sábado, 10 de julho de 2010

A Mudança - conto baseado no conto "O gato preto" de Poe



Há alguns meses, todos acreditavam conhecer meu futuro imediato: a morte. Tudo por causa daquele maldito gato. Mas quem é capaz de adivinhar o que nos aguarda na próxima esquina? Por certo o demônio negro não, caso contrário, teria acabado comigo enquanto podia.


Após constatarem meu crime, fui jogado numa cela imunda e úmida sem nenhum tratamento médico; as autoridades não se apiedaram de um homicida que emparedou a própria esposa e foi espancado quase até a morte por ter resistido à prisão.


Para mal estar geral, não morri devido aos ferimentos e pior, assim que as ataduras foram retiradas de meu rosto perceberam uma desagradável sequela. Eu preferi chamá-la de “mudança”. Não resta dúvida que esta foi mais uma tentativa de enlouquecer-me daquele gato e é bem provável que isso tivesse ocorrido caso o fato se desse antes da morte de minha pobre esposa. Entretanto, foi justamente a perda do medo em relação ao animal que me levou, por acidente, a matá-la. Acontece que os golpes recebidos durante minha captura danificaram de modo irreversível meu olho esquerdo. A órbita que até então abrigava um órgão saudável, passou a hospedar uma massa disforme cujo último resquício da Íris, um traço vertical, conferia-lhe a aparência de um olho de gato submetido à luz forte.


Naquele momento a deformidade serviu para alimentar rumores de que eu matara minha esposa devido a um sinistro pacto com o diabo. Ainda ignorando o que o novo olho representava e tendo como certa minha condenação à morte, decidi escrever o relato dos acontecimentos que me levaram à prisão e o intitulei “O gato preto”.


Como eu não lhes facilitei o trabalho, dias depois uma junta de juízes me convocou para comunicar-me sua decisão. Os magistrados concluíram que a crueldade de meu crime e a insanidade registrada em “O gato preto” eram a prova de que o álcool consumira meu juízo. O remédio para tal condição era ser pendurado pelo pescoço até a morte. Ouvi a sentença com indiferença e quando o mais velho dos juízes perguntou-me se tinha algo a dizer eu respondi: “Gostaria de dizer que depois de amanhã ao meio dia, o senhor terá a honra de ser recebido no inferno antes de mim”. Nem mesmo eu fui capaz de entender o porquê daquelas palavras, mas dois dias depois na hora prevista, o velho magistrado teve um infarto fulminante. O episódio serviu para coroar os boatos de que eu gozava da proteção do diabo e acabou tendo um efeito ainda mais surpreendente: talvez por temor às próprias vidas, os demais juízes comutaram minha pena numa estadia perpétua num manicômio da região.


Se por um lado, minhas feridas continuavam a cicatrizar, o delirium tremens que não me abandonara por um único segundo desde minha prisão, tornara-se insuportável quando cheguei no hospício. Era-me impossível dormir; passava as horas entre alucinações sobre bebidas e momentos de pânico nos quais via o gato preto do tamanho de um boi dentro de minha cela. Apesar de meus gritos, minha fama sobrenatural mantinha todos longe; à exceção do enfermeiro responsável pelo turno da noite. Este passou a compensar o frio das madrugadas com a satisfação obtida em ver minha reação a seu hábito de ingerir álcool em frente a minha cela.


Numa noite chuvosa na qual a falta de genebra causava uma convulsão tão forte que por um milagre meus dentes não se partiram, comecei a gritar um nome: Berenice. Pela segunda vez, eu pronunciava palavras que nada significavam para mim, mas o enfermeiro imediatamente veio até as grades de minha cela ameaçando-me para que repetisse o nome. Após obedecê-lo, ele desapareceu e ao retornar na noite seguinte, passou a me tratar com uma cortesia inimaginável: recebi doses de rum, genebra e até mesmo um cálice de amontillado.


A razão para o novo comportamento do enfermeiro logo ficou clara; o nome que eu proferira era o de uma égua que veio a ganhar um páreo na noite anterior. Seguindo meu palpite, o ele obtivera uma generosa quantia em dinheiro.


Nesse dia percebi que por mais insólito que isso fosse, meu novo olho me permitia prever o futuro! Apostador contumaz, o enfermeiro passou a exigir até três novas “previsões” todos os dias. Infelizmente, eu não tinha controle sobre quais palavras iria proferir ou acontecimentos que iria prever, o que me impossibilitava de atender a seu pedido com a regularidade necessária.


Assim, as semanas se seguiam entre madrugadas de marajá, nos quais bebida e outros prazeres abundavam e outras de espancamento e ameaça. Numa dessas últimas, eu gritei enquanto eu recebia uma miríade de pontapés: “hoje nas cartas, aceite a aposta do anel.” De imediato os maus tratos foram encerrados e após dar-me a merecida cota de bebida lá se foi o enfermeiro em busca de seu prêmio.


Pouco antes do amanhecer ele voltou e apresentava uma mancha de sangue abaixo da axila direita; a área coberta pelo líquido viscoso aumentava lentamente. Ainda que apresentasse dificuldade para respirar, o enfermeiro não parava de dizer que aquilo era minha culpa; a informação que eu lhe dera o pusera em desgraça. Sem esperar resposta, ele passou a dizer após cerca de três horas de jogo com alguns desconhecidos, um escritor, talvez acreditando ter uma mão imbatível, apostou tudo que tinha, inclusive a bela aliança de sua ex-esposa morta de tuberculose. Os outros jogadores não aceitaram a aposta, mas o enfermeiro lembrando-se de minha dica teve certeza que aquela era sua chance de fazer fortuna. O que ocorreu pois ele levou uma grande quantia em dinheiro do escritor além do valioso anel. Após perder, o inconformado viúvo fora posto à força para fora do bar por mostrar-se um mau perdedor.


Terminada a jogatina, o enfermeiro tomou a direção do hospício para que o responsável pelo turno da manhã não percebesse sua ausência. Num beco, ele foi surpreendido pelo escritor que portava uma faca e exigia-lhe de volta o anel; o dinheiro não lhe interessava. A embriaguez extrema do homem fez parecer que sua ameaça não era séria, porém, demonstrando uma agilidade inesperada o antigo dono do anel esfaqueou o enfermeiro. Irado, este último esmurrou seu atacante e começou a estrangulá-lo, mas lembrou-se que as autoridades certamente viriam atrás do assassino de uma figura que embora decadente, pertencia à elite da cidade. Além do mais, caso o infeliz morresse, ele seria o principal suspeito uma vez que todos testemunharam as desavenças entre ambos após a aposta. Então, tentando dificultar a identificação do escritor que jazia inconsciente, o enfermeiro roubou-lhe os documentos e vestiu-lhe com trapos achados no lixo.


Aquela era a história que o trouxera até a porta de minha cela. Naquele momento, desorientado pela hemorragia, o desgraçado deixou-se convencer que eu era sua única chance de não morrer. Num último ato inconseqüente, ele me libertou. Minha primeira providência foi sufocá-lo e arrastá-lo até minha cela; eu nunca lhe contei que as palavras que originalmente me vieram, eram para que ele não aceitasse a aposta; começava a ter controle sobre meu novo dom. Em seguida, despejei o conteúdo de várias lamparinas pelo chão e ateei jogo no maldito lugar. Conforme soube depois, a única pessoa jamais identificada entre os corpos carbonizados fora o enfermeiro.


Após fugir do país, juntei-me a um circo itinerante tornando-me uma de suas principais atrações “o caolho que prediz a sorte”. Mas é claro que não abandonei o único propósito que me mantém vivo: encontrar e matar o gato preto. Eu sei que aquele demônio continuar a me perseguir e para ter certeza que ele vai me encontrar eu o provoco com o passatempo que desenvolvi desde que fui preso: ocultar pessoas sob tijolos.

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