sábado, 10 de julho de 2010

Do Pó aos Seres do Pó [2]




Agora que meu estoque de neomicina acabou preciso esperar pelo Sol. Dentro de uma hora amanhecerá e nós estaremos a salvo das hienas. O lado bom dessa espera é que posso continuar procurando pelo ponto fraco das malditas. A solução tem de estar em algum ponto da história; deve ser algo que não percebi ou um detalhe bobo.

Foi no dia da assembléia que eu dei início à contagem regressiva para o fim do mundo, mas os fios de tal destino começaram a serem tecidos meses antes. Na ocasião, o prefeito de São Paulo e seus assessores, tentaram lidar com o problema em sigilo. Primeiro eles usaram caminhões frigoríficos para armazenar os indigentes. Como isso não foi suficiente, eles passaram a mentir para os que tinham família alegando que os corpos não podiam ser liberados devido a problemas com a necropsia. Por fim, a situação se tornou insustentável e foi preciso revelar que os cemitérios da metrópole estavam lotados.

O anúncio gerou revolta e o prefeito renunciou com toda sua equipe. Receoso quanto ao que pudessem achar de suas decisões, seu substituto decidiu discutir o problema numa assembléia pública. Na manhã combinada, diversos representantes da sociedade paulistana reuniram-se no ginásio do Ibirapuera. A cerimônia foi aberta com o lembrete de que não havia mais espaço na cidade para a construção de um novo cemitério.

Então foi a vez do administrador do cemitério de Vila Alpina sugerir a cremação como solução mais viável de ser implementada no curto prazo. A sugestão chegou a agremiar um número considerável de indivíduos. Infelizmente, uma proporção igualmente significativa da audiência, não concordava com o procedimento, afirmando que ele era contrário às crenças prévias de seus entes falecidos.

À medida que as horas passavam e novas propostas eram recusadas, eu ia ficando mais impaciente e o esforço para manter-me quieto aumentava. Já no início da noite, a organização da assembléia estava fragmentada e decidi pedir a palavra. Aproveitando que minhas credenciais de geneticista da USP bastaram para chamar a atenção, tomei fôlego e revelei aos presentes que a solução estava em permitir que ácaros se alimentassem dos cadáveres acelerando o retorno destes ao pó.

A proposta foi rejeitada por unanimidade, mas não me alterei; chegara até ali e não deixaria minha reputação ir para o lixo sem lutar. Permaneci impassível e insisti para que todos continuassem prestando atenção ao que tinha a dizer. Lembrei a todos que o uso dos ácaros não era nenhuma heresia; aqueles seres estavam consumindo restos humanos há centenas de milhares de anos. Obviamente, não corpos inteiros, mas isso era feito por outros seres. Para reforçar minha tese, apelei à questionável etimologia popular lembrando que a palavra cadáver derivava do latim “caro data vermibus”, ou seja, carne dada aos vermes. Em seguida, destaquei que a utilização adequada dos ácaros não causaria problemas ao meio ambiente, já que se tratava de uma solução “natural”. Continuei argumentando e quando o dia amanheceu, minha proposta foi aprovada sem que um voto sequer lhe fosse negado; um verdadeiro triunfo da retórica aliada à fatalidade.

Como era fundamental obter uma grande quantidade de ácaros em pouco tempo, a prefeitura promoveu uma campanha de troca de travesseiros e colchões pela cidade: a municipalidade doaria novos artigos de cama enquanto os cidadãos cederiam seus itens usados. Como todo esse material eu era capaz de obter um trilhão de ácaros a partir de um colchão com dez anos de uso; os travesseiros não ficavam muito atrás, já que após 6 anos de utilização, dez por cento do peso destes era constituído por ácaros.

O passo seguinte foi combinar as características dos cinco diferentes tipos de ácaros recuperados no material numa nova espécie híbrida. Minha criação apresentava uma longevidade estendida de até doze meses, ao invés dos dois a quatro habituais. Assim, a reposição dos espécimes não necessitava ser tão freqüente. Claro que precisei de todo meu talento para introduzir outra modificação: aqueles ácaros eram capazes devorar qualquer tecido morto e não só pele. Inebriado pela vaidade, fui descuidado ao acreditar que os dois mecanismos de controle inseridos naqueles seres os manteriam sob controle. O primeiro era a sensibilidade elevada aos raios ultravioleta; o que os obrigava “trabalharem” à noite. O segundo era a incapacidade dos ácaros de lidarem com a neomicina. Se por algum motivo fosse preciso eliminá-los, bastaria usar o antibiótico. Por fim, desconhecendo que estava promulgando a sentença de morte da humanidade, batizei jocosamente minha criação de hienas do pó.

Logo, os pequenos carniceiros foram distribuídos entre os serviços funerários da capital paulista. Sua utilização era bem simples; uma caixa contendo as microscópicas hienas era adicionada dentro do caixão ao final do velório. Por outro lado, os mortos que tinham seu funeral num esquife lacrado, já saiam do IML com a tal caixa. Uma vez executado seu trabalho, os ácaros eram recolhidos das covas e reutilizados. Como as hienas eram incapazes de se alimentarem de tecido vivo, os funcionários dos cemitérios podiam manipulá-los sem a necessidade de equipamentos de segurança.

Certa noite, alguns meses depois, recebi um telefonema convocando-me à prefeitura. Quando cheguei, o prefeito foi logo apresentando um envelope com fotos; não entendi o motivo daquilo, mas examinei-as sem questionar. Quando por fim, percebi que as imagens representavam homens em leitos de hospital, disse a ele que era geneticista, não clínico. O homem não comprou a piada e insistiu para que eu olhasse dando atenção à pele dos indivíduos. Voltei a lembrar que não era médico, dessa em tom sério.

Então, o nervoso alcaide revelou-me que aqueles homens eram funcionários municipais lotados nos cemitérios da cidade e me questionou se eu tinha idéia do poderia estar acontecendo. Fiquei surpreso por ele imaginar que aquilo pudesse ser obra das hienas. Por isso, lembrei-o que meus ácaros só eram capazes de consumir tecido morto; eu mesmo os havia manipulado várias vezes com a pele nua e não apresentava nenhuma lesão. Convencido, o prefeito me ofereceu um drinque e nos despedimos.

Nas semanas seguintes um dos trabalhadores retratados, tornou-se a primeira vítima fatal da misteriosa doença. Quando os legistas o examinaram, fizeram a inesperada constatação de que além de sua pele, vários de seus órgãos internos tinham sido parcialmente devorados. Embora meu imenso orgulho ainda me impedisse ver o óbvio, concordei que seria prudente eliminar as hienas do pó. Equipes foram montadas e à luz do dia, todas as caixas contendo os ácaros foram abertas pelos cemitérios da cidade.

Mas já era tarde. Poucos dias depois uma senhora estava esperando o ônibus na Rua da Consolação, ao lado do muro do cemitério de mesmo nome. Testemunhas afirmaram que após uma rajada de vento, um terrível processo de desintegração observou-se nela. Primeiro sua pele começou a desaparecer revelando progressivamente gordura subcutânea, músculos, vísceras e ossos; por fim, esses deram lugar ao vazio.

Em resposta ao ocorrido, a cidade vivenciou um êxodo de proporções bíblicas. Claro que muitos aprenderam da pior forma que a fuga não seria tão fácil; os que tentaram fugir à noite foram devorados, já os mais pacientes enfrentavam um congestionamento sem fim enquanto o Sol brilhava. Se ao menos eles soubessem que estavam perdidos, talvez promovesse um último ato de caridade: permanecer onde estavam. Desconhecendo que ácaros têm uma capacidade incrível de aderirem a peças de algodão, os fugitivos carregaram consigo espécimes que, protegidos do Sol entre dobras de tecido, foram capazes de mais tarde estabelecerem colônias em suas novas moradas. Foi assim que as hienas do pó, uma criação tipicamente paulistana, tornaram-se produto de exportação. Quando os países mais organizados fecharam suas fronteiras, a disseminação já era incontrolável. Os milhares de linchamentos fermentados pelo xenofobismo foram igualmente ineficazes para combater os microscópicos seres.

Se na época não tive fim semelhante, devo isso à minha filha. Por causa de Sara, pensei muito até concluir que o mais óbvio era abandonar São Paulo à noite. Assim, não corria o risco de ser atacado por pessoas já que quanto aos ácaros eu tinha um trunfo único, a neomicina. Então, liguei para meus pais em Uberlândia instruindo-lhes que comprassem todo o antibiótico que conseguissem. Orientei-os ainda a consumir uma dose maciça dele e que esperassem por mim.
Cheguei no triângulo mineiro depois de quatro dias; o atraso deu-se pelos inúmeros obstáculos como carros e ônibus abandonados pelo caminho. Chegando à casa de meus pais, descobri que eles tinham sido bem sucedidos na compra do remédio, pena que isso não impediu que fossem assassinados por saqueadores. O castigo pelo duplo homicídio foi que os invasores levaram toda a comida deixando para trás a neomicina.

Enterrei meus pais no quintal e comecei a usar meu suprimento de antibiótico em incursões noturnas até um hipermercado próximo. Permaneci três meses nessa rotina. Então, a perigosa mistura de esperança com ilusão me fez acreditar que as criaturas não chegariam Uberlândia e que a vizinhança não fora devorada, apenas fugira. Mas tudo se desfez numa noite em que fui ao supermercado e um grupo de vinte e cinco cães magros e mal tratados posicionou-se diante de mim. Fiquei paralisado de medo ao imaginar que o bando poderia ter retomado o ancestral comportamento da caça. Antes que eu pudesse descobrir, veio o vento e uma pobre criatura que algum dia fora chamada de pastor alemão dissolveu-se no ar.

Sai em disparada, mas fui apanhado pelo vento que produziu nada mais que uma pequena irritação cutânea. Infelizmente, o esperado era que eu não tivesse nenhuma reação. Aquela coceira sugeria que as hienas estavam se tornando resistentes à droga. Por segurança, abandonei toda minha roupa e partir para a casa de meus pais; era hora de irmos embora.

Nos meses seguintes, não passamos mais que três dias num único lugar. Entre outras desvantagens dessa estratégia, comecei a ter dificuldades de conseguir mais neomicina nos lugares que ia saqueando pelo caminho. Quando meu estoque chegou ao mínimo, optei por usar a substância apenas numa emergência. Por isso, passei a procurar por alimentos e outros gêneros sob a proteção da luz; ao contrário do que imaginei nenhuma pessoa apareceu para me atrapalhar.

Quando decidi me mudar de Uberlândia, escolhi partir rumo à capital federal, Brasília. Apanhei uma picape de luxo para me acompanhar na viagem e pegamos a estrada. Nossas paradas ocorriam apenas para nós proteger da noite, ocasiões nas quais eu eventualmente conseguia dormir. Sara ao contrário, fora abençoada com um sono de contos de fada.

Foi assim que vim parar na cidade de Campo Alegre de Goiás e resolvi passar a noite nessa construção que já foi usada como templo evangélico. Agora faltam apenas alguns minutos para estarmos sob a proteção dos raios ultravioleta. As manhãs sempre constituíram minha parte predileta do dia; era quando me sentia mais vivo e disposto. Agora, por coincidência, essa preferência ganhara um novo e mais amplo sentido.

Agora são sete e meia. Acabei dar uma barra de cereal para Sara e disse-lhe que ela tem meia hora para brincar ao Sol antes de pegarmos a estrada. A manhã linda e a alegria de minha filha recarregam minhas baterias e volto a ter esperança, pelo menos aquela necessária para viver mais um dia. Expectativa de que em algum lugar, pessoas tenham conseguido se estabelecer longe das criaturas que inventei e possam seguir o curso da vida.

_ Papai, olha!

O chamado de minha filha me desperta e tenho tempo de vê-la sorrindo pela última vez enquanto é vitimada pela irrefreável evolução das espécies e se desintegra numa rajada de vento.

Um comentário:

  1. Parece que não a ideia não é tão fantasiosa:

    http://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/ultimas-noticias/efe/2010/07/22/caixoes-biodegradaveis-viram-solucao-para-problema-funerario-da-china.jhtm

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