sábado, 10 de julho de 2010

Do Pó aos Seres do Pó [1]



No início, o prefeito e seus assessores mais próximos, tentaram lidar com o problema em sigilo; usaram caminhões frigoríficos para armazenar aqueles que não tinham quem os reclamasse. Contudo, isso não foi suficiente, em pouco tempo começou a faltar vagas também para os que gozaram suas vidas no seio de uma família; nesses últimos casos, a solução foi começar a atrasar a liberação dos falecidos alegando o surgimento de problemas durante a necropsia. Por fim, a necessidade de obter trinta a quarenta novos lugares todos os dias, tornou a situação insustentável; era preciso comunicar aos cidadãos a incômoda realidade: não havia mais onde enterrar os mortos pois os cemitérios da metrópole estavam lotados.

O anúncio de que alguns corpos estavam esperando há mais de dois meses a oportunidade de serem enterrados causou comoção e o prefeito com seus aliados mais próximos foram obrigados a renunciar. Porém, uma vez alimentado o desejo de vingança da massa, concluiu-se que o impasse persistia. Já que uma medida provisória não impediria as pessoas de morrerem, os novos ocupantes da prefeitura propuseram uma assembléia popular para discutir a questão.

Na manhã combinada, os mais diversos representantes da sociedade reuniram-se num ginásio municipal. Na abertura da cerimônia, o novo prefeito lembrou que estava descartada a possibilidade de se construir um novo cemitério na cidade; outra conseqüência da falta de espaço. Dito isso, a primeira idéia a agremiar um número considerável de indivíduos, foi a da cremação. Infelizmente, uma proporção igualmente significativa da audiência, não concordava com o procedimento, afirmando que ele era contrário às crenças prévias de seus entes falecidos. Alguns, mais alarmistas, chegaram a afirmar que tal incinerar os mortos contribuiria para o agravamento do efeito estufa.

À medida que as horas passavam, novas propostas eram postas em pauta para na seqüência, serem recusadas. Já no início da noite, aventou-se a possibilidade de aumentar a rotatividade no uso das tumbas: cada ocupante passaria menos tempo em seu local de repouso eterno. Concluído esse período, seus restos seriam colocados em recipientes que ocupariam menos espaço. A princípio todos concordaram que essa parecia ser a solução mais óbvia, até que alguém lembrou da impossibilidade de se apressar a natureza; os falecidos só poderiam ser retirados de seus túmulos uma vez decompostos.

Então, a organização da assembléia fragmentou-se em centenas de conversas paralelas. Aos poucos, porém, a ordem começou a ser restabelecida pelos pedidos de atenção de um homem que tomara a palavra. O senhor de cabelos grisalhos era um renomado cientista e dizia ter a chave para o dilema funerário: a resposta estava nos aracnídeos, mais precisamente em um tipo bastante conhecido, o ácaro. A proposta era muito simples, os seres microscópicos se alimentariam dos cadáveres acelerando o retorno destes ao pó. O anúncio foi seguido de vaias, gargalhadas até mesmo de tentativas de agressão, felizmente contidas pelas forças de segurança presentes ao local.

A rejeição unânime, contudo, em nada afetou o proponente; ele continuava impassível e insistia que todos deveriam continuar prestando atenção ao que tinha a dizer. À medida que falava, a lógica inquestionável de seus argumentos, foi vencendo até os mais arredios. De acordo com o pesquisador, o uso dos ácaros não era nenhuma heresia; aqueles seres estavam consumindo restos humanos há centenas de milhares de anos. Obviamente, não corpos inteiros, mas isso era feito por outros seres. Para reforçar sua tese, o homem chegou a apelar para a questionável etimologia popular lembrando que a palavra cadáver derivava do latim “caro data vermibus”, ou seja, carne dada aos vermes. Em seguida, destacou que a utilização adequada dos ácaros não causaria problemas ao meio ambiente, já que se tratava de uma solução “natural”. A argumentação continuou e quando o dia seguinte amanheceu, a proposta do cientista foi aprovada sem que um voto sequer lhe fosse negado.

A fim de implementar a idéia aprovada, a prefeitura promoveu uma campanha de troca de travesseiros e colchões pela cidade: a municipalidade doaria novos artigos de cama enquanto os cidadãos cederiam seus itens usados. Isso era fundamental para a obtenção da quantidade de ácaros capaz de atender à demanda mortuária do município.

Os materiais velhos, recebidos na transação, foram gradualmente levados a um galpão no qual o cientista montou seu laboratório. Lá, usando tecnologias inovadoras, ele era capaz de obter um trilhão de ácaros a partir de um colchão com dez anos de uso; os travesseiros não ficavam muito atrás, já que após 6 anos de uso, dez por cento do peso destes eram constituído por ácaros.

Graças à boa vontade da população, em algumas semanas uma enormidade de ácaros foi arrecadada. Entretanto, nem todos eram do mesmo tipo, na realidade, foram obtidos cinco tipos diferentes de ácaros.

Dessa forma, para que a missão necrofágica dos pequenos seres fosse bem sucedida, algumas providências eram necessárias. Em primeiro lugar, era preciso combinar as características das diferentes linhagens numa espécie híbrida. Também era preciso estender a longevidade dos aracnídeos para que a reposição dos espécimes não fosse tão constante. Finalmente, a nova espécie deveria ser capaz de devorar qualquer tecido morto e não só pele; esses feitos foram alcançados graças à utilização de técnicas de biologia molecular.

Concluídos os experimentos, as estimativas iniciais sugeriam que a nova família de ácaros seria capaz de viver por até doze meses, ao invés dos dois a quatro habituais. Por último, a capacidade da nova espécie de consumir qualquer tecido morto rendeu-lhe, por parte de seu criador, o apelido hiena do pó.

Tudo pronto, os pequenos carniceiros passaram a ser distribuídos entre os serviços funerários da cidade. A utilização dos ácaros era bem simples; uma caixa contendo as microscópicas hienas era adicionada dentro do caixão pouco antes dele ser baixado à tumba. Os mortos que tinham seu funeral em urna lacrada, saiam do IML com a tal caixa dentro desta; nos demais casos, o recipiente era adicionado ao final do velório, momentos antes do sepultamento.

Os primeiros resultados demonstraram que as hienas eram capazes de decompor um adulto por completo em cerca de 2 meses. Assim que um corpo era decomposto, o pó restante era recolhido e, a partir desse material, os ácaros eram recuperados e podiam ser reutilizados enquanto sua sobrevida permitisse. Por outro lado, a parte do pó livre deles, ele era transferida para caixas de metal invioláveis; caso alguma família solicitasse, a caixa era transferida para o jazigo desta, mas se ninguém o fizesse, a prefeitura se encarregava dela.

Graças à celeridade das hienas do pó, em poucos meses a falta de espaço nos cemitérios já não era uma questão a ser resolvida. O novo prefeito passou a gozar de índices invejáveis de popularidade nas pesquisas de opinião; os números lhe garantiriam uma reeleição fácil. Na realidade, ele só seria derrotado pela nova celebridade da metrópole; o herói que com o poder da ciência devolveu aos mortos a oportunidade de um descanso digno, ainda que breve.

Talvez porque sempre existirão os que justificam seu fracasso a partir do sucesso alheio, pouco tempo depois, um grande jornal da cidade recebeu uma denúncia anônima contra a prefeitura. Segundo o denunciante, uma quantia considerável de dinheiro estava sendo gasta nos novos procedimentos fúnebres sem que isto estivesse devidamente explicado.

Pressionado pela mídia, o gabinete do prefeito revelou que não havia nada de ilícito nos gastos; eram apenas despesas referentes ao armazenamento das caixas de pó que não haviam sido guardadas em jazigos familiares. Os documentos apresentados eram verídicos e comprovavam a versão apresentada. Apesar disso, a defesa foi considerada insuficiente; os meios de comunicação queriam saber por que aquele material simplesmente não era descartado ao invés de consumir grandes somas de dinheiro público.

O prefeito disse que o dinheiro era gasto de acordo com orientações do cientista, portanto, ele era o único capaz de responder a isso. Contudo, ao ser questionado, contrariando sua atuação na assembléia, o pesquisador fez uso de argumentos confusos e contraditórios. Além disso, ele concluiu suas respostas com o dúbio apelo de que as tais caixas não fossem abertas em hipótese alguma.

Alguns dias depois, a prefeitura teve seu segundo líder afastado em menos de um ano e o cientista teve sua prisão preventiva decretada, até que a situação fosse esclarecida.

Uma junta de notório saber, da mais conceituada universidade do país, foi reunida para produzir um laudo sobre a situação; os resultados da investigação demonstraram que o pó armazenado não se tratava de restos humanos, mas sim de fezes de ácaros. A indignação não poderia ser maior; durante meses, famílias tinham acolhido dejetos entre os seus e o contribuinte gastara uma exorbitância com material de esgoto.

Ao receber uma pesada pena de prisão, o cientista declarou que aceitava tudo aquilo sem reclamar, mas voltou a implorar que o material armazenado não fosse aberto e muito menos descartado no meio ambiente.

A junta de notório saber emitiu um comunicado dizendo que o cientista só queria aparecer com aquele tipo de declaração. Além do mais, ela tinha tudo sob controle: as hienas do pó que ainda estivessem vivas seriam devidamente irradiadas antes de serem descartadas; quanto às fezes, o único dano que elas seriam capazes de causar, seria à moral da cidade, o que de fato já tinham feito.

Assim, poucos dias depois, ordenou-se que várias toneladas de fezes de ácaros e de aracnídeos vivos fossem irradiados. Infelizmente, extasiados nos píncaros de seu conhecimento científico, os membros da junta não imaginaram que, muito dos mal pagos e nada informados funcionários encarregados do procedimento, poderiam achar um exagero, o excesso de medidas de segurança proposto. De fato, os funcionários se perguntaram: qual era a importância de usar toda aquela vestimenta desconfortável, se eles já estavam atrás de uma grossa parede de chumbo, capaz de protegê-lo de toda radiação? Por isso, eles preferiram usar seus habituais macacões de trabalho enquanto abriam as caixas de hienas do pó e despejavam os microscópicos seres nos locais onde encontrariam seu fim nos braços eletromagnéticos do raio-X. Realizado o serviço, hienas mortas e fezes, foram despejados num lixão isolado da cidade.

Naquele dia, ao voltarem para suas casas, cada um dos desobedientes funcionários levou, em suas roupas, algumas hienas que escaparam da irradiação enquanto suas caixas eram abertas. Quanto às fezes despejadas no lixão, estas foram espalhadas até onde o vento alcançava.

Logo, a cidade e mais tarde todos os locais habitados por seres humanos, foram vitimados por alguns fatos que o cientista condenado já sabia: ácaros não se alimentam apenas de tecido morto; eles são dificílimos de serem eliminados de materiais têxteis e suas fezes são extremamente prejudiciais para o sistema respiratório das pessoas. Por azar, no caso das hienas do pó, essas características foram satisfatoriamente potencializadas pela manipulação gênica.

Desde então, a impossibilidade de retirar as hienas das peças de vestiário, faz com que as pessoas venham do e voltam ao pó da mesma forma, nuas. Nesse intervalo, elas têm a oportunidade de aproveitar sua estadia entre crises de dermatite e asma.

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