sábado, 10 de julho de 2010

Memórias


Amanhecera e Luiz Peixoto tinha passado a noite acordado entre reflexões de ordem metafísica, nunca gostara delas, mas fora-lhe impossível parar de pensar naquilo: como alguém saberia que alcançou o propósito de sua existência? O exemplar da Nature, na cômoda ao lado, o levou a concluir que em seu caso, a resposta estava estampada na capa: cientista brasileiro vence o mal de Alzheimer. Dentro da revista, um artigo de várias páginas, coisa raríssima no periódico científico mais prestigiado do mundo, embasava sua conclusão.

Claro que aquelas páginas não traduziam as dificuldades e humilhações que enfrentara até chegar ali. Luiz duvidava que na última década, algum outro pesquisador tivesse mais apelidos jocosos que ele. Sem contar que, todos os projetos que submeteu às agências governamentais, em busca de auxílio financeiro, foram negados; não sem duras críticas à validade de seu trabalho. Em conseqüência, foi preciso financiar sua pesquisa com a fortuna deixada pelo pai.

Tudo isso, porque ele resolvera desafiar a máxima de Isaac Newton “Se vi mais longe, foi porque estava sobre os ombros de gigantes.” Pensando bem, sua ousadia tinha sido imensa, afinal, ele se negara a basear suas investigações em evidências que vinham sendo obtidas há mais de duzentos e cinqüenta anos, desde o século XXI. Já naqueles tempos, o paradigma dominante, era o de que a cura para várias doenças, a do mal de Alzheimer inclusive, residia no estudo das células-tronco. Desde então, cientistas de todo mundo dedicaram suas carreiras e trilhões de Iauns perseguindo essa história. Basicamente, no caso do mal de Alzheimer, os pesquisadores acreditavam que ao serem introduzidas no cérebro de uma pessoa, as células-tronco se converteriam em neurônios, substituindo assim, as células nervosas perdidas pelo paciente; fato que resultava na perda de memória característica da doença.

No entanto, com o passar dos anos, as triagens com células-tronco foram se mostrando menos e menos eficazes; até o pré-tratamento delas com compostos especiais, antes da inoculação no crânio, provara há décadas, ser ineficaz. Apesar disso, certamente por orgulho, os pesquisadores insistam no decadente paradigma das células-tronco.

Foi nesse contexto que, no ano de 2270, ele veio ao mundo. Alguns anos depois, se graduou em medicina, mas nunca exerceu a profissão; desde sempre soube que seu coração estava na pesquisa; nessa época, só não tinha certeza a qual área dedicar-se.

Graduado, as forças do acaso o levaram a conhecer um pesquisador cuja linha de pesquisa estava orientada para a morte celular. Assim, durante seu doutorado, descobrira que células submetidas a vários tipos de agressões, tais como radiação ou falta de oxigênio, apresentavam menor mortalidade quando o dano era imposto na presença de seu principal nutriente. Já doutor, pouco antes de montar seu próprio laboratório, um fato foi decisivo na escolha de sua futura linha de pesquisa; o diagnóstico de que sua mãe era portadora do mal de Alzheimer. Por isso, resolveu dedicar sua carreira à descoberta da cura para aquela doença.

Seus problemas de financiamento e descrédito começaram quando decidiu renegar o paradigma das células-tronco, usando os conhecimentos obtidos durante a pós-graduação na busca de um tratamento para o mal de Alzheimer. Sua hipótese de trabalho era bem simples. Uma vez que as células do cérebro humano, os neurônios, tinham um grande apetite pelo açúcar glicose, ele acreditava que pacientes de Alzheimer perderiam menos células nervosas caso essas tivessem muita glicose à disposição.


Seu primeiro desafio foi explicar aquele que aparentemente era o ponto fraco de sua hipótese. Há séculos, a comunidade científica sabia que o cérebro humano consome grandes quantidades de glicose, na realidade mais de cento e oitenta gramas por dia. Como sua hipótese poderia estar certa, se o cérebro dos pacientes com mal de Alzheimer desenvolvia a doença, apesar de consumir tanta glicose? Depois de alguns anos, suas investigações resolveram a contradição: a doença, de alguma forma, diminuía a capacidade dos neurônios consumirem glicose. Essa foi uma pequena vitória, mas fundamental para certificar a Luiz de que aquele era o caminho certo. A paranóia de que outros cientistas descobrissem a cura antes dele antagonizada pelo medo de que fossem rir ainda de seu trabalho, fez com que esses dados não fossem divulgados na época.

Vencida essa etapa, restava a enorme dificuldade de fazer com que as células do cérebro humano consumissem mais glicose do que normalmente faziam; infelizmente era impossível simplesmente injetá-la no crânio das pessoas. Assim, seguiram-se mais alguns anos de frustrações, até o dia que, enquanto tomava banho, Luiz teve a resposta que faltava: insulina.

Ele se lembrou de que esse hormônio, era o responsável por aumentar o consumo de glicose em vários tecidos corporais, mas não no cérebro, onde as células captavam a glicose sem necessidade de estímulo da insulina. Talvez, por isso mesmo, ninguém tivesse atinado para a idéia de Luiz: aumentar a quantidade de insulina no cérebro de pacientes. Se as células do cérebro desses indivíduos tivessem contato com quantidades aumentadas dessa substância, elas captariam mais glicose que o normal e, estariam protegidas de qualquer que fosse o fator que lhes induzia a morte.

O último obstáculo a ser vencido, era descobrir como aumentar a quantidade de insulina no cérebro, já que o sistema circulatório daquela região não permitia que quantidades elevadas entrassem ali. Mais uma vez o gênio de Luiz encontrou a solução. Após descrever as especificações necessárias a um conhecido do instituto de engenharia, este projetou o objeto de que precisava: uma sonda miniaturizada capaz de produzir insulina dentro do cérebro. De posse da sonda, bastou testá-la em camundongos geneticamente modificados para desenvolverem uma doença similar ao Alzheimer de humanos.

Encorajado pelos resultados, Luiz apresentou seus dados ao comitê de Ética da universidade e não demorou para que recebesse autorização de submeter pacientes humanos a seu procedimento. Nesse período, bastou pedir a colaboração de um brilhante e ganancioso neurocirurgião, para que as sondas fossem introduzidas no crânio dos doentes.

Como a insulina precisava ser liberada de tempos em tempos, a fim de que as células estivessem protegidas, ele pediu ao colega neurocirurgião que conectasse a sonda ao nervo óptico. No que considerou um toque de classe, Luiz programou a sonda para funcionar com estímulos de intensidade igual ou superiores às dos raios solares. Assim, toda vez que o olho do paciente fosse submetido à luminosidade, a sonda identificaria os impulsos do nervo e produziria o hormônio; dessa forma, cada dia traria uma nova esperança para os portadores da doença.

Em pouco tempo, as triagens demonstram que os resultados obtidos em camundongos eram reproduzidos em seres humanos. Curiosamente, um ponto realmente impressionante de seu método, era que ele funcionava independentemente das causas do Alzheimer, que continuavam desconhecidas no século XXIII; bastava que o doente tivesse um diagnóstico precoce e iniciasse o tratamento. Sem dúvida, a descoberta da cura de uma patologia antes que os mecanismos causadores da mesma fossem compreendidos, não era algo que ocorria todos os dias. Isso o colocava lado a lado de grandes cientistas como Alexandre Fleming, descobridor da penicilina e Sérgio Ferreira, o brasileiro que identificara a bradicinina. Certamente, se ele fosse um matemático, seria parabenizado pela eficácia de sua elegante e simples fórmula.

Clichês, à parte, Luiz não deixava de achar engraçado o fato de ele entraria para a História como o homem que impediu a progressão da perda de memória. Ironicamente, porém, para sua mãe, tudo aquilo chegara tarde demais, ela morrera anos antes em consequência do mal.

Enfim, se artigo que tinha à sua frente não revelava toda a dificuldade que tivera para publicá-lo, ele pelo menos, era um marco de uma nova era em sua carreira. Um tempo de glórias e a primeira delas, seria alcançada naquela noite, ao ser empossado como membro da Academia Brasileira de Ciências.

Mas ainda era de manhã e Luiz precisava cumprir um último compromisso: atender pela última vez, alguns dos primeiros pacientes que se submeterem ao seu procedimento. Levantou-se sem despertar a esposa; ela teria um dia difícil nos salões de beleza preparando-se para a grande festa. Tomou uma xícara de café preto e saiu em direção à universidade.

No portão central da cidade universitária, um dos guardas, aquele que Luiz tinha certeza de que não ia com sua cara, recebeu-o com um sorriso e permitiu sua entrada dispensando o ritual de apresentação de credenciais. Parecia que o sucesso de sua pesquisa começava a ecoar até entre os incapazes de compreender-lhes os ensinamentos esotéricos.

Por ser uma data especial, liberou Tereza, sua secretária e todos seus pós-doutores do compromisso de ir até o laboratório. Lá, deu uma rápida ajeitada na mesa de sua sala e ligou o computador enquanto esperava a chegada da primeira paciente, Ana O. Vasconcelos.

Dona Ana, uma mulher de 68 anos, tinha sido o caso mais avançado da doença a ser submetido ao seu método de tratamento. No início, ele hesitou em aceitá-la na pesquisa, a probabilidade de não haver melhorias era grande, e isso, só reforçaria a argumentação de seus detratores. Contudo, como sempre fazia, Luiz decidiu seguir sua intuição e o risco assumido, só tornou mais intensa sua vitória; a melhora de Ana tinha sido acima das expectativas, além de parar de perder a memória, ela passou a ter recordações nítidas dos períodos mais precoces de sua vida. Um verdadeiro milagre produzido por ele.

O toque do interfone da entrada do prédio o despertou de suas elucubrações, Dona Ana acabara de chegar. Liberando a trava da porta, Luiz a convidou a entrar. Em poucos segundos a velha mulher cruzou o laboratório chegando à sala do pesquisador que ficava nos fundos; lugar ideal para vigiar seus pós-doutores trabalhando.

_ Bom dia doutor.
_ Boa dia dona Ana. Como tem passado?
_ Estou ótima obrigada. Por que tudo aqui está tão quieto?
_ É que hoje dei folga para todo mundo, por causa da publicação da pesquisa de nosso grupo. Sabe?
_ Oh, não teria sido melhor eu vir outro dia?
_ Claro que não!. Tínhamos esse encontro agendado e fiz questão de mantê-lo.
_ É, pensando bem, acho que eu não poderia ter vindo em ocasião melhor.
_ Com certeza, além disso, não demoraremos muito pois nossa coleta de dados já está completa.
_ Então não faremos mais testes e exames?
_ Exato, minha intenção hoje é agradecê-la por ter sido tão generosa em participar de nosso estudo.
_ Mas que pena, doutor Joseph. Eu vim hoje especialmente para que me examinasse.

Luiz sentiu um calafrio percorrer seu corpo, dona Ana acabara de chamá-lo de Joseph. Seria possível que os efeitos de seu tratamento estavam falhando após dois anos? Não, era impossível; a ressonância magnética de seu cérebro, feita na última quarta-feira, bem como os questionários que lhe foram aplicados, demonstravam que a memória dela estava numa condição excepcional.

Contudo antes que pudesse questionar sua voluntária sobre o engano, ela sacou uma pistola calibre 7.65 mm de sua bolsa.

_ Dona Ana...tome cuidado...
_ Cale a boca, doutor Joseph.
_ Fique calma, meu nome não é Joseph. Sou Luiz, lembra-se?
_ Você acha que eu não sei disso, Joseph? Acho que é você quem não se lembra de nada, mas tudo bem, tanta coisa está diferente agora.

Em segundos, Luiz Peixoto estava banhado de suor e tinha certeza que o comportamento da mulher devia-se a um sério efeito colateral do tratamento. Era precisava desarmá-la. Mas como? Àquela distância, ninguém erraria um tiro, especialmente, aquela idosa que demonstrava uma destreza surpreendente no manejo da arma. Talvez fosse melhor insistir mais um pouco na conversa:

_ Dona Ana, abaixe essa arma e vamos conversar com calma. Por favor!

_ Meu caro doutor Joseph Gall, eu só quero que você me examine com sua ciência, apenas isso. Eu preciso saber se meu caráter e personalidade são melhores agora.

_ Ana...

_ Qual foi mesmo meu diagnóstico? Ah, eu me lembro. Sujeito com tendências violentas, homicidas e de baixa capacidade intelectual. Foi isso que o senhor concluiu a partir das protuberâncias ósseas da minha cabeça, não é verdade? Naquele dia, suas conclusões fizeram com que todos acreditassem que eu era o responsável pelo massacre daquelas crianças. O senhor não quis me ouvir, mesmo eu implorando e dizendo que a polícia tinha pego o homem errado. Eles não tinham provas doutor, mas você lhes deu a que precisavam.

_ Ana, eu não estou enten...
_ Eu só tinha dezesseis anos, mas o senhor e sua Frenologia decretaram o fim da minha vida. Desculpe, Luiz, entendo que você não se lembra disso, mas eu não consegui perdoá-lo; desde que me lembrei de tudo, só penso em deixar isso para lá. Mas eu não pude, sinto muito. Algumas memórias é melhor não tê-las...

Nesse instante, Ana puxou o cão da pistola. A intuição de Luiz dizia que ele precisava agir se quisesse ter uma chance de escapar com vida.

Horas depois, o próximo paciente do doutor Luiz Peixoto ligou para a portaria central da universidade dizendo que ninguém atendia a seu chamado no laboratório do Instituto de Neurociências. Ciente de que nem o doutor ou sua paciente haviam saído do campus, o segurança que recebera o médico, avisou ao colega que iria verificar o que estava acontecendo. Quando os policiais chamados pelo segurança invadiram o laboratório, encontraram Luiz Peixoto o morto com um tiro no tórax. Ao lado do corpo, sentada no chão, uma senhora passava as mãos sobre a cabeça ensangüentada por causa do escalpo que lhe fora arrancado. Ao ver os policiais, ela não fez menção de tocar na arma que tinha próxima a si; enquanto era levada dali, ela apenas repetia a mesma frase, a qual nenhum de seus captores era capaz de entender:

_ Vejam, passem a mão. Vocês não acham que eu sou alguém melhor agora?

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