sábado, 10 de julho de 2010

Cogumelos sob a Luz da Lua Cheia




Dias atuais, numa potência do hemisfério norte.

_ Senhor presidente, desculpe-me incomodá-lo, mas trago informações da junta de generais.

_ O que eles disseram sobre meus planos?

_ Estão aguardando vossas ordens para entrar em guerra contra os demônios do Ocidente.

_ Excelente! Você fez um bom trabalho; não me esquecerei de sua lealdade. Se não tiver mais informes, pode ir.

_ Na verdade, senhor, o ministro Gouveia solicitou uma audiência. Mas ele não disse o assunto, só que era importante.

_ Pois bem, encontre-o e traga-o aqui.

_ Sim vossa excelência, com licença.

Em outra parte do palácio presidencial, o ministro Gouveia entra numa sala de interrogatório.

_ Salve, ministro!

_ Então capitão, o que conseguiu dele?

Em resposta, o oficial entregou um livro ao ministro.

_ Ele só tinha isso?

_ Sim. Mas nossos especialistas acreditam que esse não é um livro qualquer; aparentemente ele tem alguns séculos! Claro que eles precisariam examinar o conteúdo...

_ Mas ninguém fez isso, não é? Cabe a mim descobrir se há algo de valor aqui ou se isso é só uma peça de museu. Ah, a partir de agora, deixe o espião em paz. Que fiquei ai no chão, mas não bata mais nele; mortos não falam.


Dizendo isso, Gouveia partiu em direção a seu gabinete. Lá, com as mãos trêmulas, ele começou a folhear o livro.

“A cada dia que passa, temo que a fera apague por completo o homem que já fui. Caso um dia isso ocorra, essas páginas me lembrarão que já fui conhecido por Aemilius Lepidus Tácito.”

“Minha vida ordinária mudou radicalmente cerca de 60 anos antes da era cristã. Eu fora escravizado e forçado a lutar sob o comando de Júlio César em sua campanha na Gália. Tivesse tido sorte, teria morrido em batalha, mas fui ser capturado e os druidas me reservaram um terrível fim: o sacrifício. Era noite de lua cheia e fui amarrado a um gigantesco carvalho. Contudo, não foi uma divindade que apareceu instantes antes de meu peito ser aberto, e sim dezenas de demônios chamados de vérsipélios pelos romanos bastardos. Liderados pelos uivos infernais do maior entre eles, uma criatura que se assemelhava a um lobo mas cujo corpo branco era o de um homem, os demais destroçaram todos os gauleses com uma rapidez e ferocidade de fazer inveja a melhor das legiões romanas. Quando só eu ainda respirava naquela maldita floresta, a grande besta branca veio até mim. Contrariando minhas expectativas de ser indignamente estripado como um porco amarrado, fui mordido no ombro e, após ser arremessado à distância, mergulhei na inconsciência.”

“Quando fui encontrado estava entre o reino dos vivos e o dos mortos e apesar disso, um médico piedoso, convenceu outros legionários a me carregarem. Semanas depois quando estávamos na metade do caminho entre Roma e a Gália, uma assombrosa mudança ocorreu numa noite de lua cheia: minha razão desapareceu na mesma proporção que meu corpo aumentou em tamanho e fúria. No dia seguinte, os pedaços de corpos atestavam meus crimes. Infelizmente, o único romano pelo qual já tivera apreço, o médico, estava entre as vítimas.”

“Embora depois da primeira transformação, inúmeras outras tenham ocorrido ao longo dos anos, as lembranças desses momentos estão envoltas em névoas. O mesmo não ocorre quanto às sensações que se apossavam de mim. Transformado, meus sentidos ficavam tão ampliados que podia sentir as diferença de sabor entre a carne mais branca e a mais vermelha dos músculos de minhas vítimas. E o que dizer do gosto contrastante entre o sangue arterial, rico em nutrientes e o sangue venoso, cheio de excretas?”

“Claro que o maior tesouro obtido com a passagem do tempo foi as descobertas que fiz. A primeira e, também mais amarga delas, foi perceber que teria de passar toda existência fugindo. Afinal, se nas noites de lua cheia eu era praticamente indestrutível, nos demais dias do mês era presa fácil daqueles que previamente tinha caçado. A falta de contato humano, decorrente disso, foi salutar à besta que habitava em mim; sua presença passou a dominavar-me de modo crescente mesmo quando não havia lua cheia.”

“A segunda constatação foi a de que gozaria da imortalidade desde que me mantivesse a salvo de meus perseguidores, afinal, qualquer sinal de envelhecimento cessou em meu corpo; mas manter-me ileso não era uma tarefa fácil. Certa ocasião, quando o Império Romano do Oriente acabara de fragmentar-se levando consigo a Idade Média, fui salvo da destruição por uma jovem das estepes russas que me ocultou de seus conterâneos furiosos. O surgimento de Madalena estancou a dominação que a fera vinha exercendo sobre minha personalidade. Assim, apaixonei por uma garota milhares de anos mais nova que eu. Depois de contar-lhe meu segredo, nos mudamos mais para o norte e, em nosso novo lar, construi uma prisão para conter-me quando necessário; logo vieram os filhos.”

“O sonho durou quinze anos, até que o lobo branco que me criou atravessou o mundo e veio me assombrar numa noite de lua cheia. Preso pelos grilhões, achei que veria impotente, minha família ser massacrada. Mas enquanto o resto da alcatéia segurava minha mulher e filhos, meu criador veio até mim e me libertou. Desesperado, atraquei-me com ele e, embora liberasse toda minha fúria, meu adversário parecia estar se divertindo com algo. Como o monstro descobriu sobre o eclipse lunar total, jamais saberei, mas assim que ele começou, eu e os demais versipélios voltamos ao nosso estado original, enquanto ele permanecia o mesmo. Aparentemente, o monstro original não se dobrava nem à lua cheia. Posso jurar que, segundos antes dele levar o último resquício de minha humanidade com a vida de meus familiares, vi um sorriso naquela face animalesca. Depois, ele simplesmente partiu.”

“Após o...”

_ Senhor ministro, com licença. Bati à porta, mas o senhor não respondeu. O presidente concordou em recebê-lo.

_ Pedro? Está bem, vamos.

Minutos depois, ambos estavam no gabinete presidencial.

_ Entrem, por favor. Então, Gouveia, o que tinha a me dizer que não podia esperar?

_ Peço perdão por tê-lo alarmado, mas o livro que tenho em mãos não tem nenhum segredo militar importante, como imaginei. Na verdade, ele não passa de uma coleção de sandices; delírios de algum lunático que acreditava ser um lobisomem perseguido por outros lobisomens.

_ E como termina a história?

_ Bem, eu não terminei...

_ Fiquei curioso, por favor, leia o restante para nós, ainda temos tempo.

_ Deixe-me ver...aqui. “Após o eclipse, minhas transformações cessaram, mas a fúria e a loucura passaram a me dominar em tempo integral. Desde então, voltei a viver entre os homens buscando a única forma de saciar meu desejo: destruir por completo todas as odiosas criaturas da face da Terra”. Eu não disse, senhor? Que tudo não passava de loucura?

_ Veja o lado bom disso, ministro. Podemos usar a história para convencer o povo de que o país do ocidente é realmente dominado por demônios. Ninguém se negaria a lutar...

_ Mas isso é um absurdo...

No instante seguinte, as mãos nuas do presidente arrancaram a cabeça do ministro com tal velocidade que o corpo deste continuou gesticando por alguns instantes como se ainda estivesse conversando.

_ Ah, às vezes eu me esqueço da força que tenho! Viu, Pedro? Diferente de você, o Gouveia nunca teve fé em mim. Agora, tire esse sangue do rosto e aprecie o lançamento de algumas de nossas ogivas, mas só as que forem suficientes para provocar o revide inimigo.

_ Então, o senhor?

_ Sim, o livro é meu. E graças a pessoas como você, em breve o mundo estará livre!

_ Dos lobisomens?

_ Não meu caro, não só. Há tempos percebi que não sou parte nem da alcatéia nem da humanidade. Dando chance de revide, há mais garantias de que as bombas eliminem ambos. Não há mais lugar nesse mundo para nada que não seja a evolução, isto é, eu. Não se preocupe, você e algumas centenas de servos estão a salvo aqui. Garantirei que vivam e procriem para me servir. Afinal, é preciso que exista ordem pois como dizia o bom filósofo inglês “o homem é o lobo do homem”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário