excelência reclamando do absurdo da situação. Advertido de que nova reclamação seria entendida como desacato Evaristo sentiu suas entranhas queimarem e caiu morto aos pés de seu advogado. Morrera de indignação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário