sábado, 10 de julho de 2010

Drenado


Quando ele estava realizando seu treinamento, sempre lhe diziam que entender as instruções era a diferença entre estar vivo ou morto. Durante alguns meses, ouviu centenas delas. Mas de quais iria efetivamente precisar em combate? Como, por definição, o acaso impossibilita preferências, tornou-se o soldado mais aplicado de seu regimento decorando todas.

E para quê tanta informação inútil? Do que valera aprender a operar tanques ou carros com metralhadoras de grande calibre? Foi meter-se numa guerra com um país esquecido por Deus e tão pouco urbanizado que quase setenta por cento da população vivem fora das cidades. Para ser mais preciso, em meio a uma selva, lugar de vegetação tão densa e inexplorada que praticamente nenhum veículo bélico é útil na frente de batalha. Por isso, ali, ao contrário do que aprendera nas simulações, não era possível destruir os inimigos pelo apertar de um botão. Não, era necessário estar frente a frente para matar ou morrer.

O mais engraçado é que só precisou tomar três tiros para aprender a coisa mais importante que precisava saber: não seja estúpido de voluntariar-se para uma guerra; especialmente quando se está de cara cheia. Só para confirmar a grande inutilidade de tudo o que aprendeu, o fato era que, se ele ainda respirava, isso se devia à desobediência ao que aprendera, principalmente quanto a não ser um covarde e continuar lutando. Caso não tivesse se apavorado quando seu pelotão foi emboscado, teria sido massacrado com os companheiros. Ao menos não tinha sido o único, o pobre diabo que agora ele arrastava também não quisera uma medalha póstuma e tentara fugir. Justiça seja feita, o treinamento militar tinha sua utilidade. Graças a ele, sabia do que em breve iria morrer. Afinal, segundo as estatísticas de guerra “em cinqüenta por cento dos casos, os combatentes não morrem devido a seus ferimentos, mas em conseqüência da hemorragia causada por eles”.

O sargento que lhe transmitiu tal informação não engrossou essa estatística; ele foi cortado ao meio por explosivos tendo morte instantânea. Ou teria sido seu tenente quem lhe falou sobre ela? Já não tinha certeza, não era só seu sangue que escorria por todos os lados, sua memória também se esvaia.

E quanto ao companheiro que carregava? Muito provavelmente, o soldado Navarro já estava morto. O mais sensato seria deixá-lo inconsciente em meio à selva e economizar as forças que lhe restavam. Mas para que se preocupar com isso? Seus ferimentos quase não queimavam mais e seus membros pareciam impulsioná-los sem a necessidade de comando; a morte estava gentilmente assumindo o controle. Melhor assim. Que ambos morressem logo pois se fossem pegos com vida, seriam torturados sabe-se lá por quanto tempo. Além do mais, devia confessar que arrastava Navarro por um motivo egoísta, não queria morrer sozinho em meio aquele inferno no qual a umidade fazia quarenta graus centígrados parecerem sessenta.

Depois de andar mais alguns metros, ele ficou em dúvida quanto ao que tinha aprendido no treinamento sobre miragens. Elas só aconteciam em desertos? Se não, era bem provável que ele tivesse encontrado uma legítima miragem de selva. Entretanto, diferente de suas primas de desertos, aquela não simulava um oásis e sim uma cabana velha e descuidada.

Como a miragem teimava em permanecer a sua frente após alguns segundos, ele desconfiou que aquela era uma cabana de verdade. Chegou a esboçar um sorriso de alegria, mas de repente o pouco raciocínio que lhe restava advertiu que os moradores do lugar certamente eram seus inimigos; fossem eles civis ou militares. Sem dúvida, eles adorariam atrasar ao máximo o que o iminente choque hemorrágico faria com ele para assim poder torturá-lo. Diante da dúvida entre permanecer na selva ou investigar a habitação, resolveu terminar a vida da maneira como a até então a vivera, isto é, de modo imprudente. Ele avançou.

A cabana ficava a alguns centímetros do chão e se aproximando mais perto dela, notou que seu estado de conservação sugeria que estivesse abandonada. Depositou seu companheiro com cuidado no chão e em seguida, com medo de que se desfizessem a seus pés, subiu os degraus que levavam à porta de entrada. Quando estava prestes a abri-la, ouviu um barulho do lado de dentro. Alarmado pelo que poderia sair dali, puxou sua quarenta e cinco e antes que pudesse esboçar qualquer reação, uma idosa com quase metade do seu tamanho e as feições típicas do povo inimigo, apareceu.

“Ah, como são pequenos os desgraçados” – pensou.
Ergueu a pistola com dificuldade e quando ia estourar a cabeça da mulher, ela reagiu com um sorriso sem dentes. Surpreso, o soldado retribuiu o gesto de forma instintiva e desmaiou.

Ao acordar, seu corpo nu estava banhado de suor. Tentou sentar-se, mas seus músculos pareciam não ter confiança na própria força. Percebendo estar confinado à esteira sobre a qual se encontrava, começou a gritar por auxílio. Não demorou para que a mesma idosa aparecesse no aposento, mais uma vez sorrindo mas também falando coisas esquisitas; quem sabe aquele fosse algum dialeto da língua inimiga usado naquelas paragens. Nenhuma das palavras básicas que conhecia no idioma de seus adversários funcionou. Independente do que ela tentava dizer, a mulher estava visivelmente preocupada em não permitir que o soldado se levantasse e seus gestos assemelhavam-se a súplicas para que ele permanecesse deitado.

Mais por incapacitação do que por obediência, ele continuou onde estava enquanto ela limpava seu corpo com um pano umedecido. À medida que a velha seguia seu ritual, ele começou a lembrar-se da condição na qual chegara ali. Em sua opinião, a única coisa que lhe parecia certa é que ele deveria estar morto, mas evidentemente não estava. Quando o pano começou a ser friccionado contra seu tórax, uma das partes do seu corpo a receber tiros de fuzil, não sentiu dor. Aquilo só seria possível se o ferimento estivesse em avançado estado de regeneração. Curioso para ver a condição da lesão, tentou erguer a cabeça sendo mais uma vez facilmente demovido de seu intento pelo braço da mulher que, com cuidado, devolveu sua cabeça à esteira. A mesma ausência de dor ocorreu quando ela higienizou as outras partes alvejadas de seu corpo.

Nos dias seguintes, com uma paciência incomum, a mulher dedicou-se a manter o corpo do soldado livre de suores e sujeira. Depois de inúmeros esforços para comunicar-se com sua enfermeira ele desistiu de tentar e as perguntas passaram a acumular-se em sua cabeça.

Como aquela mulher ignorante tinha conseguido retirar as balas de seu corpo? Aquela era uma tarefa que exigia recursos intelectuais e materiais; ele não acreditava que a velha os possuísse. Mais intrigante: qual tinha sido o prodígio utilizado para evitar sua morte por perda de sangue? Uma transfusão seria impossível. Duvidava que ela fosse capaz de preparar soro; talvez tivesse infundido água de coco em suas veias, mas não havia coqueiros naquela selva. Quanto mais se questionava, menos entendia porque continuava vivo. Entretanto, uma coisa ele tinha de admitir, a mulher inimiga lhe salvara a vida.

Dias depois se lembrou de outra coisa que tinha aprendido com seus instrutores: um indivíduo acamado perde praticamente um quarto de sua condição cardiorrespiratória em duas semanas. Ele ao contrário, sentia-se melhor a cada amanhecer. Com certeza aquela era mais uma peça numa coleção de informações sem importância. Passados mais alguns dias ele conseguia sentar-se e a sensibilidade das pernas tinha voltado; quanto às feridas provocadas pelos tiros, ele não as encontrou mais.

Foi quando ele viu o menino pela primeira vez; era uma diminuta criatura para alguém com cerca de 10 ou 12 anos e que o observava pela janela da cabana. Após inspecionar o soldado por algum tempo, o pequeno visitante desapareceu. Nos dias que se seguiram, o soldado ficou tentando adivinhar que tipo de relacionamento o menino tinha com a velha. Ele fez uma nova tentativa de comunicar-se com a mulher a fim de esclarecer a dúvida, mas como de costume, ela apenas sorrira em resposta. Para dificultar as coisas, o menino tinha o incômodo hábito de aparecer quando ela não estava por perto.

Cerca de três semanas depois de ter chegado, o soldado acordou e deu-se conta que suas forças estavam completamente recuperadas. Vestiu uma roupa de cor estranha e saiu da cabana para encontrar a velha. Sua salvadora não estava por perto e ao procurá-la ao redor da construção, percebeu o quanto a cabana estava em meio à selva. As árvores pareciam ceder de má vontade o espaço necessário ao local, como se tivessem sido obrigadas! Isso o fez lembrar-se do soldado Navarro. Pelo visto a velha não tinha conseguido repetir o milagre com o coitado. Se ele tivesse sobrevivido já o teria visto. Onde ele estaria enterrado? Não havia nenhuma cova à vista na área livre de plantas. Era difícil de acreditar que a anã tenha sido capaz de arrastar para longe um homem com quase dois metros de altura e mais de cem quilos.

O soldado também percebeu que não sentia mais a raiva que acreditou um dia sentir pelos inimigos. Por outro lado, o verde-oliva de seu antigo uniforme já não era sua cor predileta. Tudo pesado, seu desejo de lutar parecia tão morto quanto seus companheiros de pelotão. A verdade era que ele não sentia nada em relação a nenhum dos lados em disputa. Era curioso, mas as coisas mais parecidas com um sentimento que trazia dentro de si eram a simpatia pela velha e uma estranha atração por um garoto que não vira mais que algumas vezes na última semana.

Armado com seu novo estado de espírito ele decidiu permanecer ali, ajudando no que fosse possível. Nos primeiros dias da nova resolução tentou aumentar a área em volta da cabana removendo o excesso de vegetação, o que segundo acreditava, tornaria o lugar menos sombrio. Mas o solo da região devia ser particularmente fértil pois as plantas voltavam a crescer numa velocidade anormal.

Numa manhã, a velha que pouco fora vista desde que ele resolveu lutar em vão contra a selva, aproximou-se segurando algo. Ela escancarou a boca banguela e lhe indicou uma erva que até então ele nunca tinha visto. Não foi difícil concluir que a mulher desejava que ele procurasse por aquela planta. O soldado ficou satisfeito por receber uma designação mais útil e certamente com efeito mais duradouro quanto às necessidades da idosa. Tendo lhe entregue amostra do vegetal, ela foi embora. Isso não o surpreendeu pois ele estava se acostumando com os sumiços da anfitriã. De fato, ele achava até graça por parecer uma criança abandonada em casa à própria sorte enquanto os pais ocupados saiam para trabalhar.

Já que ao redor da casa não havia indícios do vegetal misterioso, ele decidiu-se aventurar pela selva a fim de cumprir sua nova missão. Conforme se afastava da cabana sentia mais e mais a presença do garoto. Não precisa vê-lo para saber, simplesmente sabia que ele estava ali; era como se o menino compartilhasse com ele o senso de cinestesia.

Após um bom tempo, embrenhado na vegetação ele deu de frente com um grupo de seis soldados inimigos. Semanas atrás, um encontro daquela natureza o teria paralisado de medo, mas ele não sentiu nada; seu sangue permanecia surpreendentemente frio. Ao avistá-lo, os seis adotaram a óbvia reação de apontar-lhe os fuzis. Mas, por algum motivo, cinco deles hesitaram. Enquanto o sexto, aquele que parecia ser o mais jovem, destravou sua arma e só não disparou porque recebeu uma violenta bofetada na cara. Além da agressão física, o chefe do grupo que parecia muito nervoso, desferiu vários impropérios contra o desavisado rapaz. O soldado teve a impressão de poder divisar um medo intenso nas pupilas dilatadas do líder enquanto ele advertia o jovem. De súbito, o homem interrompeu seu repertório de admoestações e fez um sinal para que todos fossem embora.

Ao vê-los partir, o soldado descobriu-se aliviado, não por si. Sem notar, ele temera que o bando pudesse fazer mal ao garoto que estava próximo. Quando tomava o rumo de volta à da cabana, seu pequeno companheiro apareceu e começou a caminhar a seu lado. Eles permaneceram assim todo o tempo, apenas sorrindo um para o outro, sem nada dizer. Essa proximidade deu ao soldado um senso de completude que ele jamais experimentara.

Quando anoiteceu, o soldado sonhou que homens, mulheres e crianças gritavam desesperadas enquanto eram atacados por algo que ele não pôde identificar. O episódio foi tão real que ele podia sentir o sangue quente das vítimas espirrando a cada golpe que elas sofriam. Acordou com a sensação aflitiva de que o garoto pudesse estar em perigo.

Desesperado para saber se o menino continuava vivo, entrou na selva que, de noite era ainda mais sombria, sem prestar atenção para que lado estava indo. Acabou encontrando uma vila cujas casas eram similares àquelas de seu sonho. Sem temer qualquer reação adversa por parte dos moradores, ele prosseguiu. Mas ninguém iria agredi-lo ali pois a vila havia sido abandonada. Seus antigos moradores, contudo, não desapareceram sem deixar vestígios. Pelo contrário, cães disputavam à dentadas inúmeras peças escuras e gelatinizadas do sangue de seus antigos donos. Sua ansiedade aumentou ao pensar que talvez aquela fosse a vila do menino e que um pouco daquele sangue pudesse ser dele.

Decidiu que retornaria à cabana e obrigaria, de um jeito ou de outro, a velha a contar-lhe quem era o menino e onde poderia ser encontrado. A menos de trezentos metros da velha habitação, o soldado teve a impressão de ver um brilho se movendo na noite escura da selva; o inconfundível assovio de uma bala de fuzil foi a maneira encontrada por quem estava lá de confirmar sua presença. O silvo do primeiro tiro foi desaparecendo à medida que o pedaço de chumbo afastou-se cortando o ar. Já o som do segundo disparo teve um fim abafado pelo choque do projétil com o fêmur do soldado. Como herança desse encontro produziu-se um terceiro som, esse, o do osso cujo esfacelamento levou o soldado ao chão.

A próxima coisa que o soldado ouviu foram risadas e frases debochadas em sua conhecida língua materna; aqueles que o alvejavam eram homens de seu próprio país. Ele tentou avisar sobre sua identidade aos agressores ocultados pela vegetação, mas talvez suas roupas ou a noite os estivessem confundindo ou quem sabe ainda, aquilo era apenas o resultado da burocrática rotina de assassinar gente sem fazer perguntas. O fato, contudo, era que o grupo continuava atirando.

Enquanto outros projéteis o atingiam, o soldado percebeu não havia sangue no local do primeiro tiro; um líquido negro e viscoso escorria pelo buraco, mas o fez apenas por alguns centímetros, para logo retornar de onde viera. Em sua volta, a sustância arrastou consigo os fragmentos de osso expostos e lacrou o buraco provocado pela bala. Então ele percebeu que o mesmo estava acontecendo com cada novo ferimento que lhe era infligido; nenhum deles sangrava! O deslumbramento pela descoberta foi interrompido pelo impacto que destroçou o osso frontal de sua cabeça.

No entorpecimento que se seguiu, o soldado viu o seu jovem amigo armado e acompanhando um grupo de soldados inimigos. Em seguida, o garoto estava de joelhos enquanto um bando de militares, do mesmo exército ao qual o soldado pertencera, executava um a um seus acompanhantes adultos. Por fim, o militar colocou a pistola na boca do garoto e atirou. Quando a avó dele chegou, a mesma mulher que salvara o soldado, sangue e pedaços de miolos estavam aderidos à cabeça de seu neto. Antes de apanhar o corpo minúsculo, ela amaldiçoou os companheiros mortos do menino por o terem condenado a uma morte tão prematura, e partiu.

Então era aquilo, o garoto estava morto e fora seu maldito exército o responsável por tudo. A mulher tinha sido capaz de salvar a vida de um soldado do lado inimigo e sua paga foi a execução do neto por esse mesmo inimigo. No instante seguinte, ele ergueu-se e nem todas as balas de seus agressores foram suficientes para evitar que fossem destroçados.

Ao chegar na cabana, mais uma vez não encontrou a velha. Não sabia como iria consolá-la pela perda do neto. Então, ouviu-a há alguma distância, vegetação adentro. Partiu em seu encontro e descobriu que o som vinha de uma clareira em meio à selva. Era curioso que ele ainda não tivesse encontrado aquele lugar a tão pouca distância da cabana.

Ao aproximar-se, a luz produzida por inúmeras tochas, lhe permitiu ver dezenas de corpos nus pendurados de cabeça para baixo. Eram de todas as idades e como animais, tinham sido degolados. Seu sangue escorria por uma calha até um altar cujo centro era ocupado por um ídolo negro. Presidindo a cena, estava a velha que agora não parecia nem pequena nem ignorante. Ela não se importou ao perceber que o soldado a estava observando. Pelo contrário, ela sorriu e lançou no fogo um pouco da estranha erva que o soldado em vão procurara. A fumaça exalada do curioso incenso apossou-se de sua mente e ele teve sua segunda visão. Fora ele quem lhe trouxera aquelas pessoas, todas elas. Eram os habitantes da vila que a pouco o soldado descobrira. O sangue disputado pelos cachorros era daqueles que ele fora obrigado a machucar por terem resistido.

Simultaneamente ao retorno das lembranças do soldado, a velha foi até uma pilha de ossos e apanhou um fêmur. A placa de identificação junto às demais partes do esqueleto, deixava claro que elas pertenciam ao soldado Navarro. O que outrora servira de suporte às partes moles do corpo do falecido fora convertido num recipiente oco.

Com aquele osso longo da perna em mãos, a mulher aumentou a intensidade do conto e despejou parte do conteúdo sobre uma cova recente. Em instantes, uma pequena mão surgiu da terra e logo, um corpo inteiro tinha emergido, era o garoto.

Naquele instante, as peças finais se encaixaram. Não foram os militares que o soldado acabara de trucidar os responsáveis pela morte do menino; há muito outros soldados o tinham matado. A criança estava morta muito antes de o soldado ser foi acolhido pela velha. Por outro lado, seu sangue tinha sido a chave para a ressurreição da criança. O mesmo sangue que fora drenado em troca da misteriosa substância negra e que agora estava depositado nos ossos do falecido Navarro. Quanto às vítimas, elas não passavam de um fim para amenizar a sede infinita de um Deus que exigia sua parte no pacto obsceno e imoral de reviver o neto da idosa.

Tudo se resumia a um engodo e naquela guerra ele não era nada mais que uma marionete servindo a interesses alheios à sua vontade. Do alto de sua estupidez, compreendeu que só havia uma coisa pela qual valia à pena lutar naquele inferno: o descanso que fora negado a ele e ao garoto. O fim do pesadelo começava com a morte da velha e a recuperação de seu sangue. Ele acreditava que enquanto o líquido estivesse armazenado nos ossos do soldado Navarro, não haveria descanso para si. Munido apenas de sua vontade, avançou contra a feiticeira com a intenção dar-lhe a morte que ela própria negara a ele. Impassível, a velha continuava a cantar e à medida que o soldado se aproximava dava a ele o que sempre dera, seu sorriso incompleto.

No momento seguinte, tudo se tornou claro e quente ao extremo, tanto que o soldado sentiu sua carne começar a derreter sobre os ossos. Luz e calor foram substituídos por um estrondo que por sua vez, deu lugar a um deslocamento de ar potente o suficiente para arremessar seu corpo a centenas de metros antes dele mergulhar na inconsciência.

O soldado foi despertado pelos raios solares que agora chegavam em abundância ao solo uma vez que não havia mais árvores para bloqueá-los; a selva desaparecera numa grande extensão em torno de onde o soldado estava. Agora, tudo era devastação e não havia mais um único corpo no lugar que antes fora a clareira, sem dúvida, todos foram evaporados pelo calor de uma bomba incendiária produzia por seus compatriotas. Que comandante seria idiota o bastante para dar tal ordem com suas tropas na região? Nem a placa de identificação do soldado Navarro, a única coisa ali capaz de resistir ao calor produzido pelo artefato quântico, estava por perto. Provavelmente, ela tinha sido lançada a quilômetros. O soldado sabia que a velha e o menino tinham desaparecido para sempre; ao menos um deles estava em paz. Quanto ao corpo do soldado, exatamente como acontecera antes, ele estava completamente regenerado.

Quanto a sua situação, ele concluiu que estivera errado. A destruição dos ossos do soldado Navarro não era a reposta para seu problema, afinal, tudo tinha sido calcinado e ele ainda continuava de pé. Não importava o quanto demorasse ele haveria de encontrar uma saída. Tempo era algo que não lhe faltava, enquanto a substância negra estivesse preenchendo seu sistema circulatório, a eternidade estaria do seu lado.

Enquanto isso, há milhares de quilômetros dali, no país do soldado, os únicos restos mortais até então capazes de resistiram ao calor de uma bomba incendiária, foram depositados no mausoléu dos heróis de guerra com todas as honras militares. A inexplicável permanência dos ossos do soldado Fernando Navarro só confirmava a bravura e resistência dos homens daquele país e haveria de inspirar muitos jovens a defenderem aquela gloriosa pátria de seus inimigos.

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