sábado, 10 de julho de 2010

Material Biológico




Perseguida por uma viatura da PM, a saveiro subia a rua Botucatu numa velocidade que mal permitia distinguir o que estava escrito em suas laterais: cuidado material biológico. Na esquina com a Borges Lagoa, o motorista tentou uma curva não aprovada pela lei da inércia e capotou várias vezes. Entre um giro e outro, diversos fracos contendo os mais curiosos humores humanos foram arremessados para fora do veículo; a maioria espatifou-se na rua, mas um frasco em particular, foi esfacelar-se dentro de uma cafeteria, espargindo seu conteúdo sobre os ocupantes de duas mesas.

Apesar da gravidade do acidente, o motorista ileso, ainda tentou escapulir pela janela do carro tombado. Contudo, acabou contido pelos policiais que o perseguiam. Preocupado com efeito daquele estranho material sobre seus clientes, o dono da cafeteria convidou os dois homens a se lavarem no banheiro do estabelecimento.

O entrosamento surgido entre os que compartilham problemas mútuos, alimentou a conversa entre Sandro Araújo e Ivan Medeiros. Ivan mostrava-se preocupado com as conseqüências da exposição forçada ao material biológico, Sandro, ao contrário, assegurava-lhe que a rápida remoção evitaria qualquer dano. Ao trocarem um aperto de mão, Sandro se deteve alguns segundos olhando a aparência do braço de Ivan.

_ Causa uma má impressão, não é?


_ Me desculpe – respondeu Sandro – não é isso. É que sou médico e, por incrível que pareça, não tinha percebido.


_ Médico! Que tipo de médico?


_ Ivan me desculpe, mas eu estou muito atrasado, preciso ir.


_ Claro, foi um prazer.

Sandro subiu a Botucatu de cabeça baixa para que nenhum dos vários policiais militares reconhecesse o colega tenente e o parasse para conversar. O médico mal podia acreditar que depois de tanto trabalho para conseguir uma entrevista com o chefe da cardiologia da UNIFESP, iria tomar a decisão a seguir. Pegou o celular, deu a primeira desculpa que lhe veio em mente à secretária do tal médico dizendo que não compareceria à entrevista. Numa segunda ligação, avisou ao quartel que estaria disponível para voar à tarde. Sandro acabara de abortar um plano que vinha considerando há três anos: deixar de ser médico socorrista do Águia Dourada da polícia militar e tornar-se residente em cardiologia na UNIFESP.

Pouco depois de Sandro sair cafeteria, Ivan seguiu pelo mesmo caminho até chegar a unidade de hemodiálise da rua Pedro de Toledo. Ele passaria às próximas horas, ligado por seu antebraço deformado, à máquina que mantinha sua vida. Isso, desde que uma hipertensão desconhecida e descontrolada comprometera-lhe os rins. Essa sessão de hemodiálise, contudo, seria a primeira na qual ele tinha uma importante tarefa a fazer: planejar como ressuscitar a publicação de seu livro de contos, abortada há quatro anos. Foi nessa época que recebeu a notícia de seus rins e a publicação de uma obra chamada Perspectivas lhe pareceu uma cruel ironia. Embora tivesse escolhido o título quando se imaginava totalmente saudável, depois do diagnóstico de falência renal crônica, tal nome lhe pareceu de extremo mau gosto; quando o material já estava para ir à gráfica, Ivan ligou e sem maiores esclarecimentos cancelou tudo. Afinal, que perspectivas tinha alguém cuja vida dependia de máquinas e de um transplante que poderia nunca ocorrer graças ao seu tipo sanguíneo raro?

Agora, por algum motivo, ele se considerava um completo tolo por ter abortado a publicação; sua condição física de alguma forma não parecia mais uma boa razão para isso. Talvez tenha sido o medo do acidente ou quem sabe o fato de conhecer alguém como Sandro, tão otimista e seguro de si, pensou. Minutos depois, já ligado à máquina, Ivan começou a gastar os créditos de seu celular na tentativa de localizar as pessoas capazes de transformarem sua mais recente decisão em realidade.

Naquela quarta-feira, o caminhão-pipa da prefeitura economizou sua carga, uma chuva torrencial, daquelas que só os paulistanos conhecem, lavou a rua Botucatu arrastando todos os resquícios de material biológico.

Enquanto Ivan esperava que a máquina o liberasse, imaginava como voltaria para casa com o caos que se instalaria na cidade. Sem alternativa, ele assistia distraído à TV que estava sintonizada num dos famosos vespertinos policiais. De repente, um caso em particular despertou seu interesse. A cena mostrava uma mulher em cima do teto de um carro que estava sendo arrastado pela enxurrada. O áudio transmitia a conversa do jornalista com uma amiga que estava no carro com a mulher, mas conseguira escapar. Segundo as informações, a mulher sobre o carro, cujo nome era Fátima Oliveira, lutava não por uma, mas por duas vidas; a dela e de seu bebê de três meses. Ivan teve de ir embora antes do desfecho da história, mas soube no dia seguinte, pelo jornal, que a mulher fora salva, contudo, ela abortara seu bebê.

Nas semanas seguintes, Ivan passou horas tentando marcar uma reunião na editora que havia se comprometido com seu livro Perspectivas. As evasivas do editor responsável deixavam claro que ele não tinha esquecido a desfeita e Ivan não lhe tirava a razão. Depois de muita insistência, o editor cedeu e Ivan contou-lhe a história da forma mais direta e sincera que pôde. Confrontado com a notícia do problema sério pelo qual Ivan estava passando, o coração do velho editor amoleceu um pouco e ele mostrou-se mais receptivo. Por fim, ele prometeu que iria considerar a possibilidade de reassumir o projeto.

Dias depois Ivan recebeu uma das ligações mais esperadas de sua vida, talvez tão esperada quanto à notícia de que receberia um rim: seu livro seria publicado. Durante a noite de lançamento, algumas semanas depois, Ivan convidou todos os conhecidos e amigos que pôde para a ocasião. Como prêmio, recebeu uma pilha de exemplares para autografar; ele estava exatamente nesta tarefa quando mais um exemplar foi posto à mesa.

_ Por favor, escreva para Fátima, Fátima Oliveira.

Sem conseguir atribuir o nome a um conhecido, Ivan ergueu o rosto:

_ Ah, Olá...

_ Quer que eu anote para você não esquecer?

_ Não, não precisa. Como soube do lançamento?

_ Uma amiga. Então, tá. Mais tarde eu o pego.

_ Como?

_ O livro.


_ Claro...desculpe...olha, sei que essa é velha, mas você não me parece estranha.

_ Tem muita gente parecida por ai, Ivan. Até.

Ivan passou quase todo o resto do lançamento pensando em algo especial para escrever no exemplar de Fátima. Mas a inspiração parecia tratá-lo como um doente contagioso. De vez em quando, a moça dirigia seu olhar para a mesa onde Ivan estava autografando, mas não veio apanhar sua cópia até o fim da festa.

_ Chegou a hora, preciso ir.

_ Aqui está – respondeu Ivan.

Enquanto a moça abria o livro para conferir o que Ivan lhe escrevera, o coração deste batia tão rápido quanto o de um beija-flor. Fátima fechou o livro e disse boa noite de um modo mais formal do que Ivan gostaria. Contudo, dois dias depois ela ligou para o telefone que Ivan anotara no livro e eles decidiram almoçar juntos. Durante o encontro, Ivan descobriu porque Fátima lhe era familiar; ela era a moça que fora salva na enchente. Ele também ficou sabendo que o pai do filho que ela abortara, seu ex-namorado, a abandonou enquanto ela ainda estava hospitalizada devido ao incidente.

O almoçou foi o primeiro de vários e o somatório desses encontros resultou em convites de casamentos.

O único desejo de Fátima para a cerimônia era de que o homem que lhe salvara a vida aceitasse o convite para ser seu padrinho. Ela tentou várias vezes conseguir o telefone de seu salvador, mas no emprego dele a informação considerada sigilosa, foi negada. Quando estava prestes a desistir, Ivan fez uma piada dizendo que talvez o pessoal da emissora de TV soubesse o telefone, já que tudo aconteceu ao vivo. E foi assim que Fátima conseguiu o telefone de Sandro Araújo. Quando os noivos foram formalizar o convite, o médico socorrista quase desistiu ao ver quem era o noivo; seu companheiro de acidente, Ivan Medeiros. Convencido de que não se tratava de uma brincadeira, mas de uma curiosa coincidência, Sandro aceitou ser padrinho de Fátima.

No dia em que, Fernanda, a primeira filha do casal nasceu, a chuva, iniciada de madrugada, cedeu lugar ao Sol pouco antes do parto. Não só Fátima e Ivan interpretaram a mudança no tempo como um bom augúrio; longe dali um homem fez o mesmo. Enquanto os raios de Sol da tarde perfuravam a grossa camada de nuvens, o motorista da saveiro era solto. Depois de passar vários meses na cela de uma delegacia, nenhuma das acusações contra ele foi confirmada. O que começou como uma denúncia anônima de tráfico de drogas demonstrou-se nada mais que o transporte de restos de cirurgias de uma clínica de aborto clandestina.

Nenhum comentário:

Postar um comentário