sábado, 10 de julho de 2010

A caixa de sonhos




Aqui nunca é calmo; a expectativa de que o pior ocorra converte a maioria em bestas, seres que agridem antes de serem agredidos e que às vezes, matam para prevenir a suposta tentativa do próprio assassinato.

Mas hoje as coisas estão piores, muito piores do que eu jamais imaginei. A rebelião saiu de controle e o que deveria ser uma oportunidade de reivindicação, tornou-se um ajuste de contas entre facções; uma hecatombe. Os outros presos deveriam ter percebido que esta era a justificativa perfeita para a tropa de choque invadir o presídio; pelo som dos gritos e dos tiros, os meganhas estão fazendo bem mais do que controlar rebelados, eles estão extirpando os cânceres do Carandiru.

Desde o dia em que nasci, só cedi à loucura uma única vez e esse foi o motivo pelo qual estou preso. De lá para cá, prometi a mim mesmo que seria o responsável pelos meus atos e não o ódio ou o medo; nada nem ninguém voltariam a ter domínio sobre mim. Não importaria o medo que eu tivesse de ser abusado ou de estar na lista de pessoas a serem mortas a fim de acabar com a superlotação; eu não usaria a política de agressão preventiva da maioria.

Assim que cheguei ao presídio, percebi que os poucos a não terem suas almas reclamadas pela loucura reinante, eram os capazes de se manterem egoístas: aqueles que tinham algo só seu e que não compartilhavam com mais ninguém. Em geral, o objeto desse egoísmo era a lembrança de entes queridos que supostamente os esperavam do lado de fora.
O problema é que eu não tinha mais ninguém. Por isso, precisei me virar e ser criativo. Tive a idéia de registrar meus sonhos mais importantes; algo que ninguém mais tinha. Talvez, alguma noite, eu tenha sonhado, mas desde o dia em que pus os pés nesse pesadelo, nunca fui capaz recordar-me de um sonho. Isso me obrigou a usar os de antes da prisão.

Com uma caixa de sapatos, um pouco de papel e um toco de lápis que alguns camaradas me arranjaram, fabriquei meu objeto de culto ao egoísmo: a caixa de sonhos. Nela, guardei tiras de papel nas quais uma única palavra estava registrada. Por precaução, eu decidi que não poderia descrever os sonhos por completo, caso contrário, alguém seria capaz de lê-los e eles perderiam seu valor.

Já ouvi dizer que existe uma forma de você registrar suas invenções. Eu devia registrar minha caixa de sonhos; nunca vi ninguém com nada parecido. Talvez eu até ganhasse alguns trocados com ela. Mas agora isso não importa; preciso usá-la para não deixar o medo me controlar. A tropa está mais próxima e devo esperar com serenidade meu destino, seja ele qual for.

Apanho a primeira tira de papel e lá está escrito “Béba”. Eu tinha três anos; numa manhã, um primo de meu pai, cujo apelido não se sabe por que era Béba, veio nos visitar. Ele ficou o tempo todo brincando comigo e dizendo que homem não usava chupeta. A idéia de ficar sem minha chupeta me apavorou e fui correndo em busca da proteção de minha mãe. À noite, sonhei que eu ia à lata de lixo e jogava fora aquilo que me impedia de ser homem; acordei diferente e nunca mais quis usar chupeta. Naquele dia, aprendi que sonhos podem nos moldar.
“Tia” é o que está escrito na próxima tira de papel. Na verdade, esse não foi um sonho que tive; emprestei-o de minha mãe, mas tenho certeza de que onde quer que ela esteja, vai ficar feliz por seu sonho estar me ajudando. Eu tinha cerca de 6 ou 7 anos e estava indo com ela e minha irmã para a casa de uma amiga de mamãe. No meio do caminho, ouvimos duas mulheres comentarem sobre o falecimento de uma Maria; embora as mulheres não soubessem, a falecida era uma tia de minha mãe. Sem acreditar no que acabara de ouvir, ela nos arrastou até a casa dessa tia e lá chegando constatou que tudo era verdade. Suas primas, obviamente, estavam desconsoladas com a perda da mãe e uma em particular implorava:

_ Deus, me leve junto!

Durante a madrugada, enquanto o restante da família velava o corpo, voltamos para casa. Conforme soube depois, nessa noite, a tia de minha mãe apareceu-lhe em sonho implorando que ela pedisse às primas para pararem com os lamentos; segundo essa tia, aquilo não lhe fazia bem. Contudo o recado não foi dado e o enterro foi repleto de mais apelos e lamentos dramáticos, especialmente daquela prima. Na mesma noite, a falecida voltou a aparecer em sonho e disse à mamãe:

_ Minha filha, eu confiei tanto em você e não tive sua ajuda...

Fui acordado com um tranco e fomos, eu de pijama e minha mãe de camisola, até a casa da morta. Lá chegando, o recado foi finalmente transmitido; desde então, ela nunca mais sonhou com sua tia. Por causa disso, passei a acreditar que os sonhos podem nos colocar em contato com algo maior.

Antes que eu pudesse apanhar a próxima tira de papel, um detento segurando as tripas que insistiam em abandonar-lhe, cai na entrada de minha cela. Ele está implorando para que eu o ajude; já vi esse tipo de ferimento à bala e sei aonde isso vai dar. Se ao menos eu tivesse uma tira de papel para o infeliz, talvez ele pudesse ir com menos medo.

“Tiger” era a palavra da próxima tira. Eu era adolescente e ganhei o único cachorro que já possui. Desejoso que ele se tornasse forte, quis dar-lhe um nome “poderoso” e sendo um adolescente influenciado por filmes americanos, achei que esse tipo de nome era mais chique quando estava em inglês. Tiger era lindo e continuou assim até cerca de 3 meses de idade quando passou a se movimentar cada vez menos passando quase o tempo todo deitado.

A sentença de morte de Tiger tinha um nome: forame oval persistente. Pelo que pude entender, uma parte de seu coração que deveria ter fechado não fechou, por isso, o sangue dele não recebia oxigênio direito. Passamos semanas entre idas e vindas ao veterinário para que o excesso de líquido, que insistia em acumular-se ali, pudesse ser retirado da barriga do meu pobre cachorro. Até que um dia, voltando para casa, ele morreu no meu colo enquanto mamãe dirigia. Chorei muito e na mesma noite meu Tiger apareceu-me em sonho. Ele estava ótimo, forte e seu rabo parecia uma bandeirola ao vento. Então, mesmo sem que ele abrisse a boca eu o ouvi dizer:

_ Eu estou bem...agora eu estou bem.

Acordei com lágrimas nos olhos, mas estava mais leve. Nesse dia, aprendi que os sonhos podem curar.

Já posso ouvir as ordens de alguns policiais a poucos metros daqui. Primeiro eles gritam para que os detentos encostem contra a parede, depois, às gargalhadas, descarregam suas armas.

“Amor”, talvez essa seja a última tira que terei tempo de ler. Estávamos no ensino médio e me apaixonei por uma garota que cursava duas séries à minha frente. Apesar da diferença de idade, Simone concordou em namorar comigo quando me declarei. Nossa afinidade era incrível e não nos desgrudávamos. A única coisa ruim em nosso namoro era Cláudio, um garoto da idade de minha namorada e bem mais forte que eu. Ele e Simone se conheciam desde muito pequenos e todo mundo sabia que ele era apaixonado pela minha garota; para ela, Cláudio era só um bom amigo. Por sorte, ela nunca teve de magoá-lo, pois o coitado jamais tivera coragem de confessar-lhe seus sentimentos. O fato é que Cláudio me assustava com todo seu tamanho e me irritava por sua inconveniência; ele sempre dava um jeito de aparecer.

Na noite anterior ao baile de Formatura de Simone, eu sonhei que meu rival a tomava de mim enquanto todos riam. No dia seguinte, durante a festa, Cláudio exagerou na bebida e, quando eu estava no banheiro, agarrou Simone à força. Quem sabe o infortunado rapaz achou que aquela era a última chance de declarar seu amor? Quando sai do toalete e deparei com Simone tentando esquivar-se daquele enorme rapaz, revivi o mal-estar que o sonho da noite anterior provocara. Com medo de enfrentá-lo frente a frente, apanhei o primeiro objeto que vi e acertei-lhe a cabeça; infelizmente, forte demais. Depois disso, aprendi que alguns sonhos, quando levados muito a sério, podem causar dor. Esse foi o último sonho do qual me lembro.

Nesse instante, dois policias aparecem na porta escancarada de minha cela:

_ Solta essa merda vagabundo – grita um deles referindo-se à caixa de sonhos enquanto me aponta sua metralhadora.
_ É o último aviso – esbraveja o outro acionando o cão da 45.

Eu os encaro e sorrio; lembrei-me de que há mais uma tira de papel na caixa. Uma em branco, deixada lá para a eventualidade de eu voltar a sonhar. Eles continuam a gritar mas já não entendo o que dizem. Puxo a tira de papel da caixa, fecho os olhos e penso o que vou escrever nela quando acordar.

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