sábado, 10 de julho de 2010

Inconsciência Ecológica

Somos criaturas antinaturais e, ainda que insconciente, tal constatação é a muito evidenciada. Daí, mitos ancestrais como o do deus grego Prometeu, forçado a nos conceder fogo e postura bípede porque seu irmão fez os animais mais rápidos e fortes. Contudo, discordo de que os dons emergenciais tenham compensado o erro de nossa concepção.


Na verdade, a essência diversa nos incapacita viver como os outros seres. Veja por exemplo, o tão festejado lado gregário humano. Para os que desconhecem o fruto da árvore proibida e, por isso são irracionais, estar em bando é encontrar-se sob julgo da Natureza. Já para nós cuja “mente pensante” ousou dispensar essa força reguladora, agrupar-se significa não ter limites; o bando humano anula os indivíduos transformando-os numa entidade coletiva cuja monstruosidade não encontra rival.


Não à toa, toda vida desdenhei essa atração pelo coletivo. Contudo, agora no fim, peço por companhia como um ateu que ora com fevor a Deus pedindo salvação; difícil é crer que os eventos responsáveis por minha conversão se iniciaram há menos de duas semanas.


Naquela manhã fui acordado mais cedo pois cabia a mim, o infectologista do grupo, decidir quando e como alguém poderia sair ou entrar; sempre havia o risco da contaminação. De cima da muralha do acampamento podíamos ver um homem que se arrastava na frente do portão implorando acesso. Por mim, ele morreria. Deixar entrar um desconhecido, por certo contaminado, não era lógico. Mas acabei cedendo, as três centenas de pessoas do grupo acabariam por me considerar um monstro pior do que os que nos rodeavam caso não o fizesse.


Ainda sem saber se o rapaz sobreviveria, coletei seu sangue e deparei-me com algo improvável: não havia anticorpos zumbis. Logo, ele realizara a proeza de andar por aí sem que nenhum dos mortos o arranhasse ou mordesse.


Uma semana após chegar, ele estava hidratado e decidimos interrogá-lo. Seu nome era Francisco e tinha vivido os últimos anos nas montanhas que ficavam no Noroeste do estado. O rigor do último inverno matou as plantas e os animais de sua família. Quando as reservas acabaram foi preciso decidir entre morrer de inanição ou arriscar-se em busca provisões. O resto não podia ser menos óbvio; farejados pelos zumbis, toda sua família foi morta.


Questionado sobre como escapara, recebemos com gargalhadas sua resposta: depois de matarem a última pessoa de sua família, os cadáveres ambulantes deram-lhe as costas. Aos poucos, durantes as semanas seguintes, ele percebeu que poderia procurar alimento sem risco de ataque.
Louco ou não, era impossível chegar até nosso acapamento sem cruzar o mar morto. Há alguns anos, um piadista de nosso grupo, resolveu dar esse nome ao agrupamento de milhares de zumbis que estava a cinco quilômetros do acampamento. Confrontado por nossa incredulidade, Francisco disse que voltaria lá e poderíamos observá-lo à distância.


Percebi que se a história fosse verdadeira, poderíamos trocar de acampamento para um lugar mais apropriado para dar lugar aos acontecimentos programados para dali a uma semana. Um antigo condomínio do outro lado da cidade era a melhor opção. Sem comunicar minhas intenções aos demais participantes do interrogatório, prontifiquei-me a acompanhar Francisco. Outros quatro membros se ofereceram para ir conosco.


Partimos carregando a maior quantidade de armas e munições que não atrapalhasse nossa mobilidade. Descemos o caminho rochoso e avistamos a massa de zumbis acerca de meio quilômetro, estancamos de imediato. Um de nós, contudo, continuou. Tomado pelo súbito presentimento de que mandava à morte um homem ávido por aceitação, comecei a gritar-lhe para que voltasse, mas ele não me atendeu.


Mais e mais próximo das criaturas, vimos quando Francisco, sob vigilância de nossos binóculos, se tornou um entre muitos pontos do mar morto. Àquela distância e entre tantos corpos era impossível perceber alguma movimentação anormal que indicasse que ele estivesse sendo atacado. Inquietos, esperávamos qual o primeiro de nós decretaria quão tolo era ter esperanças de que o rapaz iria voltar, mas ele voltou. Destacando-se da multidão, trazia pela mão um zumbi que outrora fora uma mulher; sem protestar ela permitia ser conduzida.


Foi devido à ousadia que experimentei paradoxo de sentir carne pútedra e úmida firmente aderidas aos ossos de um zumbi “vivo”. Eufórico, exterminei-a com um tiro na testa e voltamos para o acampamento.


Cientes da boa nova, o pessoal do acampamento se deixou convencer de duas coisas: que seria mais fácil dar continuidade ao projeto biogênesis fora dali e que teríamos que nos mudar dentro de uma semana a fim de cumprir seu cronograma. Francisco era a única pessoal que não poderia concordar com a pauta, por não saber do que se tratava.


Para tornar mais digeríveis as minúcias biológicas, contei-lhe na linguagem mais leiga possível, que há quinze anos tínhamos decidido conservar em nitrogênio líquido nossos óvulos e espermatozóides. Que de lá para cá, tínhamos investido todo o conhecimento de nosso pessoal, constituído em sua maioria por cientistas da antiga universidade, na construção de equipamentos capazes de realizar uma gestação extra-uterina. Batizados de úteros mecânicos, esses aparelhos concluídos a cerca de seis meses, tinham recebido nossos gametas e iriam nos entregar seus primeiros recém-nascidos em uma semana.


A quietude com a qual Francisco ouviu meu relato foi substituída pelo destempero. Sem que ninguém pudesse contê-lo, gritava que aquilo seria um erro e que não deveríamos trazer ninguém a esse mundo. Para ele as coisas estavam boas como eram e tentar alterá-las atraria desgraça. Por fim, ele saiu correndo da reunião. Estávamos preocupados com nossos planos para nos preocuparmos com os acessos de loucura de um estranho.


Foram necessários três dias para encaxotar o que prestava entre equipamentos e tralhas dos mais variados. Partiríamos em dois grupos; o maior iria na frente levando os úteros mecânicos, as melhores armas, veículos e quase todo mantimento. Eu e o restante de nós, levaríamos água e comida apenas necessárias para um dia de caminhada; além de algumas armas de menor calibre.
No dia combinado, o primeiro grupo partiu cedo enquanto nós terminávamos de desmontar o acampamento. Era a primeira vez que via Francisco em três dias e pedi-lhe que fosse no primeiro grupo. Embora tenha concordado, assim que se viu fora dos portões, ele se desvinculou do grupo e desapareceu em meio às rochas.


Foram necessárias três horas de uma estrada acidentada para que o grupo chegasse ao mar morto e outras duas para cruzá-lo. Pelo rádio nos informavam que os zumbis não se manifestaram durante a travessia, nem mesmo ao serem esmagados pelos caminhões. Às vinte e duas horas, eles chegaram ao condomínio; imediatamente começaram os procedimentos de remoção dos zumbis.


Com o comunicado, partirmos. Próximo ao mar morto fui consultado: apesar de estar tudo pronto, poderiam me esperar para liberar as crianças. Disse-lhes que um velho já não pode pensar em si e que prosseguissem sem mim.


Senti e fiz questão apenas de realizar a contagem regressiva. À frente, os tiros iam iluminando a caminhada de meu grupo entre os mortos. No zero, gritos e salvas vindos do rádio marcaram o instante do nascimento e percebi o quão estivera errado.


Quando os zumbis surgiram, achei que tendência do Homem a formar bandos descontrolados era tão forte que persistia até depois da morte. Aquela seria a prova de que nem mesmo mortos nos submetíamos a Natureza, mas eu me enganei. Lembrei-me da frase “a natureza nunca nos engana; somos nós que nos enganamos*.” Do lado de lá, gritos chorosos anunciavam a chegada de cento e cinquenta bebês enquanto a alguns metros de mim, exatamente o mesmo número de meus companheiros era devorado sob uivos ferozes.


Agora sozinho, lamento que os malditos zumbis tenham voltado a seu amaldiçoado estado quiescente e não possam apressar meu fim. Parto percebendo que na morte, finalmente nos tornamos parte da Natureza.

*Jean Jacques Rousseau

Um comentário:

  1. Primo?!!Um dia quero ser como vc! srsrs....magnifico, texto forte, autêntico...sem palavras

    ResponderExcluir