sábado, 10 de julho de 2010

Raiva



Estavam seguros ali dentro. A chuva poderia continuar por outra semana; ela não entraria. Ele desejava que toda a água do mundo acabasse. Tinha consciência de que poderia demorar, mas persistiria, faria sua parte. Quem sabe mais algum tempo com as torneiras e o chuveiro abertos a água se esgotasse? Além de livrar-se do pavoroso líquido contribuiria para que o planeta passasse a justificar seu nome.


Samantha estava do outro lado da sala. Ele não se lembrava da última vez que a ouvira. Desconfiava que ela ainda estava com raiva. Chegou a explodir:


_ Droga Samantha, faz alguma coisa sua vagabunda! Desculpe, desculpe... São as dores, você sabe, me deixam furioso.


Então o vento ficou mais forte. A chuva insistia em pegá-los. Mas ele tinha certeza que tudo estava selado: janelas, portas, ralos. Ninguém conseguiria entrar. Mas e se chuva conseguisse? E se alguma fresta, buraco ou rachadura fora esquecido?


Decidiu precaver-se. Satisfeito pela indulgência dos espasmos musculares que não impediram sua mobilidade por completo, arrastou-se sobre o próprio vômito até a cozinha. De posse de seu talismã abraçou Samantha. Sussurrou-lhe que não estava mais zangado. Nem pelo silêncio nem pela mordida. Sua mão já não doía. Quem não tinha seus maus momentos? Tomado de carinho por sua fiel companheira gritou:


_ Eu te perdôo.


Ela não reagiu. Continuava imóvel e quieta. Acariciou-lhe o rosto e soube que estava perdido. A saliva que escorria pela boca de Samantha era o sinal. A água tinha entrado! O tenebroso líquido estava dentro dele! Bisbilhotando e profanando cada microscópico segredo de sua fisiologia.


_ Samantha, me ajude!


Em seus braços Samantha parecia distante, fria. Ele estava por sua conta e decidiu usar seu talismã. Sua poderosa magia não lhe abandonou. Enquanto a água pegajosa e quente jorrava de seus pulsos abertos incomodando-o uma última vez, o som da chuva diminuía.

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