sábado, 10 de julho de 2010

Compromisso



A máquina do tempo existe e está em cada um de nós, seres humanos. Embora não nos possibilite viajar pelas épocas, é essa máquina do tempo individual quem marca os ritmos de nossa vida: quando a temperatura corporal está mais alta, quando temos sono, o pico de liberação de nossos hormônios e até os horários do dia em que estamos mais predispostos a nascer. Enfim, enquanto a máquina mantiver a precisão de nossos ritmos biológicos, esse será o tempo da saúde. Por extensão, a doença representa a quebra da máquina, seja pela decorrente perda da ritmicidade biológica, seja pelo momento em que se anuncia. A doença e sua mais dramática conseqüência, a morte, são visitantes inesperados. Por isso, a rotina de um pronto socorro, é atemporal; a invariabilidade resume-se à chegada sem fim de objetos chamados pacientes.

Era madrugada de sábado para domingo no pronto socorro de São Miguel Paulista e o doutor Sérgio Ferreira ainda tinha doze horas de plantão pela frente. Como de costume, às três da madrugada, o médico veterano preparava-se par dar um cochilo, mas foi interrompido pela chegada de uma viatura da PM. O sargento, conhecido seu, chamou-lhe a um canto e recomendou:

_ Doutor, faz um tempinho antes de atender esse daí. Este é coisa sem conserto.

Atendendo à recomendação, doutor Sérgio constatou uma providencial falta de pessoal para estancar a hemorragia dos ferimentos à bala recebidos pelo suposto meliante. Providenciado o atraso e dada a recomendação de que, assim que possível, o rapaz fosse levado à geladeira, o doutor tomou o rumo da sala onde gozaria de seu merecido descanso.

Antes de atingir seu objetivo, porém, foi interrompido pela segunda vez. Agora era um homem de aproximadamente quarenta anos que o segurava pelo braço enquanto se contorcia e balbucia coisas incompreensíveis numa maca:

_ ...arte de curar...da caridade..da ciência...

Chamando uma enfermeira próxima o doutor quis saber:

_ O que tem esse ai?


_ Não sei doutor, ele chegou hoje de manhã.


_ Tem plano de saúde?


_ Veio sem nenhum documento.


_ Quando der, manda para o raio-X, depois eu dou uma olhada.

Dada a ordem, não houve novas interrupções e o doutor pode finalmente dormir. Infelizmente para ele, não as duas horas de costume; um acidente de carro na avenida Marechal Tito obrigou uma das enfermeiras a solicitar sua ajuda. Sem alternativa, o médico foi receber os feridos. No corredor, o mesmo homem de antes insistia em seu palavreado sem sentido:

_ ...goze eu sempre a minha vida...

Irritado, doutor Sérgio explodiu:

_ Cale a boca infeliz!

Ao consultar a enfermeira que o acordara sobre o resultado do raio-X daquele homem, foi informado que não havia resultado; o aparelho de raio-X quebrara. Questionado pela moça se deveria pedir a remoção do paciente para outra instalação onde o exame pudesse ser executado, doutor Sérgio insistiu na tese que o homem haveria de agüentar. Afinal, alguém falando daquele jeito não poderia estar tão mal.

O restante do plantão correu sem novidades e às três e trinta da tarde, doutor Sérgio dirigiu-se à sua padaria predileta para quebrar o jejum; não suportava os lanches do PS. Depois de pedir algo, foi ao banheiro. Com os olhos fechados e o rosto cheio de sabonete sentiu uma pressão irresistível torcer-lhe o braço para trás.

_ Ouça – ordenou uma voz que passou a ler.

“Prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência. Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, o que terei como preceito da honra. Nunca me servirei da minha profissão para corromper os costumes ou favorecer o crime. Seu eu cumprir este juramento com fidelidade, goze eu para sempre a minha vida e a minha arte com boa reputação entre os homens...”

_ Lembra-se disso? – questionou a voz.

Gaguejando, o médico respondeu que sim e que se tratava do conhecido juramento de Hipócrates.

Então, a voz advertiu:

_ Preste atenção, sua vida depende disso. O que está faltando?

Sem saber como aquela recordação ainda residia em sua memória o médico disparou:

_ ...se o infringir...ou dele afastar-me...suceda-me o contrário.

Cumprindo sua promessa, o dono da voz soltou o braço do médico. Este por sua vez, sentiu o medo dar lugar a um desfalecimento molhado e quente. Algum tempo depois, um teste do pezinho foi encontrado na boca de um corpo, que ao ter a jugular cortada, estava ilhado pelo próprio sangue. Por sua vez, o paciente que não pôde fazer o raio-X, desapareceu.

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