sábado, 10 de julho de 2010

Identificação


Talvez, para algumas pessoas, os dias fossem todos diferentes. Para outras, eles provavelmente seriam cópias carbono. Porém, desde aquele filme, Sal percebeu que para ele, os dias podiam ser de duas espécies: fáceis ou difíceis.

A descoberta apresentou-se numa quarta-feira na qual o adolescente faltara à escola para pegar a sessão das 11 da manhã; mais barata que as demais. À tarde, quando chegou em casa, Sal foi abordado por seu padrasto que lhe lembrou pela vigésima vez na semana o quão ele era imprestavél e que, no futuro, não seria nada melhor que seu falecido pai: um alcoólatra que morrera na via pública. Então, operou-se o milagre. Contrariando sua passividade congênita, o rapaz disse ao padrasto o que lhe veio à mente. Não foi preciso ofender ou ameaçar aquela coisa que ocupara a cama de seu pai, mas de alguma forma sua recém-adquirida segurança fez com que o velho se calasse desconcertado.

Trancando em seu quarto, Sal relembrava a cena e a cada repetição do quadro crescia uma certeza: aquele surto de atitude não provinha dele. Claro que em seu âmago o maior desejo do rapaz era ter uma linha de conduta só sua, afinal, ele não tinha dúvida de que assim teria sempre uma resposta para os problemas impostos pela vida. Mas Sal sabia-se desprovido de atitude. De onde, então, teria surgido a erupção de coragem que acabara de demonstrar? Apesar de pouco crível, a única conclusão era que ele herdara aquilo de um dos personagens do filme que assistira pela manhã.

O novo remédio, contudo, era paliativo. À medida que os dias passaram sua dose extra de atitude desvaneceu-se. Sal começou a ter dificuldades de lembrar quais seriam as reações típicas do personagem que clonara. A solução foi voltar à matinê para assistir ao mesmo filme e, assim, obter a recarga de atitude sem a qual, percebeu, seus dias tornavam-se difíceis de suportar. Para evitar o que já tinha acontecido, Sal decidiu anotar qual deveria ser o novo padrão comportamental em folhas de papel as quais carregaria consigo. Porém, quando pela segunda vez Sal já não podia lembrar-se das atitudes do personagem, as anotações não ajudaram. Diante de um confronto qualquer ou decisão a ser tomada, ele não conseguia transpor os conselhos registrados no papel para sua prática.

Disposto a descobrir o porquê dessa limitação em sua metodologia de obtenção de atitude, Sal começou a estudar as mudanças que as sessões de quarta-feira lhe impunham. O rapaz percebeu que o tempo de retenção das características de um dado personagem era proporcional à sua capacidade de visualizá-lo. Enquanto fechasse os olhos e ele estivesse lá de forma nítida, as atitudes permaneciam. Ironicamente, a mente de Sal parecia incapaz de manter o registro por muito tempo; logo ele que tinha uma excelente memória.

Outra coisa interessante é que o garoto também não descobriu o motivo de, diante dos diversos personagens de um filme, selecionar um em particular. O máximo que Sal progrediu em relação a esse aspecto foi tecer a hipótese de que talvez a escolha se desse pela identificação com o personagem; ainda que, na maioria das vezes, isso fosse totalmente inconsciente. Afinal, ele nem sempre absorvia as características do personagem de que mais tinha gostado no filme.

O pior, porém, foi detectar mais um problema a ser resolvido. Um dado filme não permanecia eternamente em cartaz. Dessa forma, quando entrava em contato com uma película diferente e seus novos personagens, Sal obtinha atitudes também diferentes. Não que o garoto tivesse preferência quanto a esse ou aquele conjunto de atitudes, de modo algum. Para ele o importante era ter alguma atitude. O inconveniente de mudar de personalidade de tempos em tempos é que isso causaria uma má impressão nas pessoas. Ser considerado um frouxo ou banana é uma coisa, mas louco, era algo sério.

Sal precisava aumentar o tempo de permanência das atitudes e dotá-las de um padrão. Obviamente, a resposta não estava nos filmes. Mesmo que ele elegesse uma determinada história em DVD, seria obrigado a assisti-la de tempos em tempos, por toda a vida. Além disso, se algo acontecesse à cópia depois de anos, não teria mais como “resgatar” seu conjunto de atitudes. Isso seria catastrófico para sua imagem depois de tê-la consolidado de uma determinada maneira por décadas. Ele não poderia construir sua identidade sobre base tão movediça.

Algum tempo depois, Sal estava desesperado por acreditar que seu dilema não tinha solução, então, da mesma forma que os filmes lhe deram o dom da atitude, eles mostraram como aprimorar o método de obtê-las. Aquela sessão fora igual a tantas outras e Sal poderia dizer o mesmo do filme. Entretanto, as atitudes herdadas naquela ocasião apresentaram uma validade excepcionalmente estendida. Ponderando sobre o ocorrido ele lembrou que algo no último personagem permitira sua visualização por mais tempo: uma tatuagem. Naquele instante, soube o que precisa fazer para obter atitudes por tempo indeterminado: bastava registrar em sua pele um símbolo que se identificasse com tais atitudes.

Pela primeira vez em meses, Sal faltou a uma matinê; naquele dia teria outro tipo de sessão, a de um estúdio de tatuagens. Claro que teve de aliviar a carteira de seu padrasto do dinheiro para realizar seu propósito, mas o velho lhe devia isso.

O que seu novo símbolo lhe cobrou? Horas entediantes de imobilidade, a dor da agulha perfurando a pele e dias sem Sol regados à pomada? Coisas muito pequenas se comparadas ao que a tatuagem lhe dera. Daí em diante seus dias tornaram-se fáceis em definitivo. Sal sempre tomava uma atitude diante das situações. Suas notas na escola melhoraram; seus colegas o respeitavam e até seu pai sobressalente parou de incomodá-lo. Enquanto olhasse diariamente para aquela marca, a atitude implícita nela estaria presente.

O casamento entre Sal e sua tatuagem permaneceu harmonioso até que ele passou a enxergar as limitações da parceira: nenhum símbolo poderia representar ou identificar-se com todas as atitudes necessárias para encarar a vida. Se quisesse ser mais completo, Sal precisaria de novas tatuagens. No começo ele relutou, achava que sua primogênita não receberia bem novas companheiras, mas a pressão de enxergar uma falha de caráter em cada espaço sem tinta de sua pele, sobrepujou seu temor.

Decidido, o adolescente arranjou um emprego de meio período após a escola a fim de obter os recursos inerentes à conquista de novas atitudes. Seus salários eram integralmente investidos nas tatuagens. Sal desenvolveu um método intuitivo para escolhê-las; apanhava o livro, fechava os olhos e sentia quais atitudes determinada tatuagem lhe evocavam. Não demorou para que não restassem mais espaços sobre suas vestimentas para ocultá-las. Superando o medo sobre o que pensariam de suas tatuagens, Sal iniciou o processo de imprimi-las onde todos pudessem vê-las; culminando com seu rosto.

O garoto não se importou quando o dono da empresa na qual estava trabalhando deu um desculpa qualquer para dispensá-lo. A reação de sua mãe e padrasto também não foi das melhores. E antes que um deles cumprisse a promessa de expulsá-lo, ele saiu de casa. Em troca de pequenos serviços no estúdio de tatuagens o proprietário deixou que ele dormisse nos fundos do estabelecimento. O rapaz não podia estar mais feliz; sempre que uma dúvida sobre a existência o acometia ele olhava no espelho e sentia-se seguro com suas dezenas de tatuagens.

Enquanto os dias de trabalho no estúdio continuavam fáceis, as noites de Sal começaram se tornar difíceis. As vozes de suas tatuagens adquiriram o perturbador hábito de visitá-lo durante o sono: cada uma delas dizendo qual era a melhor conduta a ser adotada em sua vida. Embora as noites mal dormidas comprometessem as forças do garoto sua juventude lhe permitia manter a rotina. Pelo menos até o dia em que começou a ouvir as vozes enquanto estava acordado. Sal tentou cantarolar, ouvir música no último volume e até conversar incessantemente com os colegas e clientes do estúdio, mas as tatuagens continuavam a lhe aconselhar.

Em dúvida sobre qual tatuagem ouvir, o comportamento de Sal começou a oscilar numa amplitude e freqüência incomuns. Suas atitudes em relação aos clientes do estúdio variavam entre a cordialidade e a agressão verbal extrema. Depois de inúmeras confusões o dono do lugar expulsou-o do trabalho/casa.

Sem local para ir e tendo apenas as vozes discordantes como companhia, Sal passou a mendigar e a dormir nas ruas. Nessa época, suas refeições passaram a depender de bons cidadãos que jogavam polpudos restos de comida no lixo. Por fim, os conselhos discordantes acabaram por paralisar até mesmos os comportamentos necessários à satisfação de suas necessidades mais básicas. Deixou-se abandonar deitado sob uma ponte, defecando e urinando nas roupas enquanto se alimentava do pouquíssimo tecido adiposo que lhe restava. Sua condição tornou-se de tal forma deplorável que os poucos sem-teto que insistiam que ele se alimentasse o abandonaram.

Depois de meses sem ter notícias do filho, a mãe de Sal recebeu um telefonema; precisavam que ela fosse até o instituto médico legal. Lá chegando ficou sabendo pelo legista de plantão que infelizmente seu filho fora encontrado morto nas ruas. Diante do desespero da esposa, o padrasto de Sal ofereceu-se para confirmar a identidade do corpo, mas foi informado de que isso não seria necessário; eles tinham certeza. Os dados da arcada dentária do rapaz batiam com os de um registro no cartório de pessoas naturais da cidade. Além disso, o legista confidenciou-lhe em particular que o reconhecimento não seria possível num corpo naquele estado: sem pele nenhuma.

Com relação ao lugar onde Sal foi encontrado, aos poucos ele foi sendo abandonado pelos sem-tetos da região. Aquele bando de bêbados e drogados jurava que os grafites e pichações dali insistiam em falar e mudar de forma por conta própria.

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