sábado, 10 de julho de 2010

Inércia




Estou ficando descuidado; dois meses na mesma cidade! É hora de voltar para a estrada. Já não sei quantas vezes fiz isso, mas creio que nunca vou me acostumar à reação de meus empregadores quando digo que vou partir. Hoje foi a vez do Vitório, um ótimo patrão e um bom homem. Coitado, tentou me convencer de todas as maneiras, só faltou me oferecer sociedade. Quando viu que não tinha jeito, simplesmente disse: “Euler, não consigo entender sua forma de ver as coisas”. Despedi-me dizendo que ele não era o único e que mesmo se eu quisesse contar, ele não iria acreditar na história.


Eu, ao contrário, sou obrigado a seguir o ritual de recapitular minha própria sina. Assim não corro o risco de esquecer meus propósitos, algo fácil de ocorrer durante longas caminhadas. A distração é tudo que as manchas precisam para se aproximar.


Quando nasci, os médicos não souberam explicar se minha condição resultara de uma anomalia cromossômica, medicamentosa ou outra qualquer. O fato é que meus nervos óticos eram defeituosos e, graças a isso, sempre fui um indivíduo de baixa visão; capaz de distinguir as variações de luminosidade, sem contudo, jamais reconhecer uma única forma do mundo exterior.
A roda da fortuna pareceu entrar em ascendência quando meu antigo oftalmologista consultou um colega de faculdade, o doutor Edson, na época pesquisador de uma renomada universidade. Ao ver meus exames, ele se interessou de imediato e disse que eu era um candidato ideal para o teste de um novo colírio. Os dados obtidos em animais tinham demonstrado que o princípio ativo do medicamento era capaz de fazer nervos óticos mal formados funcionarem.


Dias depois, eu e outros doze voluntários que jamais vi, iniciamos o tratamento numa sexta-feira. De acordo com as expectativas, poderíamos começar a enxergar a qualquer momento da segunda seguinte. Edson nos aconselhou a ter calma e manter a rotina enquanto esperávamos. Por isso, decidi trabalhar naquela manhã, mas a ansiedade não me deixou abrir os olhos por baixo dos óculos escuros desde o momento que acordei. No metrô, como de costume, um dos funcionários levou-me até o banco para deficientes da composição lotada.


Enquanto cruzava os subterrâneos, o medo de que o experimento não funcionasse fazia com que minha ansiedade atingisse níveis estratosféricos; aquela poderia ser minha chance de ter uma vida igual à de todo mundo. Então, fazendo uso de uma coragem que não conhecia possuir, abri os olhos. Fui recompensado com uma dor pontiaguda que se infiltrou pelos meus olhos e apossou-se de minha cabeça. Contudo, como os pulmões de um recém nascido que tem de adaptar-se à mudança do líquido para o gasoso, meus olhos foram fazendo incursões mais demoradas naquele mundo de luz, até que finalmente consegui mantê-los abertos.


Talvez a melhor forma de descrever o que senti com minhas primeiras visões, seja usar a estratégia dos místicos e dizer que foi algo impossível de ser explicado com palavras! O que me deixou alucinado foram as cores. É claro que eu sabia da existência delas, mas até vê-las eu realmente não tinha ideia de como eram. Assim que contasse sobre o experimento aos meus poucos amigos, iria obrigá-los a me dizer qual era qual.


Então, depois do êxtase por conhecer a profusão de tons da estação mais quente do ano, entrei em contato pela primeira vez com a maldição que herdei ao ousar desafiar meu destino congênito; embora naquele momento eu ainda não soubesse disso. Ao olhar com mais atenção para as pessoas, percebi que muitas tinham uma espécie estrutura sem cor que hora flutuava sobre seus ombros esquerdos, hora desaparecia dentro de suas cavidades; mais tarde soube que aquela falta de cor era chamada de negro. Pois bem, não demorou também para constatar que as manchas cresciam à medida que uma luz saia de seus hospedeiros. Quando atingiam certo tamanho limite, as manchas abandonavam as pessoas e desapareciam pelas paredes do vagão; imediatamente uma nova criatura assumia o posto abandonado.


A visão do estranho ritual gerou um suor profuso e frio em cada reentrância de meu corpo. Mas foi quando desci da composição que uma desesperança absoluta apoderou-se de mim. Ao passar por uma das janelas, tive a certeza de ver uma das manchas assumir uma aparência que parecia comportar um sorriso. Um riso maléfico de quem tinha consciência de minha observação e se divertia com isso. Sai da estação apavorado, recusei de forma grosseira o auxílio de um transeunte e percorri, de olhos bem fechados, os seiscentos metros que me separavam de meu trabalho na central de atendimento. Sem comprimentar ninguém, fui direto ao banheiro e depois de dizer em voz alta que aquilo não passava de um efeito colateral, olhei-me no espelho; não havia manchas em mim! Aliviado, tentei remover o máximo de suor com água fria e fui para a área de trabalho, só para constatar aterrorizado que ali, praticamente todas as pessoas tinham manchas.


Foi-me impossível trabalhar e explicando parte da verdade a meu supervisor, disse que devia voltar ao médico; ser um funcionário exemplar ajudou para que ele me liberasse depois de reclamar por apenas dez minutos. Na rua, liguei imediatamente para o doutor Edson e perguntei-lhe se era normal vermos manchas em função do tratamento. Ao ser questionado quanto a qual tipo exatamente de mancha eu me referia, temi que pudesse ser tomado por louco e disse que tinha enxergado pontos escuros próximos às pessoas. Ele disse que precisaria me examinar para ter certeza, mas que esses pontos escuros poderiam ser na verdade, os pontos cegos que todos os seres humanos tinham em seus olhos; uma consequência da falta de fotorreceptores em dada área da retina. Numa pessoa acostumada a ver, o cérebro compensava isso e criava a ilusão da visão completa, sem o ponto cego que sempre estava ali; como esse não era meu caso, talvez meu cérebro precisasse de tempo.


Não convencido pelas explicações e disposto a descobrir o que levava algumas pessoas a terem manchas, menti ao pesquisador dizendo que assim que pudesse passaria em seu laboratório. Pouco depois, pensei que talvez alguns amigos pudessem me ajudar. Liguei para dois deles contando que estava enxergando e que, por isso, estavam intimados a encontrar-me num bar conhecido a fim de comemorarmos.


Após uma breve espera, pensei que meu plano tinha falhado. Nem Marília, a primeira a aparecer, nem Raul portavam as esperadas manchas. Mal disfarçando meu desapontamento, brindei com meus amigos e fui obrigado a contar-lhes toda a história do meu “milagre”; obviamente nada disse sobre meus temores.


As horas tiveram um efeito diverso sobre meus amigos. Ela cujos apertos de mãos e odores, a delataram em mais de uma ocasião quanto a seus interesses por mim, manteve seu entusiasmo por minhas boas novas. Já Raul, aproveitou-se da novidade para, de forma inconsciente, purgar seus próprios demônios. De acordo com meu amigo, dali em diante eu teria novas perspectivas quanto ao futuro; passaria a ter necessidades antes impensadas tais como dirigir um carro. O problema era que todos esses novos caminhos simplesmente impossíveis de serem trilhados por um deficiente visual, custavam caro.


E assim, para desgosto de Marília, Raul continuava tentando confortar-se quanto às suas incertezas financeiras por meio dos conselhos dados a mim. Então algo incrível começou a ocorrer, quanto mais ele falava, mais uma sombra se aproximava até que finalmente conseguir realizar a extração de luz de seu hospedeiro. À medida que acompanhava a cena, notei uma relação diretamente proporcional entre a quantidade de luz que Raul perdia e o pessimismo com que conduzia seus argumentos.


Nos dias seguintes, percebi que não suportaria mais trabalhar num ambiente cheio de manchas como a central de atendimento e passei a usufruir dos recursos acumulados graças a uma vida com poucos atrativos sociais e pais quase tão indulgentes quanto ricos. Agora, meu tempo era todo dedicado a entender a natureza das manchas.


Desde então, descobri coisas muito interessantes. Em primeiro lugar, as pessoas não perdem luz, e sim, algum tipo de energia vital. Energia essa que nunca mais é recuperada e posso apostar que em algum momento fará falta ao proprietário. Quem sabe a retirada não lhes encurtará a vida? Aprendi ainda que quando as manchas se afastam após terem sugado energia, descarregam sua carga em objetos como torres de celulares, telefones públicos e até mesmo computadores, como se a estivessem mandando-a para alguém. Para quem, contudo, eu nunca descobri. Também sei que onde não há pessoas, não há manchas. O que me levou a pensar: teriam elas existência própria ou seriam criações das próprias pessoas?


Contudo, a principal descoberta sobre as manchas, ocorreu por meio da observação das pessoas durante conversações dos mais variados tipos: existem certos estados mentais nos quais as pessoas atraem as manchas. São pensamentos que me lembram uma famosa lei da física: na ausência de uma força, um corpo tende a permanecer ou em repouso ou em movimento. Acho que era mais ou menos esse o enunciado da lei da inércia de Newton. Dessa forma, as pessoas que permitem que suas vidas permaneçam na inércia, seja por não refletirem sobre o verdadeiro significado delas, seja por acreditarem em idéias pré-concebidas, carregam monstros consigo. Estas perdem sua força vital para seres cujo único propósito parece ser o cumprimento de um contrato hediondo para transformar seres humanos em meros autômatos.


Minhas descobertas e o abandono de minha antiga vida cobraram seu preço. Apesar de o colírio ter mantido minha visão em definitivo, não tenho mais acesso à droga e perdi a capacidade de ver as manchas. Mas não é preciso, sei que onde houver pessoas, as malditas podem estar. Por isso, não posso nunca deixar de buscar o sentido de minha existência. Só assim, posso poupar a força interior que me permite quebrar a inércia que tenta me prender à continuidade, hora no repouso, hora no movimento.

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